Do
Oca Tupiniquim do Outras Palavras
Guerreiras
negras, líderes rebeldes em luta pela liberdade. Quantas terá havido na
história do Brasil de cuja existência não tivemos notícia? Quantas não chegaram
a existir porque este modo de ser não fazia parte das possibilidades de uma
garota? E por que não contamos histórias de heroínas assim – das que existiram
e das que poderiam ter existido – para inspirar nossos meninos e meninas?
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Foto/Reprodução. |
Certamente
perguntas como estas participaram do processo de criação das narrativas de
Lendas de Dandara, da poeta Jarid Arraes (Liro Editora Livre, Ilustrações de
Aline Valek). Dandara, a companheira de Zumbi, faz parte da mitologia do
quilombo de Palmares. Não há evidência histórica de que ela tenha realmente
existido, e no entanto sua personagem medrou no saber popular como uma
guerreira valente e hábil, capoeirista, capaz de liderar exércitos negros na
invasão de engenhos para o resgate de escravos. Estamos no terreno da lenda,
como a autora faz questão de delimitar no título de sua obra.
Nascida
em Juazeiro do Norte, no Ceará, Jarid aprendeu com seu pai a fazer poesia de
cordel. É da tradição desta arte apropriar-se da História para forjar estórias,
fundidas no fogo do imaginário, com uma temporalidade multidirecional que muito
pouco deve à linearidade da cronologia. De modo que há muito do Palmares
histórico nas narrativas de Jarid – que juntas formam essa pequena novela, em
episódios dotados de certa autonomia –, mas o seu quilombo poderia situar-se
quase que em qualquer ponto na vastidão do tempo-espaço do Brasil agrário e
escravocrata. Também fala algo do Brasil pós-abolição, pois hoje, mais que
nunca, surgem líderes libertárias negras que poderiam ter em Dandara a sua
ancestral mítica.
Por
um lado, Lendas de Dandara se apropria da história e mostra a situação dos
homens e mulheres escravizados no Brasil, a presença do tráfico humano
atlântico, e um pouco da estrutura de funcionamento dos engenhos, com suas
casas grandes e senzalas. Também a relação de conflito e negociação do quilombo
de Palmares com a sociedade de seu entorno é descrita com base no que os
historiadores propõem. Nem apenas uma sociedade guerreira em total isolamento e
autonomia, nem apenas um agrupamento submisso à ordem vigente, Jarid soube
integrar à sua descrição de Palmares essa complexidade, como por exemplo nas
relações comerciais (inclusive para aquisição de armamentos) que os quilombolas
estabeleciam com outras comunidades.
Se
a autora reconstitui ficcionalmente fatos históricos como as investidas que os
palmarenses faziam contra engenhos para romper senzalas e libertar negros, ela
nos propõe sonhar com um tipo de evento menos provável: a libertação de um
navio negreiro, concedendo-lhes a possibilidade de retornar ao seu continente
no comando da embarcação. Também cria a cena de um senhor de engenho que,
assaltado numa estrada e submetido por uma guerreira negra livre, se mostra
apavorado por não poder contar, ainda que momentaneamente, com o aparato social
e bélico que dá sustentação ao seu poder.
A
vida em Palmares também é recriada como uma aldeia rebelde e muito bem
organizada – algo provável, pela capacidade de defesa e ataque que o quilombo
teve. No entanto, o idealismo libertário e o sonho de se tornar um modelo para
outros quilombos por todo o território nacional são traços que visitam o
terreno da lenda. Meados do século XVII ainda é cedo para uma conjuração
independentista e universalista. Hoje, fala-se da possibilidade de que Palmares
não poderia ter tido uma estruturação igualitária, uma vez que este não era o
modelo conhecido pelos africanos em seu continente – mas o quilombo, como
muitos outros Brasil adentro, era francamente multiétnico e talvez pudesse ter
uma forte influência indígena em sua estruturação.
Neste
cenário já transitivo entre a história e as estórias, Jarid introduz a figura
fantástica de uma filha de Iansã, que vem ao mundo para lutar pela liberdade de
seus irmãos, cuja vocação é a liderança e o combate. Não é apenas que ela se
torna a companheira de Zumbi, sua Dandara enfrenta os limites de sua sociedade
e conquista o reconhecimento de seu meritório lugar de líder. É assim que obtém
a solidariedade e a admiração sincera de Zumbi. A rigor, ele não lhe concede
nada, apenas lhe reconhece o que ela conquistou realizando diversos feitos de
ousadia e coragem.
O
cuidado com a linguagem é notável e permite uma real construção da empatia com
pessoas em situação de extrema violência, como é a escravidão. Ao falar de
mulheres e homens aprisionados num porão, por que seria necessário
mencionar-lhes, sempre, a cor da pele? Há um grupo de agressores e um grupo de
agredidos insurretos, reafirmar sua divisão pela cor da pele ou pela origem é
apenas assumir o jogo do dominador. Trata-se de pessoas iguais em natureza, mas
vivendo em condições extremamente desiguais. E é isso o que Jarid nos faz ler e
imaginar, sem recalques nem travas.
