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Alunos negros, professores negros e a Lei Federal nº 12.990


Do Geledes

Por Janaína Penalva Professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília/UnB, membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB. Ex- Diretora -Executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ e do Centro de Estudos Judiciários do CJF

Por Evandro Piza Duarte Professor de Direito Processual Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB

Por Gianmarco Loures Ferreira Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Pesquisador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB

Por Marcos Vinicius Lustosa Queiroz Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Pesquisador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB


Em vigor desde 9 de junho de 2014, a Lei Federal nº 12.990, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos do Poder Executivo Federal, tem tido um desempenho muito aquém do esperado.

Dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR comprovam que, muito distante dos 20% previstos na lei, na maioria dos concursos públicos que exigem formação superior este percentual chega, ao máximo a 14%, sendo que, no caso de universidades e institutos federais de ensino este percentual tem girado em torno de 7% .

Assim, não é de se surpreender que o fato da Universidade de Brasília (UnB), uma das mais tradicionais instituições de ensino do país, já pioneira pela adoção de cotas raciais no vestibular, nos idos de 2004, e, mais recentemente, nos processos seletivos de pós-graduação em Sociologia, Antropologia, Direito e Direitos Humanos, tenha ganhado as páginas dos principais veículos de imprensa para noticiar a abertura de edital com cotas raciais para contratação de professores de direito. Cumprir a lei, no Brasil, parece, realmente, ser motivo de destaque.

O dilema gira em torno da regra que prevê a aplicação do percentual de reserva (20%) sempre que o número de vagas oferecidas for igual ou superior a três. Em concursos em que há grande oferta, como os de nível médio, por exemplo, cumprir a exigência é mais fácil, tanto é que, ainda que abaixo do mínimo legal, as reservas têm ficado próximas à 16% (dezesseis por cento). No entanto, em concursos em que o número de vagas não passa de uma ou duas, como é o caso do magistério superior, o risco de a lei não surtir efeito é grande.

Segundo a Decana de Gestão de Pessoas da UnB, Maria Ângela Guimarães Feitosa, o sucesso do Edital para docente de Direito Público e Privado para a Cidadania, da Faculdade de Direito, que cumpre a reserva de vagas para negros e negras, deve-se a uma “adaptação à lei”, em que foram atualizadas as “condições gerais do edital”. De fato, tradicionalmente, os concursos para professores são limitados por disciplinas, dada a especialização exigida para o exercício dos cargos. No entanto, mesmo respeitando os níveis de especialização, é possível que se faça o que tem sido denominado “ampliação do espectro de atuação do cargo”, o que possibilita que as vagas, mesmo em especialidades diferentes, sejam aglutinadas. Dessa forma, o que a UnB fez no concurso para a Faculdade de Direito foi interpretar a lei  para garantir o cumprimento das cotas raciais.

Como comumente se observa em questões que envolvem concursos públicos, a reserva de cotas raciais já chegou ao Judiciário. Além dos debates sobre falsidade na autodeclaração, como havido nos concursos da Polícia Federal e no Instituto Rio Branco, a burla ao cálculo da reserva de vagas surge como violação mais sofisticada da lei. De forma aparentemente legítima, a distribuição das vagas por especialidades esvazia completamente o objetivo da lei, na medida em que não materializa as cotas.

Nesse sentido, a atuação do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União resultou em ações contra o Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) e de São Paulo (IFSP). No caso do IFMA, a Defensoria Pública da União propôs uma ação civil pública, questionando o fracionamento das 210 vagas para a carreira de magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da instituição, que resultou, ao invés de 42 vagas para pretos e pardos, em apenas 6 vagas.

Em sede liminar, o TRF da 1ª Região já se pronunciou contrário ao fracionamento das vagas reservadas, suspendendo os certames e determinando a incidência do percentual de vagas por cota sobre o total de vagas ofertadas.

Já no IFSP, o Ministério Público Federal em São Paulo ingressou também com ação civil pública, pelos mesmos motivos, em razão do fracionamento das 166 vagas para a mesma carreira de magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, que deixou de oferecer qualquer vaga a negros e pardos, embora o total de vagas oferecida fosse de 166.

