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Aula pública sobre cotas raciais será realizada na Universidade Regional do Cariri



A Universidade Regional do Cariri (URCA), campus Crato, será palco na próxima quarta-feira, 21, de aula pública visando debater Cotas Raciais. O ato é uma idealização dos movimentos sociais, movimentos estudantis e do Grupo de Estudo e Pesquisa de História, Cultura e Ensino Afro-Brasileiro, Americano e Africano (GEPAFRO).

O tema apesar de frequente em discussões, ainda é pouco explorado pela comunidade, o que acaba suscitando dúvidas quanto a sua implementação em concursos públicos, em seleções de vestibulares nas universidades, faculdade e institutos educacionais.  

Em fevereiro de 2017 a URCA promoveu alguns encontros acerca da temática, como o I Seminário e Ações Afirmativas: A Implantação do Sistema de Cotas e de uma Audiência Pública. Ambos os eventos contou a participação de organizações não governamentais, associação de surdos e mudos, movimentos negros do cariri, professores, universitários e demais membros da sociedade civil.

Ao Blog Negro Nicolau (BNN), a professora do Departamento de História desta universidade, Telvira, afirmou que a atividade é uma idealização do GEPAFRO, coordenado por ela, do Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC), do Sindicato dos Docentes da Universidade (SINDURCA), dos movimentos estudantis da UFCA e tem como objetivo cobrar da instituição um posicionamento. Segundo a professora, "a URCA não tem feito nada em relação a isso". "Na verdade", realçou, "essa aula é para denunciar. A gente já teve um primeiro vestibular com ofertas de vagas para cotas sócio raciais e já tivemos os primeiros constrangimentos de candidatos brancos que se autodeclararam negros e os negros ficaram na fila". 

A ação que será realizada por docentes e discentes da URCA, UFCA, IFCE e também por movimentos sociais, deve debater sobre a realidade que ainda persiste – a pouca presença de negros, negras e indígenas no ensino superior. Ainda segundo Telvira, junto com a aula haverá um ato com o tema "Vidas Negras Importam. Mariella Presente".

A aula pública ocorrerá a partir das 18h30 no pátio da pedagogia.

(Foto: Divulgação).


Unicamp aprova cotas e prova exclusiva para indígenas no vestibular


A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) vai adotar o sistema de cotas com reserva de 25% das vagas para candidatos autodeclarados pretos e pardos. A decisão do Conselho Universitário da Unicamp desta terça-feira (21) passará a valer a partir do vestibular de 2019.

A Unicamp também anunciou que pretende criar um vestibular para indígenas a partir de 2021. A reunião que decidiu as novas diretrizes da instituição contou com a participação de representantes de movimentos sociais e de povos indígenas.

"Nós vamos ser a primeira universidade pública a ter uma junção de sistemas de ingresso. O vestibular tradicional continuará sendo o principal mecanismo, gerenciando aproximadamente 80% das vagas. Nós expandimos isso com candidatos do Enem que poderão ingressar na faculdade e também teremos um vestibular indígena", explica José Alves, da Comissão de Vestibulares da Unicamp.

A expectativa da universidade é aumentar o numero de estudantes vindos de escolas públicas e de alunos pretos e pardos – que atualmente representam apenas 29% dos estudantes. O objetivo é alcançar 37% dessa população nos cursos de graduação.

"As cotas vêm no sentido de garantir que se tenha engenheiros negros, médicos negros, professores e pesquisadores negros", afirma o ativista do movimento estudantil Bruno Ribeiro à reportagem da TVT.


Já a estudante Taina Santos acredita que a universidade ficará mais diversificada. "Eu viso uma Unicamp melhor do que eu entrei. É um marco importante e contribui para que a universidade continue caminhando no sentido de contribuir com a democracia." (Com informações da RBA).

O objetivo da Unicamp é alcançar 37% de negros e pardos nos cursos de graduação.
 (Foto: Antonio Scarpinetti/ ASCOM/Unicamp).

Para o jurista Silvio de Almeida, contestar cotas raciais em concursos públicos é ofender Constituição


Contestar as cotas raciais nos concursos públicos é ofender a Constituição. A afirmação é do jurista Silvio Luiz de Almeida. Nesta quinta-feira (15), a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade da Lei das Cotas, que garante a reserva de 20% das vagas para pessoas negras em concursos públicos, completa uma semana. A lei estava sendo questionada em instâncias inferiores.