Capoeira e mulheres líderes
Historicamente,
não é possível afirmar que a capoeira fosse praticada em Palmares, ou mesmo no
século XVII. Há apenas o registro de que os soldados coloniais se espantavam
com a habilidade guerreira dos palmarenses, cuja reputação era a de serem muito
mais difíceis de vencer do que os ocupantes holandeses – lembrando que Palmares
situava-se em uma região hoje situada em Alagoas, que na época ficava na
capitania de Pernambuco, portanto próximo à ocupação holandesa. Os quilombolas
dominavam técnicas de luta que os tornavam quase imbatíveis, e tiveram que ser
esmagados por exércitos em número e armamentos incrivelmente superiores.
As
evidências da capoeira são muito mais abundantes no século XIX, como as imagens
de Rugendas, notícias de jornal e os registros de polícia – a ponto de a
capoeira ter sido oficialmente proibida com o advento da República, quando a
escravidão estava findada e um novo aparato de controle social precisou ser
montado com foco na população ex-escrava.
Mas
a capoeira permanece símbolo da liberdade e da potência negra, com uma presença
feminina que se impõe. Um canto muito entoado nas rodas de capoeira fala disso:
Eu conheci mestre Bimba, conheci
Canjiquinha e também seu Maré
É é
Eles me disse um dia
É é
Capoeira é pra homem, menino e
mulher
É é
Pra menino e mulher
É é
É pra homem e mulher
É é
A
evocação dos mestres antigos para reforçar a inclusão de todos na capoeira
evidencia essa abertura, mas ao mesmo tempo demonstra uma tensão: é uma
característica que precisa ser afirmada e legitimada.
Mas
o imaginário da capoeira também se alimentou de outras figuras femininas
fortes, como a Ngola (rainha) Nzinga. Esta rainha dos povos ndongo e matamba,
na região onde hoje está situada Angola (palavra derivada de seu título de
liderança e nobreza), conduziu exércitos contra o invasor português e obteve
impressionantes vitórias. Ficou conhecida como a Rainha Ginga, e seu nome
estaria na origem da palavra mais essencial para a capoeira.
São
notáveis as semelhanças da Nzinga histórica com a Dandara das lendas, e não é
impossível que o imaginário popular as tenha incorporado – até porque ambas são
“contemporâneas”. Nos dois lados do Atlântico, duas figuras femininas
(históricas e míticas) associadas à resistência negra contra o colonizador
português e a opressão aos negros. Jarid menciona também Teresa de Benguela,
líder que se ganhou notoriedade por sua capacidade administrativa na condução
de um quilombo no interior do Brasil.
Apenas
como referência, vale mencionar que Nzinga inspira coletivos de mulheres que
fazem da capoeira um campo de afirmação da visibilidade e luta das mulheres,
com líderes como a Mestre Janja.
Real ou invenção?
Jarid
Arraes iniciou a escrita de seu livro partindo da hipótese de que Dandara e sua
história não são conhecidas por ser a personagem duplamente excluída do campo
vencedor: é negra e mulher, num mundo branco e machista. A síntese do projeto
do livro estaria nestas palavras da quarta capa: “Devido à escassez de dados
oficiais [a respeito de Dandara], a autora sentiu a necessidade de criar
narrativas que pudessem inspirar os leitores e espalhar a imagem de uma
guerreira negra forte, heroica e protagonista da própria história”.
Pergunto-me
se mais certo não seria exatamente o contrário. Se a personagem de Dandara não
teria sido criada por uma necessidade inversa, a de suprir a lacuna de que o
herói Zumbi – ele também fusão de mito e história – tivesse uma companheira tão
forte e valente quanto ele, capaz de encarnar rebeldia e libertação. Em
contraposição a uma mitologizante tendência da história oficial de apagar o que
não interessa aos “vencedores”, não haveria uma tendência popular – igualmente
mitologizante – de forjar figuras que apontem para um mundo mais completo?
A
autora também diz que seu livro foca o público adulto, mas que ele pode ser
lido para crianças por um “adulto responsável”, considerando que trata de temas
que envolvem violência, como a escravidão e o tráfico de seres humanos. Se está
certa quanto ao acompanhamento do adulto, novamente tendo a discordar dela
quanto ao público preferencial do livro. Penso que é para se ler para crianças,
pois contém todos os elementos para empolgar meninos e meninas e alimentar suas
imaginações com referências de justiça, bravura e heroísmo que em geral não se
associam a uma menina ou mulher negra.
A
constatação é de que o imaginário e o real se constituem mutuamente muito mais
do que uma cabeça determinista ousaria reconhecer. Somos parte disso – o que
significa que, no exato instante em que deixamos de nos inventar, é porque
estamos sendo inventados por alguém. Mesmo que não admitamos, o fato é que não
nos é possível deixar de inventar os outros e outras e de ser por eles e elas
inventados/as.
Não
por outra razão, afirmar que “não sou machista e não sou racista” não me
protege totalmente de ser machista e racista. Mesmo assumindo práticas
cotidianas não machistas e não racistas. Pois no momento em que eu, seguro de
meus princípios, relaxo, é quando abro uma fresta para que o machismo e o
racismo ajam por mim. É quando tomo uma atitude ou falo algo que só me restará
lamentar depois. Resta a alternativa de ser feminista e antirracista, o que
significa lutar perenemente para que o mundo seja menos machista e menos
racista, inclusive em minhas palavras e meus atos. É aí que me orgulho de
Dandara – como um garoto que na época da guerra fria teria orgulho do
Super-homem: é Dandara que dá corpo ao mundo que desejo.