A efetivação da Lei Federal nº 12.990/2014 exige dos aplicadores o rompimento com as formas tradicionais de realização de concurso público nas universidades. A necessidade de que as disciplinas sejam lecionadas por professores especializados não implica que os concursos públicos sejam também segmentados. Até porque, no cotidiano das universidades, não é incomum, malgrado a especialização crescente, o docente lecionar em disciplinas de áreas afins.  Logo, é possível, como fez a UnB, a construção criativa de formas de seleção que assegurem o perfil acadêmico do professor, atentando, na mesma medida, para o mandamento constitucional que impõe processos seletivos antidiscriminatórios e comprometidos com a igualdade racial.

O concurso da UnB, portanto, inova em dois sentidos. De um lado, atenta ao risco que a divisão por disciplinas (direito público e direito privado) pudesse esvaziar o conteúdo da lei, lançou o certame com vagas na área de conhecimento, o que exige dos candidatos e candidatas um conhecimento de todo o conteúdo, mas também amplia a oferta, sem sair da especialização – formação em Direito – exigida. Por outro, demonstra uma competência administrativa de planejamento, possibilitando que ao invés de três concursos, em momentos diferentes, um só se fizesse, cumprindo, a uma só vez, dois deveres constitucionais: o de atender ao princípio da igualdade, viabilizando as cotas raciais na formação de seu corpo docente, e o de cumprir o princípio da eficiência, fazendo mais, com menos.

Não obstante, ainda há muito o que se feito. Apesar de a UnB ter aprovado, no final de 2015, um Edital de Condições Gerais para os próximos concursos de docentes, no qual se prevê a reserva de vagas, ainda não se consolidou na instituição, assim como em outras, uma discussão pública intensa sobre a importância da admissão de professores negros. Assim, é urgente que a própria Universidade debata e elabore estratégias institucionais, a serem seguidas por cada departamento, visando dar efetividade à Lei Federal nº 12.290.

De igual forma, as ações afirmativas não devem ser entendidas como mera reserva de vagas, mas sim no seu verdadeiro sentido de reestruturação profunda de ambientes historicamente excludentes. Há, assim, um longo caminho de democratização da gestão universitária, que passa, entre outras medidas, pela revisão de como o conhecimento é produzido na academia (bibliografias, ementas, disciplinas, grupos de estudos, linhas de pesquisa, etc.) e por compromissos institucionais muito mais delicados que a simples adoção das cotas. É justamente nesse aspecto que é possível visualizar a maior relutância da Universidade em assumir, de fato, posturas que impliquem na mudança efetiva do seu saber-fazer profundamente desigual.

O que se espera é que, da mesma forma como nos idos de 2004, as cotas raciais adotadas pela UnB criaram escola, a atual forma de condução dos concursos públicos para professores e professoras também sirva de bom exemplo para as demais instituições de ensino fazerem o que exige a Constituição, deixarem de lado a cultura institucional e se adaptarem para o cumprimento do princípio da igualdade.



Cotas e a busca pela igualdade racial



Do DM

O artigo epigrafado foi publicado com o título “As cotas raciais e o racismo cordial”.  Acredito merecer republicação. As cotas raciais, além de vitória política, social e econômica, são um Direito Constitucional do segmento negro brasileiro, por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, do dia 26 de abril de 2012. Não raro, prosseguem assustando grande parte da sociedade, sobretudo as pessoas mais conservadoras, para não dizer de mente colonizada, sendo mesmo curioso porque não houve reação quando propostas para estudantes estrangeiros, mulheres na política, cineastas e portadores de deficiências em órgãos públicos. Repetindo Hélio Santos, um  dos mais respeitáveis estudiosos da questão racial no Brasil,“as cotas de 100% para os brancos estão aí desde sempre e ninguém contesta”. Quer dizer: em um  país onde gato preto continua surpreendendo e a fisionomia das pessoas ainda caracteriza algo de bom ou de mau, a cor branca não tem como não ser atestado de boa conduta, inferindo poder ratificar a narrativa acima. Aliás, desde que J. A. Antonil, em “Cultura e Opulência do Brasil” (1711), escreveu que o Brasil é “… um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos”, além de revelação surpreendente, evidenciando a nossa confusa mistura de “raças”, preceptora de nossa identidade racial também confusa e polêmica, dificultando combate ao racismo, mostrou o negro no seu pior lugar, o inferno, de onde ainda não saiu completamente; o branco, num inesperado e esquisito purgatório, talvez influenciado por ideia euro-ocidental cristã, imaginada por Dante Alighieri, em A Divina Comédia, vislumbrando as delícias do céu; e o paraíso para os mulatos, onde nunca estiveram e não vão chegar, em razão do sentido pejorativo que carregam a partir da origem etimológica do nome, conforme explicam os bons dicionários, notando-se que só assim se melhoraria a “raça” no país e o negro se purificaria das suas maldades congênitas, inventadas contra ele pelos deuses do Olimpo e a cultura racista procedente de outras diásporas, dificílima de ser extirpada.