Do Brasil de Fato - Além de advogado, Silvio é presidente do Instituto Luiz Gama, associação formada por acadêmicos, militantes de movimentos sociais e juristas que atuam na defesa das causas populares, principalmente na questão racial. É também doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito e atua como professor universitário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco) e na faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O Brasil de Fato conversou brevemente, por telefone, com Silvio de Almeida sobre os motivos que fizeram com que o tema voltasse a ser discutido no STF e os impactos que o resultado dessa decisão terá nos próximos concursos públicos. Acompanhe a íntegra da conversa:

Brasil de Fato: Qual foi a motivação para o julgamento das cotas pelo STF neste momento, se a lei era de 2014?

Silvio de Almeida: Logo depois da promulgação da lei, uma série de questionamentos judiciais foram feitos e alguns juízes começaram a dar liminares interrompendo os processos de seleção dos concursos públicos. Começou com uma ação direta de constitucionalidade para que o Supremo se posicionasse no sentido de reconhecer a constitucionalidade das cotas raciais nos concursos públicos. Em resumo, do ponto de vista jurídico, foram as liminares que foram dadas questionando a constitucionalidade das cotas.

Qual o impacto que essa decisão terá a partir de agora? Na prática muda alguma coisa?

Muda porque a decisão do Supremo é uma decisão que tem um efeito que juridicamente nós chamamos de efeito vinculante e um efeito erga omnes. Ou seja, essa decisão acessa todas as decisões judiciais e não pode ser questionada pelos órgãos da administração pública. Um juiz não pode, sem o risco e o custo de ofender a Constituição, julgar de maneira contrária a constitucionalidade das cotas. O que o juiz pode fazer, eventualmente,é questionar o modo de implantação, os critérios, mas não se pode mais, no Brasil, questionar a constitucionalidade das cotas. Ainda que sejam cotas no mercado de trabalho, o impacto é que não poderá haver um questionamento sobre se as cotas são ou não compatíveis com a Constituição.

Em relação às falsas declarações de etnia, muita gente questiona a questão. Como é feita a verificação e como você avalia o método?

Eu acho que o Supremo até se posicionou em relação a isso quando ele falou das cotas raciais nos vestibulares ou processos seletivos das universidades. O Supremo decidiu que o critério deve ser de autodeclaração ou de heterodeclaração, ou seja, a Legislação pode prever que haja autodeclaração do candidato. Agora, pode também haver o que a gente chama de Comissão de Verificação em que a identidade do candidato vai ser objetivamente avaliada por uma comissão formada por especialistas. Inclusive, essa é a recomendação que tem dado o Ministério Publico Federal [MPF] nas fraudes dos concursos, quando começaram a ser denunciadas.

O MPF começou a recomendar que nos concursos haja a verificação [por meio de comissão] formada por especialistas em relações étnico-raciais para se diminuir o número de fraudes. Então, o Supremo disse que é preciso ter cotas e as técnicas para verificar quem serão os beneficiários são várias. Agora, quais são esses critérios? Isso tem que ser verificado de maneira muito cuidadosa até porque a questão racial no Brasil exige um cuidado especial e, por isso, os especialistas são muito bem-vindos e as comissões de verificação também são uma opção bastante interessante.

Jurista Silvio de Almeida. Foto: Reprodução/ Youtube/ Brasil de Fato.



Um passa a frente. Unicamp aprova implementação de cotas étnico-raciais



Após um longo processo de lutas, com a greve de 3 meses em 2016, nesta terça o Conselho Universitário aprovou a implantação de cotas na Universidade de Campinas. Ocorreram após a greve três audiências públicas e um amplo processo de discussão com a comunidade acadêmica organizado por um Grupo de Trabalho composto por representantes discentes e docentes, bem como por membros da Frente Pró-Cotas e Núcleo de Consciência Negra da Unicamp.

Do Esquerda Diário - A implementação completa da medida não ocorrerá a partir do próximo vestibular pois o edital já está encerrado.

O relatório organizado pelo antigo GT defende 50% de cotas para estudantes de escola pública, sendo a proporção do estado, 37,2%, de cotas raciais, e 37,2% também entre as vagas de ampla concorrência. Um novo Grupo de Trabalho Institucional deve elaborar o projeto e calendário para a implementação das cotas.

Em novembro uma nova sessão do Conselho Universitário deve aprovar a última versão do projeto, que deve ser implementado a partir de 2019.



