Seria cômico se não fosse trágico. “O país não era racista até criarem as cotas”, diz Alexandre Garcia



O jornalista Alexandre Garcia, da Globo, conseguiu falar outra bobagem numa lista que parece interminável. Comentando sobre o cadastro do Simples Doméstico, Garcia descobriu o seguinte: “O país não era racista até criarem as cotas”.

É uma revelação fabulosa. Alguém precisa avisar sua colega do Jornal Nacional, Maju Coutinho, que aquele pessoal que a chamou de “macaca fedida” é cotista. Nem o chefe Ali Kamel, autor do clássico “Não Somos Racistas”, acredita mais nessa atrocidade.

Ader Gotardo, fotógrafo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, escreveu uma resposta no Medium:

Carta aberta a Alexandre Garcia

“Institucionalização do racismo”?

Hoje é 21/10/2015, com bom humor, muitos estão comemorando o “Back To The Future”, em alusão ao filme dos anos 80. Muitos dizem “o futuro chegou!” Será que chegou mesmo?

Pleno 2015, Alexandre Garcia, jornalista em rede nacional destila desinformação para corroborar sua indignação, usando falsidade intelectual e abusando de privilégio branco. É impossível respeitar seus cabelos brancos, Garcia. Só na cabeça de desonestos as empregadas e empregados domésticos não merecem mesmo respeito e direitos que os demais trabalhadores neste país, ou em qualquer outro lugar.

Manter empregados não é fácil para nenhuma empresa, mas dentro de casa, patrões querem regalias para continuar tratando essa força laboral como se fosse “da família”, ou seja: muitas vezes dispensando a eles educação que não têm nem para como seus pais, remunerando auxiliares como se fossem seus cunhados, com um tapinha das costas e um muito obrigado, quando muito. Quem trabalha merece remuneração justa e direitos assegurados. É leviano confundir recolher os impostos devidos nessa área com as consequências do não retorno em serviços a população. Pagar impostos e cobrar o governo pertence a relação de dever e direito que nós, cidadãos, temos que exercer.

Quanto a “institucionalização do racismo”, basta dizer que esse é o tipo de asneira que um privilegiado é capaz de reproduzir, sem conhecer ou, ainda pior, sem valorizar dados que já existem, estudos já publicados e experiências comprovadas. Raça não existe. Fato. Mas alguns da “raça humana” de pele mais clara resolveu classificar outros por “racismo”, que é a opressão por meio da cor da pele.

O combate contra o racismo quer exatamente isso, acabar com o preconceito por raça. O racismo, Garcia, pode ser comprovado em todas as classes de trabalho, em todos os bancos escolares. Homens e, principalmente, mulheres negras ganham menos em qualquer faixa salarial, qualquer função, com qualquer capacitação educacional.

Só mesmo alguém com dificuldades cognitivas não enxerga algo que até mesmo a emissora onde trabalha já noticiou, por meio de sua colega de bancada, Míriam Leitão! Além, Leitão também discursa sobre as cotas, vale a pena sua leitura. Cito Míriam Leitão, porque brancos como o senhor tem especial necessidade que outro semelhante seu produza discurso inclusivo para que este seja validado. Em alguma área obscura do cérebro, alguns acham que negros advogando direitos para outros negros não vale. É preciso uma validação “branca”. Então, estou usando o seu racismo, para chamar sua atenção.

É absurdo ainda convivermos com tal discurso de que cotas é uma institucionalização do racismo. A segregação americana, o Apartheid sul-africano, esses são exemplos da institucionalização do racismo. Será que você, Garcia, é tão desonesto intelectualmente que é capaz de comparar esses regimes do passado com a política de reparação das cotas brasileira? Puxado.

Material sobre Cultura Afro-brasileira é disponibilizado pelo MEC para download




Em 20 de novembro de 2012 foi assinada a Resolução CNE/CEB nº 8 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Quilombola. Este documento foi elabora considerando as especificidades destas comunidades e teve com ampla participação de representantes das comunidades remanescente de quilombos. Nele se revisa a perspectiva ideológica da formulação de currículos escolares, respeitando os valores históricos e culturais dos alunos e professores das comunidades remanescentes de quilombos. Essas diretrizes atendem as deliberações da Conferência Nacional de Educação (CONAE, 2010) e ao acordo firmado no I Seminário Nacional de Educação Quilombola realizado em 2010.

Foto: Portal - formiga.mg.gov.br

Além das diretrizes, há um esforço do Ministério da Educação para através do PAR garantir que os sistemas de ensino (estaduais e municipais) incluam as escolas localizadas em Comunidades Remanescentes de Quilombos nas demandas relacionadas à infra-estrutura, formação de professores e aquisição de materiais didáticos específicos.