Já se vê que dessa embaraçosa e multicultural divisão de segmentos étnicos, o racismo no Brasil não poderia ser muito explícito como nos Estados Unidos e África do Sul, por exemplo, restando por ser mesmo mascarado, disfarçado, engenhoso, sutil e outros convenientes “apelidos”, tornando-se, por isso, muito mais difícil de ser visto, analisado e combatido, fato que se tornou ainda pior no país ao deixar de ser “científico” para ser definido “racismo cultural”, originário da própria confusão da mistura de “raças”, onde se disfarçou, deixando a impressão de que nem existia, como aconteceu por volta de 1933, através do emblemático e controverso conteúdo do livro “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, onde a controvérsia seria somente de âmbito social e a virtude estaria na mistura de “raças”, fatos que seriam verdadeiros, se isso tivesse ocorrido de modo espontâneo, legítimo e democrático, nas relações sexuais e culturais entre brancos e negros sobremodo, onde a mulher negra, além de vítima de violentos estupros e horríveis abortos, até para não vê o filho nascer no status deprimente de escravo, da mãe, era obrigada a vê-lo nascer assim, por exigência legal, por impor princípio de direito da época o seguinte: “partus sequitur ventre – o parto segue o ventre”, assim podendo aumentar os escravos. Se não bastasse, nesse amálgama ou fusão de “raças”, em que pese seu aspecto meritório inquestionável, se esconderam e se disfarçaram muitas outras maldades, sendo o nosso racismo mascarado uma delas, sem esquecer a falsa “cordialidade brasileira”, de que fala livro clássico de Sérgio Buarque de Holanda, de onde vem racismo até “cordial”, abordado a seguir.

Notem que foi ainda na década citada, por intermédio do livro clássico “Raízes do Brasil” (1936), do consagrado Sérgio Buarque de Hollanda, que apareceu no Brasil a hipócrita ideia de que seríamos um povo cordial, daí a nossa cordialidade e afeto para com o negro, o índio, outros segmentos e até nações; diagnosticando também que foi nessa falsa cordialidade que se escondeu, dentre outras dissimulações, a “rede de relações privadas que comanda a cena pública do país”, como ocorre hoje em dia na celeuma das biografias, onde os biografados, confundindo interesse público com seu interesse de ordem privada, a bem dizer, são o “homem cordial” de que fala Buarque de Hollanda, “reivindicando para seus desejos” enganosos o amparo da lei, que não pode ampará-los, na hipótese, a anacrônica disposição legal do Código Civil de 2002 (art. 20), no qual a pretensão postulada, por notáveis que sejam as celebridades, não tem sustentação jurídica básica, por ferir direito constitucional anterior, previsto na Constituição de 1988 (incisos IX e X), onde a censura prévia é proibida, vendo-se, assim, que qualquer decisão a respeito, fundada em lei civil ordinária mencionada, mesmo que transitada em julgado (res judicata), não tem como não ser norma legal inconstitucional, configurando censura prévia, inadmissível. Como diria Heloisa Starling e Lília Moritz, em consistente ensaio intitulado “Medos privados em lugares públicos”, publicado à página 8, do Suplemento Literário Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo, de 3 de novembro do mês corrente, “Essa história é pública e ao público pertence”.