UFBA aprova sistema de cotas na pós-graduação


Todos os processos seletivos para os cursos de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal da Bahia (doutorado e mestrados acadêmicos e profissionais) irão adotar o sistema de cotas: serão reservadas, no mínimo, 30% das vagas ofertadas para candidatos negros (pretos e pardos) e uma vaga a mais em relação ao total ofertado nos cursos para candidatos enquadrados em cada uma das categorias de quilombolas, indígenas, pessoas com deficiência e trans (transgêneros, transexuais e travestis).
Do site da UFBA

O sistema de reserva de vagas foi aprovado na forma de resolução na manhã da quarta-feira, 11 de janeiro, no Conselho Acadêmico de Ensino (CAE), órgão que delibera sobre vagas para ingresso tanto na graduação quanto na pós, e já começará a valer para as seleções do segundo semestre de 2017.

A ação afirmativa, segundo o reitor João Carlos Salles, tem o objetivo de aumentar a participação de grupos sub-representados na comunidade acadêmica. “A resolução, associada às outras iniciativas de nossa Política de Ações Afirmativas, busca avançar na correção de desigualdades históricas, tornando a UFBA plena em sua vocação inclusiva”, disse.

Na visão do presidente do CAE, professor Francisco Kelmo, “mais que reparação, a resolução é oportunidade”, porque ela traz a possibilidade de pessoas que sempre foram excluídas mostrarem sua capacidade. Professor do Instituto de Biologia da UFBA, Kelmo lembra que as novas cotas representam uma continuidade ao acesso já oferecido pelas cotas da graduação, que permitem o ingresso na universidade de muitos que têm um forte desejo de crescer intelectual e profissionalmente, mas são barrados pelo racismo e pela discriminação.  “Agora, essas pessoas poderão ter acesso aos programas de pós-graduação e mostrar também aí que são capazes”.

A UFBA vai além das definições da Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016, do Ministério da Educação, que contempla apenas negros, indígenas e pessoas com deficiências e torna-se a primeira universidade do Brasil a preocupar-se, também, com a inserção na pós-graduação de quilombolas e trans”, disse o coordenador de ensino de pós-graduação da UFBA, Ronaldo Lopes Oliveira, que presidiu comissões especiais sobre o tema. Depois de consolidadas as cotas para a graduação, trata-se de ampliar a incorporação na Universidade da população que, no seu dia a dia, lida com demandas especiais, questões étnico-raciais, de origem e de identidade de gênero.

Processo de construção

A UFBA, segundo Oliveira, está aprimorando e ampliando sua política de ações afirmativas. “Houve a preocupação com o estabelecimento de uma política de ações afirmativas com cuidado para que a reserva de vagas seja o piso e não o teto. O percentual mínimo da oferta total de vagas para negros e pardos baseia-se na proporção desta categoria na pós-graduação no Brasil hoje, que é de 28,9%. Por isso, adotou-se o mínimo de 30%, reservados para negros e pardos como ponto de partida na UFBA”.

Desde 2014, o processo de discussões que levou à adoção do sistema na pós-graduação foi marcado pelo diálogo com os movimentos sociais e vários grupos da universidade, por meio da realização de debates públicos como o que reuniu no auditório da Faculdade de Arquitetura, no final do ano passado, convidados especialistas no tema, como os professores Kabengele Munanga, da Universidade de São Paulo (USP), José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), Maria Rosário Gonçalves de Carvalho, dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da UFBA, e Samuel Vida, da Faculdade de Direito da UFBA, representando também o Coletivo Luiza Bairros.

Além disso, a construção dessa resolução passou pelo debate com coordenadores de pós-graduação, pelas congregações das unidades acadêmicas, além de grupos e movimentos sociais mobilizados pelo tema, tais como o Coletivo Luiza Bairros, a Unegro, a Associação de Pós-Graduandos (APG/ANPG) e demais movimentos organizados que impelem o tempo todo a Universidade a se refletir e buscar refletir em seu tecido a sociedade em que está inserida. Varias questões foram levantadas a partir da contribuição de unidades de ensino como Educação, Química, Matemática, Saúde Coletiva, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) e Medicina Veterinária e Zootecnia, e foram debatidas pelas comissões especiais que trabalharam na Resolução.

