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Carolina Maria de Jesus. (FOTO | Reprodução). |
Divulgado o resultado do concurso de literatura promovido pelo MinC do soerguimento da terra devastada, dirigido a originais escritos por mulheres, o “Carolina Maria de Jesus”, o mar parecia calmo. Até que as escritoras vencedoras começaram a comemorar nas redes sociais e a imprensa literária bem estabelecida no mercado editorial e também as editoras das autoras vitoriosas, destacaram nomes conhecidos, chancelados pelo sistema literário ou, no mínimo, já publicados por casas editoriais de peso.
A
partir daquele momento, ventos revoltosos desfizeram a calmaria. Um conjunto
significativo de escritoras negras inscritas, classificadas (ou não) e não
premiadas, que se limitava às reclamações internas nos grupos de WhatsApp,
passou a questionar o veredito em praças midiáticas maiores e a marcar o perfil
social da ministra da Cultura no debate. Curioso que não percebi marcação da
Diretoria de Formação, Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, que talvez
pudesse ouvir as críticas das reclamantes de maneira organizada e prospectiva.
O reclame destinado à ministra Margareth Menezes e a outro ministro negro,
alheio ao tema, me pareceu menos uma estratégia de “falar com a Cacique e não
com os indígenas”, e mais o desconhecimento do funcionamento da estrutura
promotora da competição e das possibilidades reais de criticar, pressionar,
intervir, negociar e mudar as coisas por dentro.
Algumas
pessoas me enviaram o material de contestação do resultado e resolvi publicizar
o que penso nesta crônica. A pergunta que pretendia alterar a rotação da Terra
era: “Carolina Maria de Jesus seria uma das ganhadoras do Prêmio Literário
Carolina Maria de Jesus”? Um bom exercício de retórica, mas tentarei discutir,
inicialmente, o que penso ter movimentado a pergunta, a seguir, quero tratar do
me parece ser a falha mais grave do certame.
Vamos
lá: O século 21 tem testemunhado o surgimento de escritoras que “se descobrem
escritoras e se autorizam a sê-lo”. Leituras de textos fundamentais de Audre
Lorde, Glória Anzaldúa, bell hooks, Conceição Evaristo, entre outras, têm
embasado essas autodeclarações de mulheres não-hegemônicas que escrevem.
“Escrevo, sou escritora!” Ninguém se arrisca a problematizar a legitimidade
deste tipo de declaração ancorada no desejo de ser escritora e numa vivência
(em muitos casos, um discurso coletivo que representaria um número maior de
mulheres socialmente subalternizadas) que dá corpo e voz a demandas,
experiências, fazeres e formas de sentir e de viver invisibilizadas, esmagadas
pela literatura canônica das que têm “um teto todo seu” para escrever.
Em
concomitância à autorização para ser escritora temos o exercício autoficcional
ou escrevivente que, no texto, debruça-se sobre traumas e quer curá-los por
meio do ato da escrita. Popularizou-se a ideia de “uma literatura que cura” e
reivindica-se espaço para ela. Outra vez, algo legítimo, mas, como o jogo não
está ganho, tudo ainda está em disputa, na minha condição particular de
escritora negra posso refutar a ideia de que “escrevo, portanto, sou
escritora”, afirmando que “canto, gosto de cantar, mas não sou cantora”. Ou
seja, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Profissionalizar-se no
exercício de um ofício, no caso, a escrita literária, é diferente de escrever
para sobreviver à dor, para emancipar-se, para sonhar e ser livre, embora você
possa fazer isso tudo na escrita profissional. Não são temas e funções
excludentes.
A
profissionalização passa pelo desenvolvimento das técnicas de escrita, de
produção de um texto literário, no qual você pode falar do que quiser,
inclusive de dores, traumas e temas urgentes para determinados grupos ou mesmo
para que a sociedade como um todo atente a eles, enfrentando o maior desafio da
literatura, ou seja, como você fará isso e a que lugares do humano você
atingirá pela forma escolhida (trabalhada) para modular seus sentimentos, que
são apenas o material literário inicial, ao qual suas habilidades técnicas
transformarão (ou não) em literatura.