Há de se destacar o Programa Brasil Quilombola que reúne ações integradas entre diversos órgãos governamentais para as comunidades remanescentes de quilombos. O objetivo do Programa Brasil Quilombola é transformar as condições de vida destas comunidades, conforme o previsto no Decreto Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que trata da regularização fundiária de terras de quilombos e define as responsabilidades dos órgãos governamentais, bem como o previsto no Decreto Nº 6.261, de 20 de novembro de 2007, que dispõe sobre a gestão integrada para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no âmbito do referido programa.

Clique aqui e faça o download do material 

O que a mídia não mostra para você sobre a África


Uma criança negra e raquítica pedindo esmolas com um olhar perdido em uma paisagem árida e suja. Esse é o arquétipo que a mídia por anos vendeu sobre o “infeliz povo africano”. Embora a miséria seja uma realidade no continente, a narrativa de que tudo é fome, miséria e tragédia nunca esteve perto da verdade.


Trabalhar com a pobreza explícita também  tem sido a tática de comunicação de algumas ONGs que usam a miséria para angariar fundos. A tática pode até ser eficaz em aumentar os lucros, mas carimba a imagem de todo um continente que definitivamente tem muito a mostrar para o mundo.

Chimamanda Ngozi Adichie é uma romancista nigeriana que veio de uma família de classe média. O pai é professor e a mãe administradora.  Adichie foi estudar em uma universidade americana aos 19 anos de idade e em uma palestra proferida para o TED  , ela conta sobre sua experiência, de como sua companheira de quarto ficou chocada ao descobrir que ela podia falar Inglês (o inglês é a língua oficial da Nigéria) , que sabia como usar um fogão e que ouvia Mariah Carey em vez de “música tribal”.

Ela sentia pena de mim antes mesmo de me conhecer.  Ela conhecia apenas uma única narrativa sobre a África. Sua ideia em relação a mim enquanto africana, era uma espécie de piedade paternalista bem-intencionada.   Era uma única narrativa de catástrofe. Nesta única narrativa, não havia nenhuma possibilidade dos africanos serem semelhantes a ela. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos que a piedade. Nenhuma possibilidade de uma relação entre humanos iguais.”

Em resposta à esta simplificação da identidade Africana, e contra a narrativa única que apenas vende a miséria e o sofrimento, os africanos foram para as mídias sociais  mostrar a diversidade do continente. A estudante somali-americana, Diana Salah , 22, criou uma campanha no Twitter com a hashtag #TheAfricaTheMediaNeverShowsYou . Desde de que começou, há uma semana, a hashtag já foi usado mais de 54.000 vezes.

É certo que o continente possui grandes bolsões de pobreza, assim como ocorre em muitos lugares do mundo, incluindo o Brasil. Mas a narrativa sobre as histórias de felicidade, de talento e de sucesso dificilmente chegam até nós.  Aqui estão alguns tweets que irão fazer coçar os pés do povo da mochila:











ENEM 2015: professores apontam 10 assuntos que podem ser temas da redação


Legado das Olimpíadas

A educadora Andrea Ramal, autora do livro 'Redação Excelente', aposta no tema, porque, além de ser uma questão de ampla discussão na sociedade, esta é a última oportunidade de debatê-lo na prova antes que os jogos aconteçam. Uma sugestão é abordar exemplos concretos de outros países que já sediaram as olimpíadas.

Violência nos Estádios

Professora de redação do Colégio Pensi, Carolina Pavanelli considera a violência nos estádios um tema latente. Ela sugere que o candidato analise as causas dessa violência e utilize exemplos para fundamentar argumentos e propor soluções. Problematizar o assunto proposto e sugerir soluções são exigências da prova aos candidatos, previstas no edital.

Liberdade de Expressão

"A lei garante liberdade de expressão, mas é legitimo publicar o que se pensa mesmo ferindo crenças alheias?" A educadora Andrea Ramal destaca que, apesar de a questão ter vindo à tona devido a um fato internacional (o atentado à revista "Charlie Hebdo", na França), liberdade de expressão é tema recorrente. Por isso, pode aparecer no Enem.

Segundo professores, a Redução da Maioridade Penal poder ser tema da redação no ENEM 2015.

Redução da maioridade penal

O assunto é discutido no Congresso e nas ruas. Mas não se trata de um tema novo. Por isso, o estudante deve ter maturidade para dissertar a respeito, aposta Andrea Ramal. Segundo ela, é preciso abordar a problemática que leva o menor ao crime. E não se deve trazer convicções que firam direitos humanos, como defesa da pena de morte.

Maus tratos aos animais

Questão difundida nas redes sociais. A professora Carolina Pavanelli, do Pensi, aconselha os alunos a abordar o tema de maneira criativa, falando não só sobre animais domésticos, mas também citando tráfico de animais silvestres e as condições de abate a que são submetidos animais criados para consumo. Sempre se atendo ao texto referência.