A professora Bárbara Carine, do Instituto de Química, membro da Comissão do CAE e do Coletivo Luiza Bairros, disse que “a aprovação das cotas na pós-graduação é uma conquista, fruto da luta de grupos minoritários do país e da UFBA, cujo início pode ser datado nos idos dos de 2005, momento em que houve a implantação de cotas para a graduação”. Para ela, “o impacto irá além da representatividade quantitativa da diversidade populacional acadêmica e se evidenciará também qualitativamente, nas linhas de pesquisa, pois esses sujeitos poderão estudar temáticas relacionadas às suas próprias questões, indo na contracorrente do que acontece, predominantemente, nos ambientes acadêmicos hegemônicos”.

Já segundo o pró-reitor de Pesquisa, Criação e Inovação da UFBA, Olival Freire, a UFBA está aprimorando medidas que garantam a permanência e inserção no ensino, na pesquisa e na produção cientifica de segmentos sub-representados dapopulação. Porém, é mais do que isso, ele disse. “Estamos criando as condições para a construção de uma ciência que incorpore saberes e perspectivas epistemológicas diversas, aproximando-a, assim, dos nossos problemas, do nosso cotidiano, da vida como ela é, em sua diversidade e complexidade”.


“Nosso racismo é um crime perfeito”, diz antropólogo Kabengele Munanga em entrevista


O antropólogo Kabengele Munanga fala sobre o mito da democracia racial brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da educação no combate ao preconceito no país em entrevista cedida ao Portal Fórum.

Fórum – O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como foi essa mudança para o senhor?

Kabengele – Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.
Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questão racial. Foi através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram.

A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polícia?

Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão… A geografia do seu corpo não indica isso.

Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.

Revista Fórum – Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso brasileiro é mais difícil combatê-lo…

Kabengele – Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.

Revista Fórum – Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?

Kabengele – Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação.

Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte da população brasileira.

Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas.

O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.

Antropólogo Kabengele Munanga. Foto: TV Brasil


Fórum – Que é o argumento do Demétrio Magnoli.

Kabengele – Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas pichações, “negro, volta pra senzala”. Mas isso não se caracteriza como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população, projetar conflitos que na realidade não vão existir.

Fórum – Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?

Kabengele – Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.

Fórum – Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo socioeconômico?

Kabengele – É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. “Ah, é só mudar a escola pública.” Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica.

E tem esse argumento legalista, “porque a cota é uma inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil”. Há juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível.

Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai decepcionar.

Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.

A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a acusação dele no jornal.

Fórum – O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito…

Kabengele – O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.

Há negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda.

Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: “Não vou alugar minha casa para um negro”. No Brasil, vai dizer: “Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar”. Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita.

Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: “você já discriminou alguém?”. A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar… Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: “você que é complexado, o problema está na sua cabeça”. Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.

Revista Fórum – O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista.

Kabengele – Faz parte desse imaginário. O que está por trás dessa ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.

Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.

Fórum – É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento muito simplório: “por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de macaco”, como se fosse a mesma coisa.

Kabengele – É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.

Fórum – O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse tipo de situação?

Kabengele – Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro… Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita a violência física é punida?

Fórum – Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a questão racial?

Kabengele – Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no Brasil.

Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade na escola.

O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro.

Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva, isso ajuda.

É por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros.

Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.

Fórum – Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso?

Kabengele – O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê?

Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras universidades públicas, quantos professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?

120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade.

Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?

Kabengele – A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola.

Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito.


Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou.

Um negro que desconhece a sua própria história é estarrecedor


De quem falo? Mais uma vez do Fernando Holiday, eleito vereador em São Paulo pelo DEM e um dos organizadores da Movimento Brasil Livre (MBL).

A Marilia Lydia o entrevistou no Jornal da Gazeta. Para além das ideias estapafúrdias que já conheço que defende e que caminha no rumo das pregadas por setores conservadores, retrógrados, bem como das defendidas pelas elites brancas do pais como por exemplo, a extinção de secretarias para negros e LGBTs – pastas muito importantes para a promoção da igualdade racial e social, o moço de pele negra, mas de ideais de capitão do mato, de feitor e de senhor de engenho, foi além e desconsiderou as lutas dos movimentos negros e os próprios ativistas.