Não
pretendo, com essa argumentação preliminar, referendar o resultado do concurso
e, principalmente, o processo. Nada disso. Parece-me que o Prêmio foi desenhado
a partir de um erro primário, infantil, o de misturar as concorrentes de
diferentes trajetórias e volume de produção. Uma escritora com mais de dez
livros publicados não pode concorrer com uma estreante na mesma categoria, com
alguém que nunca publicou, que não teve seu texto melhorado por processos
editoriais. Mesmo que existam duas possibilidades: a de que essa autora
experiente seja apenas uma autora insistente e não uma boa autora, e de outro
lado, que apareça alguma autora genial que nunca foi publicada, muitíssimo melhor
do que a autora insistente.
É
muito possível, mas um concurso não pode ser pautado por exceções. Espera-se
dele a formulação de regras gerais que possam contemplar o maior número de
pessoas, não as exceções.
Em
tese, quem já está estabelecida no mercado não deveria concorrer com quem está
começando. Mas os organizadores do concurso não devem esperar pelo
discernimento de quem já tem um lugar ao sol, até porque, esse lugar sempre é
provisório e resulta de trabalho incessante e de sacrifícios. A organização do
Prêmio é que deveria ter partido do pressuposto de que um original de escritora
inédita não deve concorrer com o original de uma escritora que já tem trajetória
consolidada como tal.
Retomando
a ideia do labor incessante e do sacrifício pessoal das escritoras para
construir uma carreira, ao tempo que escrevem originais merecedores de
premiação, consideremos o exemplo de algumas funcionárias públicas da área da
saúde, da educação e da cultura, que disputaram e ganharam o Prêmio Carolina
Maria de Jesus. Gente que trabalha oito horas por dia, dentre o pessoal da
saúde, em particular, mulheres que trabalham em dois hospitais diferentes,
naqueles plantões malucos e esgotadores. Essas pessoas ainda conseguiram
inventar tempo para escrever textos bons e isso é digno de premiação (e da
minha especial admiração).
E
ainda tem a questão financeira, porque, pensemos juntas: se a concorrente tiver
um salário médio de sete mil reais (chutando alto), um prêmio de cinquenta mil
reais representa o valor de sete meses de trabalho. Uma possibilidade concreta
de fazer uma viagem de férias com a família; de pagar prestações atrasadas de
um apartamento financiado ou amortizar a dívida; de comprar um carro usado em bom
estado ou uma motoca zero; de comprar aquecedores, instalar ar-condicionado em
toda a casa, e filiar-se a algum clube vip que tenha acesso a informações
preventivas sobre tempestades e chuvas de vento, ou, quem sabe, aplicar o
montante em fundos diversificados para ascender à condição de “investidora” e
ganhar entre 250 e 430 reais por mês enquanto, finalmente, “o dinheiro trabalha
para você”.
Até
aqui, falamos de justiça e legitimidade das escolhas e posicionamentos das
escritoras, todas as que se inscreveram, mas advogamos também a injustiça e
inadequação de que perspectivas e trajetórias tão distintas concorram entre si.
Há que haver critérios gerais que busquem aproximar as iguais, mesmo sabendo
que sempre seremos negras, indígenas, lésbicas, sapatonas, pessoas trans,
concorrendo com mulheres que se beneficiam de não carregar os predicados que
carregamos, de não serem quem somos no meio social que tem políticas
deliberadas de morte para nossos corpos; isso é inquestionável, mas não é disso
que tratamos agora. O Brasil acumulou uma experiência muito significativa de
formulação de políticas de ações afirmativas nos últimos vinte e cinco anos,
seria de bom tom consultá-la, considerando também conhecimentos consolidados
sobre o mercado editorial e sobre a produção literária de grupos
não-hegemônicos. Não basta apenas consultar as pessoas negras da equipe.
Quanto
à resposta à pergunta no início desta crônica, penso que Carolina seria
desclassificada de primeira, entretanto, a avaliação da literatura de Carolina
merece discussões mais amplas e profundas sobre a própria literatura brasileira
e suas hierarquizações, não apenas deste concurso e tampouco restrita ao Quarto
de despejo, publicação mais divulgada da autora. Poderíamos colocar na roda
textos menos conhecidos como o conto Onde estaes Felicidade?, publicado pela
editora Me Parió Revolução, em 2014.
Ainda
assim, penso que instar centenas de mulheres participantes do concurso a saber
quem foi Carolina Maria de Jesus, e que escritoras brancas ganhadoras precisem
vocalizar o nome do prêmio, e que vencedoras negras se sintam orgulhosas da
vitória num concurso que leva o nome de uma de nossas referências maiores, seja
um símbolo importante no caminho da produção de referências negras para todas
as pessoas, idades e percursos.
______
Com informações do jornal Rascunho.
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