Justiça no Brasil

Em meio a crise política e casos de linchamento, Carolina Pavanelli, professora do Pensi, aposta que o tema "justiça" pode ser cobrado. Ela sugere que o candidato escreva sobre investigações de corrupção como a operação Lava-Jato, mas também a deturpação da ideia de 'justiça' por pessoas que tentam punir supostos criminosos com as próprias mãos.

PEC das Domésticas pode ser um dos temas do ENEM,
segundo professores.
PEC das domésticas

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das domésticas foi aprovada em 2013. As professoras Carolina Pavanelli, do Pensi, e Cida Custódio, do Colégio Objetivo, acham que o assunto pode cair no Enem. Elas destacam a importância de se sugerir maneiras para que a lei seja eficaz, como a necessidade de fiscalização.

Programa Mais Médicos

Lançado em julho de 2013, o programa Mais Médicos gerou debate sobre as falhas na saúde e a chegada de cubanos para atender em postos do país. Para Cida Custódio, do Colégio Objetivo, se este assunto cair, os alunos podem citar problemas do acesso ao atendimento médico e propor soluções para aperfeiçoar a medida.

Mobilidade Urbana

Hoje, as metrópoles estão afogadas em engarrafamentos, que além de prejudicar a mobilidade, poluem o ar. Para a professora Cida Custório, o assunto pode ser cobrado. Seria importante o aluno sugerir o investimento em transporte público como forma de melhorar a circulação.

Igualdade de Gênero

Se o foco for a questão da mulher, o aluno pode abordar violência doméstica, a baixa representação feminina na política e a diferença salarial entre homens e mulheres. Outra possibilidade é a prova pedir uma dissertação sobre os direitos civis dos gays. Se for assim, é importante citar o direito conquistado à união civil e à licença-paternidade.

Confira íntegra do texto aqui

Texto inédito de Michel Foucault: O corpo utópico



Nesta conferência de Michel Foucault – que acaba de ser publicada em espanhol – o corpo é, em primeiro lugar, “o contrário de uma utopia”, lugar “absoluto”, “desapiedado”, com o qual a utopia da alma se confronta. Mas, finalmente, o corpo, “visível e invisível”, “penetrável e opaco”, é “o ator principal de toda utopia” e cala apenas diante do espelho, do cadáver ou do amor.

A conferência “O corpo utópico”, de 1966, integra o livro El cuerpo utópico. Las heterotopías, cuja versão espanhola acaba de ser publicada (Ed. Nueva Vision). Esta versão está publicada no jornal argentino Página/12, 29-10-2010. A tradução é do Cepat.


Eis a conferência.

Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que Proust [A recuperação do corpo no processo do acordar é um tema recorrente na obra de Marcel Proust – Nota da Redação], docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim do mundo, posso me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.

Meu corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado.

Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos.

Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as múmias?  São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como um deus.

Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha alma!  É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão.

E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu. Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um piscar de olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiúra, e me restituíram um corpo fulgurante e perpétuo.

Mas meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem seus recursos próprios e fantásticos. Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que a tumba, que o encanto dos magos. Tem suas bodegas e seus celeiros, seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça, por exemplo, é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para alcançá-las, devo me adiantar.

Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos gênios e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente, imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia em que fico doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável, etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.

Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele.

Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver.

O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.

Escutem, por exemplo, este conto japonês e a maneira como um tatuador faz passar a um universo que não é o nosso o corpo da jovem que ele deseja:

“O sol lançava seus raios sobre o rio e incendiava o quarto das sete esteiras. Seus raios refletidos sobre a superfície da água formavam um desenho de ondas douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem em sono profundo. Seikichi, depois de ter corrido os tabiques, tomou entre as suas mãos suas ferramentas de tatuagem. Durante alguns instantes permaneceu imerso numa espécie de êxtase. Precisamente agora saboreava plenamente a estranha beleza da jovem. Parecia-lhe que podia permanecer sentado diante desse rosto imóvel durante dezenas ou centenas de anos sem jamais experimentar nem cansaço nem aborrecimento. Assim como o povo de Mênfis embelezava outrora a terra magnífica do Egito de pirâmides e de esfinges, assim Seikichi, com todo o seu amor, quis embelezar com seu desenho a pele fresca da jovem. Aplicou-lhe de imediato a ponta de seus pincéis de cor segurando-os entre o polegar, e os dedos anular e pequeno da mão esquerda, e à medida que as linhas eram desenhadas, picava-as com sua agulha que segurava na mão direita”.

E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos, cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no corpo.

Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.

Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia.

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.

Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Hector e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.

Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semi-abertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui.