E
quem mudaria? Quem mudaria seria quem estivesse no sofrimento. Quem arreda a
pedra não é aquele que sufoca o outro, mas justo aquele que sufocado está. (Ensinamentos de Vó Rita, personagem do
romance Becos da Memória de Conceição Evaristo)
No
dia 23/07, foi publicada no portal do UOL uma entrevista com o pré-candidato
Douglas Belchior, professor, dirigente
da UneAFRO Brasil, organização do movimento negro que, há 10 anos pelo menos,
trabalha com educação popular e hoje conta com mais de 40 núcleos de base em
funcionamento, fazendo formação política e fortalecendo as trajetórias
educacionais de jovens negr@s e pobres nas mais diversas regiões periferizadas
do Estado de São Paulo, a entrevista em questão tratava sobre política
partidária, negritude, financiamento e distribuição de recursos em campanhas
eleitorais.
Financiamento
de campanha é, definitivamente, uma questão dura a ser enfrentada, calcanhar de
Aquiles do sistema político brasileiro, muito já se debateu sobre a questão e
poucas ações de modo a produzir avanços do ponto de vista democrático foram
encaminhadas. A temática abordada na entrevista, justamente, tocou em uma das
questões fundantes, muito cara à política brasileira, sobretudo nestes momentos
de organização interna dos partidos tendo em vista o início do período
eleitoral, qual seja, como os recursos do fundo partidário são distribuídos
entre as candidaturas nas legendas partidárias.
O
debate enunciado por Belchior, na entrevista, não nega um debate mais
aprofundado a respeito de como se pensar um sistema eleitoral mais democrático,
gastando menos dinheiro, sendo mais efetivo em comunicação de propostas do que
em marketing pessoal levando em conta o fato de que, mesmo que seja do ponto de
vista retórico, há um consenso na
sociedade brasileira sobre a necessidade de renovação de propostas que encaminham
um projeto nacional e que tal empreita não pode prescindir de nov@s quadros e
lideranças políticas.
Daí
surge uma questão que se pressupunha capital para o campo progressista: como
fortalecer lideranças políticas que representem a inovação do ponto de vista da
representatividade e ao mesmo tempo estejam vinculadas a um tradição de luta
social orgânica, quadros que performassem na disputa da política institucional
os setores mais vulnerabilizados da sociedade brasileira nas suas formulações,
conteúdos e métodos mesmo em um cenário adverso.
Cenário
político esse que, de maneira sintética, poderia ser caracterizado pela
principal liderança política popular brasileira presa sem nenhuma prova
concreta que o condene; com apenas 45 dias oficiais de campanha eleitoral; com
objetivas perseguições aos partidos do campo popular e os mais diversos
expedientes mobilizados para se criminalizar a militância social; a ausência de
interdição social dos discursos de ódio
sustentadores de considerações apressadas e simplórias do estado de coisas em
que se vive aliado a compreensões politicas dos mais variados tons os quais
perpassam o liberalismo econômico e o conservadorismo moral; e a descrença da
população na política institucional de maneira geral.
Ingenuidade
histórica acreditar que nesta conjuntura, preocupações tão importantes tal como
democratizar a acesso da população negra, indígena, mulheres e LGBTs aos poderes da política institucional
centralizariam as agendas partidárias a ponto de os partidos políticos se
debruçarem por sobre os seus funcionamentos e repensassem os mecanismos
viciados de distribuição de recursos internos para fazer, inclusive, com que as
representações das populações mais vulnerabilizadas da sociedade brasileira
obtivessem estruturas suficiente para realizar, no âmbito da política
eleitoral, o potencial pleno das
experiências acumuladas em mais de 300 anos de sujeição e luta para garantir
vidas historicamente sufocadas.
Lamentavelmente,
neste momento singular de reorganização histórica do campo progressista, após
um golpe institucional que parece não cessar nunca, a necessidade premente de
se discutir uma proposta alternativa, progressista e que se centralize à partir
da garantia da vida, um dos principais instrumentos estratégicos desse período,
o PSOL não ter a grandeza política e a generosidade revolucionária necessária
para suportar os questionamentos, que não dizem respeito apenas a ele próprio,
muito embora Douglas Belchior cerre fileiras neste partido, ampliar o debate,
rever posicionamentos e abrir mão do papel histórico, transformador da política
nacional, que lhe caberia.
O
que se viu no último período, em particular nas redes sociais, foram exemplos
cabais de tentativas de desconstrução da legitimidade de uma liderança social
do movimento negro com 20 anos de história de luta, que entre tantas outras que poderiam estar na
disputa, foi uma das que resistiu e sempre vocalizou a denúncia, a construção e as proposições das formulações construídas por forças políticas
negras.
Uma
das perversidades do racismo contra negros é considerar pessoas negras menos
inteligentes, pouco afeitas aos pensamento lógico racional e incapazes de
formulações políticas, quando observamos
a maneira pouco digna pela qual o debate enunciado por Belchior
percorreu, no sentido de potencializar desqualificações metodológicas e, como
bem considerou a advogada e militante do Movimento Negro Beatriz Lourenço,
ausente de coragem em não enfrentar o mérito da questão, demonstra de maneira
exemplar como o racismo opera no jogo político-narrativo nos partidos.
A
título de exemplo do que ocorreu na última semana, no intuito de materializar,
exatamente, o expediente racista dessa política-narrativa é possível destacar a
maneira pouco honesta com a qual o professor Maringoni, militante histórico da
esquerda brasileira, filiado e com atuação de revelo no PSOL, tentou encaminhar
o debate.