Como visto, de tão arguta, a discriminação no Brasil, econômica, racial, social, xenófoba etc. chega a ser “cordializada”, pra não repetir “cordial” e incoerente, sendo assim que o artigo 20 do Código Civil pode entrar em vigor, facilitando censura prévia proibida por Constituição Federal anterior; o “homem cordial” descrito por Buarque de Hollanda, ainda tendo a vida privada fazendo papel de nossa principal referência, como se isso, no dizer das autoras acima referidas, “…fosse sinal de maturidade democrática”; pudéssemos viver somente com uma “verdade”, uma versão; como se a verdade mais importante, segundo o filósofo Albert Camus, não fosse a última delas, coerente e de ordem pública; num país dividido em classes sociais de maioria desigual, injustiçada que, assim como o homem cordial, estão assombrando as biografias propaladas pela mídia, feitas com “fundamento” em lei civil ordinária insustentável, ofensivas, portanto, ao princípio da hierarquia das leis, defendidas por notáveis e reconhecidos talentos da Música Popular Brasileira, através do grupo cognominado “Procure Saber”, coletivo que defende autorização prévia para publicação de tais biografias, cujos biografados sempre mereceram o nosso maior carinho, não raro STF já lhes tenha imposto a força do Direito.

Curiosamente, noto que o “Procure Saber”, não está tão coeso, recua e se dispersa, talvez por perceber reação pública desfavorável e por defender pretensão insustentável em âmbito jurídico, moral e ético, consoante ouso comprovar com depoimentos de alguns deles, publicados em jornais. Gilberto Gil já “defende grupo contrário a biografias sem autorização”, jornal O Popular, Goiânia, Goiás, página 4, sábado, 9 do mês corrente.  Caetano Veloso, em “Nós apanhamos, e ele vem de Rei”, em artigo publicado no jornal O Globo, Rio de janeiro, no qual se mostra irritado com Roberto Carlos, pela “mudança de tom” em relação ao grupo “Procure Saber”, que defende autorização prévia para biografias, do qual logo depois Roberto saiu; texto também publicado em “A semana foi assim”, do jornal O popular, referido, de 10 do mês em curso, página 10, do 1º Caderno. E se transcrevesse entrevista de Ruy Castro, a Rogério Borges, no jornal referenciado? “Só leio biografias não autorizadas”, ironizou. Se não bastasse, com manchetinha intrigante “Amigo de fé”, Elio Gaspari, me oferece texto, digno de encerrar o que ora escrevo, publicado à página 14 do jornal citado, ainda do dia 10 de novembro em curso, do 1º caderno.

“Roberto Carlos é um ‘amigo de fé, irmão camarada’. Bloqueou a publicação de dois livros e tentou barrar um trabalho acadêmico sobre a jovem guarda. Quando seu projeto de censura virou vinagre, pulou de barco, deixando Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil na frigideira”.

A necessidade das cotas raciais num país como o Brasil, por Priscilla Bezerra*



Estava eu, me preparando para dormir, quando resolvo dar aquela “última passada” no FB e me deparo com uma postagem que dizia:

Sou negra, e para mim, em vez de cotas, deveriam dar passagens de volta pra África para aqueles que choram pelo passado que nem viveram”.



Tá, e daí? E daí que eu simplesmente não consegui dormir e quase sucumbi ao ímpeto de me levantar à 1h da madruga, para tentar escrever num texto tudo aquilo que eclodia em minha mente após ler tamanha prova do que, eu humildemente, chamaria de pura ignorância histórica, falta de identidade, falta de conhecimento e reconhecimento sobre a nossa própria história.

Eu queria muito, muito mesmo, ter alguma competência intelectual para produzir algo que colaborasse para o esclarecimento sobre o quão positiva, necessária e justa é a implantação de cotas raciais num país como o Brasil, onde sequer temos a capacidade de entender quem é e quem não é parte da população negra.