Imagem capturada do vídeo no youtube.
Em sua fala, Holiday discorre que é contra as cotas raciais, a consciência negra e desconsidera os movimentos negros. Segundo ele, o movimento foi tomado por pessoas que acreditam serem donas da verdade. Não há, de acordo com Holiday, pessoas dentro desses movimentos que de fato façam um questionamento da necessidade ou da eficiência de haver um dia para a consciência negra ou da necessidade ou da eficiência de haver cotas raciais. O representante do MBL encontra argumentos facilmente desprezíveis do ponto de vista histórico ao afirmar que Zumbi dos Palmares não representa a simbologia da Consciência Negra, pois o ver como assassino, um dono de escravos. “Esse sujeito que pouco se sabe, que pouco se conhece”, completou ao falar do líder dos palmares.

Para completar as asneiras, ele apresentou um discurso das elites brancas, de setores racistas e que acreditam que o racismo se combate com o silêncio, mas nunca com lutas. Os movimentos negros para o eleito vereador não ajudam a combater o racismo, pois apresentam falas que alimentam o vitimismo e que rebaixam os negros. O Holiday é, portanto, defensor da meritocracia e do racismo legalizado.

O Holiday necessita urgentemente voltar as aulas de história ou estudar dia e noite e prestar vestibular para essa disciplina. Porque definitivamente ele não conhece a história de negros e negras. Tão pouco sabe do histórico de lutas dos mais variados movimentos negros que tem espalhados pelo Brasil e das suas conquistas que, pelo Brasil ser um país racista, ainda são muito poucas. Ele precisa conhecer não só a biografia do Zumbi, mas de Dandara, Aqualtune, Luisa Mahin, Mestre Bimba, Abdias do Nascimento, Antonieta de Barro, Carolina de Jesus, Grande Otelo.... 

Necessita também e com a mesma urgência visitar os movimentos negros que estão em constantes lutas pelo fim do racismo e pela promoção da igualdade racial, cito aqui o Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC) e o Grupo de Mulhres Negra do Cariri - Pretas Simoa.

Abaixo você confere a íntegra da entrevista

            

Conheça a Universidade que teve 51, 9% de alunos de escolas públicas e 21,5% de negros aprovados no Vestibular



A lista dos aprovados na primeira chamada do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tem 51,9% de alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas. Desses, 43% são pretos, pardos ou indígenas, o que representa 21,5% do total de selecionados.


O índice de alunos vindos de escola pública é o maior da história da instituição, que nunca havia superado o índice de 34% de egressos do sistema público de ensino. “São resultados muito expressivos e que vão contribuir para que muita gente tenha uma ascensão social significativa no país, uma vez que nós temos alunos do Brasil inteiro”, disse o reitor da Unicamp, José Jorge Tadeu.

Os resultados obtidos no vestibular de 2016 representam, de acordo com Tadeu, uma antecipação das metas de inclusão estabelecidas pelo conselho universitário. O objetivo da universidade era que, até 2017, 50% dos ingressantes viessem de escolas públicas, sendo que 35% desses fossem autodeclarados negros ou indígenas (17,5% do total).

O percentual de 35%  foi estipulado por ser a representatividade de pretos e pardos na população do estado de São Paulo. Segundo o Censo Escolar de 2014, dos 1,91 milhão de estudantes do ensino médio do estado de São Paulo, 85,3% cursavam em escolas públicas, sejam estaduais, municipais ou federais.

Para aumentar a presença desses grupos na composição do corpo de alunos, foi estabelecido um programa de bônus. Na primeira fase do vestibular, os candidatos que cursaram o ensino médio em escolas públicas recebem 60 pontos extras, os que forem negros e indígenas, 20 pontos  a mais. Na segunda fase, os bônus passam para 90 pontos para os estudantes de escolas públicas e mais 30 pontos para os negros e indígenas. De acordo com o reitor, para ingressar na Unicamp os candidatos precisam em média de notas que variam entre 600 e 700 pontos.

O aumento do número de estudantes negros e de escola pública ocorreu, segundo Tadeu, inclusive nos cinco cursos mais concorridos: medicina, arquitetura e urbanismo, midialogia, ciências biológicas e engenharia civil. No entanto, em arquitetura e urbanismo, o número de autodeclarados negros e indígenas ficou abaixo de 35%.

Para o reitor, a concessão de bônus tende a aumentar o número de ingressantes de escola pública justamente nos cursos mais concorridos, onde as notas dos candidatos são mais próximas e poucos pontos determinam o acesso às vagas. “Essa metodologia impacta mais significativamente os cursos de alta demanda. Os cursos de alta demanda tem um aproveitamento muito próximo dos estudantes”.