Bem, em minha mente, o processo histórico da humanidade me oferece argumentos simples, porém suficientes para entender que as cotas, não somente estas, mas todo o processo de políticas de reparação e ações afirmativas envolvendo os negros, são plenamente plausíveis e, assim sendo, merecem o devido respeito e o mínimo de conhecimento histórico, por parte daqueles que pretendem argumentar contra os mesmos.

Digo argumentar porque, admiradora da História, como tenho a ousadia de me enxergar, não me permito paciência para ouvir achismos sem qualquer embasamento que justifique a reprodução de tais tipos de “opinião”. Aliás, ter opinião não é crime não, moços e moças! Entretanto, seria de bom tom e muito mais louvável que suas opiniões fossem articuladas e apresentadas depois de muita leitura, muita pesquisa e muita troca de conhecimentos.

Veja bem, conhecimentos não são aquelas coisas mal pensadas e formuladas e que são excrementadas no feed de notícias de suas redes sociais. Não! Isso não! Apenas parem! Reprodução de discursos sem questionamento sobre os mesmos, sobre quem os forjou, com base em que os forjou, por quê os forjou e com que intenção os forjou, não é maneiro não!

Então, vamos lá! Como professora que sou, não tive a honra de ser registrada com o nome Maria, mas não perco a “mania de ter fé na vida”, como diz o grande artista Milton Nascimento. Para início de conversa, pergunto a você, caro leitor: você acredita que a condição social e econômica dos seus avós, teve alguma influência ou impacto para que os filhos dos mesmos, ou seja, seus pais, estivessem hoje na condição social e econômica que estão? ( ) Sim ( ) Não.

Você acredita que, sendo seus pais quem são, tendo as profissões que têm, a escolaridade que têm, a visão de mundo que têm, a condição de classe social e econômica que têm, influenciou ou influenciará no seu futuro, na classe social e econômica que você será enquadrado devido às condições financeiras que você apresentará dentro da sociedade em que vive? ( ) Sim ( ) Não.

Vou tentar ser mais vulgar. Pergunto: Você acha que ser filho de família predominantemente branca, de classe média alta ou elite, moradora das áreas mais nobres e de maior custo de vida do país, teria algum impacto no seu futuro, na sua educação, na sua profissionalização e por fim na classe social e econômica em que as pesquisas do governo te enquadrarão?

Você acredita na maior tentativa de coação moral, contra as minorias sociais, de todos os tempos, a meritocracia? Esta reproduz a ideia de que em nossa sociedade tanto faz ser homem ou mulher (nem vou falar sobre tudo que há na questão de identidade de gênero entre ser homem e ser mulher), ser negro ou branco (nem vou falar sobre tudo que há na questão de identidade étnica entre ser negro e ser branco), ser rico, classe média, pobre ou miserável, ser natural das regiões norte e nordeste ou sul e sudeste, o que conta é o esforço individual de cada ser.

Cada um é aquilo que tratou de ser. Cada um está justamente onde merece. Mas, tenho a impressão que o buraco é bem mais fundo do que tentam nos fazer crer. Voltando às questões que lancei bem aqui acima, vamos tentar traçar uma rota para organizar nossos pensamentos e argumentos.

Eu, particularmente, responderia SIM às duas primeiras questões: sim, a condição de classe social e econômica dos meus avós tiveram influência direta na vida dos meus pais, assim como, a condição social e econômica dos meus pais tiveram influência direta no meu enquadramento social e econômico na atualidade. Seria ingênuo e até ignorante da minha parte acreditar que sendo meus pais, filhos de famílias pobres, na fase adulta da vida, seriam reconhecidos em classes sociais e econômicas diferentes.

O mesmo ocorre comigo e meu irmão, como poderíamos fazer parte da elite hoje se nosso histórico familiar se encontra todo em outro lugar? É claro que, é algo razoável que uma geração viva melhor que a anterior, pelo menos é bem comum que isso aconteça, mas, ao olharmos o tabuleiro de cima, as melhorias não nos trazem um afastamento significativo de nossas raízes. Pois bem, se para mim e para você, o passado tem um peso, tem uma influência, uma participação, por que para os negros – leia-se afrodescendentes: pretos e pardos – esse passado não teria nenhuma ligação para seu atual contexto social, econômico, cultural e político?

Por que cometer a grosseria intelectual de dizer que os negros de hoje nada tem a ver com os nossos ancestrais africanos e que, portanto, não devem receber nenhum tipo de reparação histórica pelo contexto que os empurrou e encurralou até aqui? Será que a ligação dos afrodescendentes de hoje está tão longe assim dos africanos que foram alijados de sua condição de humanos, mesmo esta sendo um bem inalienável? Será que o meu marido negro, filho e neto de negros, está realmente muito distante dos escravizados que fazem parte de sua história familiar, de sua árvore genealógica?

Afinal, a escravização do negro africano no Brasil, foi teoricamente abolida há 127 anos. Poxa, 127 anos é muita coisa, nem respinga mais nada em nós depois de tanto tempo! Será? Voltemos a citar o meu marido. Ele tem 30 anos. Gostaria de citar as idades certinhas de seus pais, avós, bisavós e tataravós, mas, no momento, não há possibilidade para obter tais informações, mas seu avô paterno completou há quatro meses, 90 anos, assim, dá para imaginar que os bisavós paternos do meu digníssimo, teriam aí, por baixo, 110 anos, portanto, provavelmente, vivenciaram a escravização do negro africano em nosso país.

Partindo daí, sigo uma linha de raciocínio que para mim, soa como lógica: Os bisavôs e bisavós do meu marido tiveram uma condição de vida que influenciou sim na condição de vida dos seus avôs e avós, um deles é esse senhorzinho que acabara de completar noventa anos.

Logo, a condição de vida dos avôs e avós do meu marido, foi determinante para a consolidação da vida do meu sogro e sogra como ela é hoje e, portanto, determinante para que meu marido e seus irmãos estejam na classe social e econômica que estão neste exato momento histórico.

Tudo bem até aqui? Vamos prosseguir. Que há uma ligação direta e inegável entre as condições de vida das diversas gerações que compõem uma família, creio, está claro. Agora, basta discutirmos sobre que condições são essas de que falo e que, a meu ver, dão todo o embasamento para o estabelecimento de cotas raciais nas universidades e em concursos de acesso a cargos públicos.

O dia era 13, o mês era Maio e o ano era 1888. Após pressões do movimento abolicionista, um membro da família Real, a Princesa Isabel, assina a tal abolição da escravatura. O Brasil estava no final do seu período imperial, estávamos às portas da República. E os negros, ex-escravizados, agora livres, viveram felizes para sempre. Viva à igualdade de oportunidades entre negros e brancos no Brasil! Viva! Mas e aí, o que a versão histórica do Homem Branco Europeu, colonizador, tenta esconder entre as fissuras dessa versão contada a nós?

É historicamente sabido por todos, que a o braço que construiu o Brasil, foi o braço negro dos africanos. Negros estes que foram impiedosamente extraídos de seu local de origem, da sua comunidade, da sua família, da sua cultura, das suas formas de organização social, dos seus deuses e de si mesmos. Foram cerceados da sua condição humana e passaram a ser objetificados, coisificados. Foram entulhados no interior de navios e foram atravessados pelo Atlântico em condições que nenhum inseto, por mais asqueroso que nos pareça, mereceria passar. Foram desembarcados num mundo totalmente desconhecido e inimaginável para a lógica de vida que tinham em seu continente, a África.

Os que conseguiram sobreviver à viagem do diabo até a terra desconhecida, além de chegarem nesta, como peças a serem negociadas, ainda se viam impossibilitados de sequer compreender linguisticamente o que ouviam ao redor. Eram adquiridos por senhores brancos como instrumentos de desenvolvimento de trabalhos que tinham um tempo de vida útil bem curto, dentro de poucos anos eram considerados inúteis, bons para serem jogados no lixo, serem substituídos, como um maquinário bem gasto e sem peças para fazer reparos.

Então, esses escravizados, considerados não humanos e nem animais, tinham o “toque de Midas” ao contrário, tudo que fosse relacionado ao negro era considerado: sujo, profano e demoníaco. Esses negros, desde o início resistiram à condição a que foram submetidos. Eram fugas, greves, negras abortando, assassinatos de senhores brancos, movimentos e revoluções. Para manterem sua fé, fizeram malabares e nos trouxeram o que chamamos de sincretismo religioso.

Foi com muita luta, muita resistência e muita união que os escravizados, ao longo de séculos, conseguiram se libertar. Claro, não podemos ignorar o contexto político econômico que fez com que a Inglaterra, dona do mundo capitalista à época, pressionasse o Brasil para o fim da escravidão, não por um sentimento humanístico, mas por simples interesse econômico: mais homens livres, trabalho remunerado, mercado consumidor aumentando. Simples assim!

Daí que chegou o grande dia e a tal Princesa Isabel assinou o documento que deixava livre todos os escravizados do Brasil. E é aí que pecam aqueles que não enxergam a necessidade das políticas de reparação para os negros. O que aconteceu depois do 13 de maio de 1888, estavam todos os escravizados livres para usufruir das mesmas e idênticas oportunidades de vida que os brancos que se sentiram no direito de dominá-los por mais de 300 anos?

A escravidão foi abolida e com ela toda a visão e todo o sentimento de asco, repulsa, desconsideração e desprezo que os brancos, senhores de escravos, construíram, disseminaram e reforçaram culturalmente no decorrer de trezentos e cinquenta anos e várias gerações, com relação aos negros? Você acredita mesmo que aqueles que viam os negros como suas posses, seus objetos, suas coisas das quais usufruíam como bem achasse melhor, do dia 13 de maio de 1888 em diante, passaram a ver esses mesmos negros, como humanos detentores dos mesmos direitos de dignidade à vida que eles?

Você realmente acredita que a partir do 13 de maio de 1888, esse homem branco, que se acreditou superior ao negro africano durante trezentos e cinquenta anos, achou justo que “seu patrimônio” passasse a ser considerado gente e que assim deveria ser tratado como igual? Você jura para mim que acredita que esses escravizados, a partir do 13 de maio de 1888, foram conduzidos às instituições de ensino do Brasil para que pudessem passar pelo processo de escolarização formal e profissionalização que, provavelmente, os levariam a uma condição de vida equiparada a do homem branco que até ontem era o dono do mundo? Você realmente entendeu, naquela aula de História, que os negros escravizados, humilhados, odiados, assassinados durante trezentos e cinquenta anos, foram tranquilamente inseridos na sociedade brasileira após o bendito 13 de maio de 1888 e assim acolhidos com todo o respeito e irmandade que o homem branco poderia oferecer?

Se sim, se você realmente acredita nisso tudo, há duas possibilidades: ou você realmente tem dificuldades em entender processos históricos, ou seus professores de História do colégio foram displicentes e/ou negligentes em demasia.

Após o tão aclamado 13 de maio de 1888, não houve a integração do negro à sociedade brasileira, muito pelo contrário, o que houve foram pencas de “planos infalíveis” para a eliminação desses negros da sociedade. Eles não foram contratados como trabalhadores assalariados, para tal, abrimos as portas para imigrantes europeus, que além de dignos de usufruir de pagamentos pelo seu trabalho, também dariam uma forcinha no processo de branqueamento da população que se formava.

Aos negros, não foram oferecidos moradia, trabalho, educação, saúde, nada! Depois que a escravidão foi abolida, os negros foram jogados à própria sorte, visto que não eram mais propriedade dos senhores e estes não tinham obrigações com os mesmos e isso era algo natural, o que não foi natural, foi o governo, o Estado brasileiro, não oferecer aos ex-escravizados, qualquer projeto de inserção na sociedade brasileira. Será que é tão difícil enxergar que os negros não tiveram vez em nossa sociedade, após o 13 de maio de 1888?! Durante o período em que foram escravizados, foram impedidos por lei de se escolarizarem, não tiveram chance de serem sequer alfabetizados.

Os muitos ofícios que sabiam exercer lindamente, não lhes serviram como fonte de renda, para isso, trouxemos o branco europeu pobre. Eram negros pelas ruas batendo cabeça, entregues à fome, às múltiplas formas de violência, humilhação, subalternização, etc. Aí você me diz: ah, mas isso já tem quase 130 anos. Pois é, 127 anos não são o suficiente para reparar os estragos de mais de 300 anos de subjugação, invisibilização, violação de direitos e dignidade dos negros que foram obrigados a fazer o nosso país.

Voltando à família do meu marido, os bisavôs e as bisavós dele foram escravizados e quando libertos não tiveram nenhuma chance de integração na sociedade em que viviam. Não foram inseridos tranquilamente no mercado de trabalho, não tiveram acesso à escola, quiçá à educação superior! Não tiveram direito a oferecer moradia digna, alimentação digna, cuidados básicos de saúde dignos aos seus filhos, avós do meu marido. Depois, os avós do meu marido filhos de ex-escravizados, tiveram uma vida livre, sofrida e miserável onde ainda carregavam os estigmas da ideia do branco europeu sobre o que era ser negro. Também, de maneira quase óbvia, não tiveram acesso à educação formal e, seus filhos, meus sogros, não tiveram uma vida muito diferente.

Filhos de uma família de negros, pobres, sem estudo e que ainda têm dificuldade de ser aceitos na sociedade brasileira, também tiveram uma vida livre, sofrida e miserável. Não sei muito, mas sei que minha sogra foi o que chamamos de boia fria, denominação para trabalhadores rurais que recebem um tratamento que não muito raro e sem requerer muito esforço, pode ser comparado à escravização vivida duas gerações anteriores a sua. E dessa forma, a vida do meu marido e dos meus cunhados, também não foi um rio de oportunidades. São homens e mulheres livres, sofridos e, se comparados ao todo branco da nossa sociedade, miseráveis. Estes, já tiveram acesso à educação formal, porém, pelo histórico sócio-econômico da família, estudaram em escolas públicas.

Precisaram trabalhar desde muito cedo, pois com os salários pagos ainda hoje à população negra do nosso país, tinham a necessidade de somar renda em casa para ter o mínimo de dignidade. Meu marido, foi agraciado com um dom, é artista e enveredou pelo caminho da tatuagem e está, apesar de muita dificuldade, alcançando algum reconhecimento na área em que atua. Seu sonho? Cursar artes plásticas numa universidade. Infelizmente, pagar por uma formação superior em artes, está fora das nossas possibilidades, ao mesmo tempo, uma universidade pública, fica difícil, pois para termos uma vida digna, ele trabalha seis dias por semana, doze horas por dia.

Mas, se algum dia houver a possibilidade dele cursar artes numa universidade pública do nosso país, eu acho completamente justo e digno que ele concorra por cotas raciais, não porque eu acredite que ele seja incapaz, mas em nome do passado que, mesmo ele não tendo vivido, exerce força suficiente sobre a vida dele hoje. Sim, é em nome de seus pais, avós e bisavós e tudo que a eles foi negado antes e após o 13 de maio de 1888 que acredito ser justo, digno e louvável que ele e todos os negros que estão onde estão devido à escravização de seus antepassados, usufruam de políticas reparadoras.

É como se toda essa historia que escrevi, pudesse ser ilustrada como uma grande corrida onde os brancos deram a largada em 1538 (no contexto brasileiro) e os negros tivessem sido impedidos de largar no mesmo instante que os brancos. Agora, o que as políticas reparadoras fazem, é pegar esses negros que não puderam largar na corrida em 1538 e os coloca ao lado do branco, na altura em que ele está e, a partir daí, depois que o almejado processo de equiparação social, econômica e política for completo, os negros passarão a correr por si só, sem interferências.

Mas, enquanto o negro for mais da metade da população brasileira e ainda assim for o percentual mínimo nos setores privilegiados, for a maior parte das classes social e economicamente vulneráveis, receber os mais baixos salários, mesmo sendo a maior parte da massa trabalhadora do país, possuir os mais baixos níveis de escolarização entre outras coisas, as cotas, assim como todas as políticas de reparação e ação afirmativa, serão necessárias, dignas e justas.

*Professora de História e Mestranda do PPGEDUC pela UFRRJ.