Como
pode ser observado no post, o intelectual demonstrou a sua pouca sensibilidade
e compreensão da complexidade da sociedade brasileira e de como o racismo é um força promotora de
morte. No intuito de desqualificar Belchior e o trabalho da UneAFRO- Brasil
que, por meio de um edital público promovido por uma organização internacional,
conquistou a possibilidade de receber
recursos para custear algumas atividades destinadas a estudantes negr@s e
pobres como transporte e lanche, além de recursos mínimos para o funcionamento
de uma secretaria diminuta, que causaria espanto se comparado a qualquer grande
ONG financiada pelas mesmos tipos de instituições, as quais tem em seus
conselhos intelectuais renomados, via de regra, brancos, ligados a instituições
públicas de ensino e pesquisa, que constroem suas respectivas carreiras
acadêmicas teorizando muito de como o mundo deve vir-a-ser, por vezes,
engajados em partidos políticos e com gordurosos pró-labores, mas pouco
sensíveis e incapazes de traduzir o sofrimento do povo em proposições
políticas efetivas e que superem os
sofrimentos destas coletividades; boa parte das vezes, distanciados e pouco
sensíveis do cotidiano subalternizado da vida.
Esse
episódio da vida pública nacional, também, demonstrou, enquanto sociedade,
nossa pouca compreensão histórica da política brasileira, nossa pouca atenção
ou talvez, interesse em aprender com os erros passados. Como se sabe, a memória de uma sociedade é
muito mais aquilo que se narra, os motivos que foram relevantes para se
escolher os fatos que foram narrados e as forças sociais que legitimam a
narração. Cabe, portanto aqui, um esforço de recontar um passado recente,
momentos iniciais de disputa interna do campo democrático e construção da Nova
Republica que, costumeiramente, foi deixada ao lado, porém, sempre que possível
retomada pelo Movimento Negro.
Lélia
Gonzales, uma mulher negra resistente, uma das militantes de maior expressão do
movimento negro dos anos 80, filiada ao PT desde 81, em 1985, entregou sua
carta de desfiliação, tendo como um dos argumentos centrais o fato do partido,
mesmo tendo em suas fileiras homens e mulheres negras alinhados com a
estratégia, suas formulações e protagonismo nunca eram centralizadores do
processo político do partido mais popular da história do Brasil, escreveu:
Afinal,
foi graças ao PT (às suas propostas) que me decidi a entrar na vida
político-partidária, acreditando na possibilidade de inovação dentro da mesma.
Disso, não poderei me esquecer; embora sabendo que os caminhos são tortuosos e
que a luta não pode deixar de continuar junto com e em favor dos explorados,
oprimidos, discriminados e que a luta não pode deixar de continuar junto com e
em favor dos explorados, oprimidos, discriminados. Com respeito de sempre, as
saudações cordiais de quem sempre buscou estar nas lutas dos discriminados.
(GONZALES, Lélia. 1985)
É
chegada a hora do campo progressista, dos partidos políticos de esquerda
observarem o seu passado recente, reconhecerem que os erros históricos não são
prerrogativas exclusiva do governo Lula ou a sua adesão a um projeto nacional
Neo-desenvolvimentista; enfrentar suas singulares dificuldades em reconhecer o RACISMO e o
PATRIARCADO como forças construtoras das desigualdades nacionais e que impõe
suas dinâmicas às CLASSES SOCIAIS; que
um projeto alternativo de soberania nacional, geração e distribuição de riquezas
só faz sentido se a garantia da vida de todas as pessoas for o fim; que há de
se ter coragem para enfrentar e criar estratégias que incidam sobre os poderes
internos aos partidos de forma a construir mecanismo para que os militantes da
base, @s negros, as mulheres, @s LGBTs sejam reconhecidos como formuladores
políticos legítimos, não apenas operadores da política; e que o reconhecimento de tal legitimidade se
dá, inclusive, não apenas, por meio de condições estruturais de promover os
debates, as proposições, as lideranças e, por que não, estrutura robusta para
se participar do processo eleitoral; reconhecer que não é possível assumir o
erro histórico, como acontecera no passado, de tornar insustentáveis a
permanência de lideranças negras, mulheres, LGBTs dos partidos, das
organizações e coletivos dos movimento sociais.
O
preço do não enfrentamento radical ao racismo pelos partidos de esquerda foi:
por mais de trinta anos o sufocamento de um debate progressista sobre a
garantia da vida e segurança pública no Brasil, o que resultou nos mais de 60
mil homicídios anuais que a sociedade brasileira tem de conviver e fazem de
nosso país apenas um ensaio débil de uma pretensa e frágil democracia.
Por
todas as pessoas que foram sequestradas do continente africano e morreram na
travessia do Atlântico.
Por
todas as pessoas que aqui chegaram e foram forçadas ao trabalho compulsório;
Por
todas as pessoas que sofreram as torturas dos corpos e das almas;
Por
todas as mulheres negras e indígenas estupradas;
Por
todas as crianças forçadas ao trabalho para sobreviver;
Por
todas as mães dos filhos mortos pelo Estado;
Por
todas as mulheres negras que sofrem violência doméstica e no parto;
Por
todas as pessoas presas que foram impossibilitadas de construir caminhos para a
vida distante do cárcere;
Pelo
direito à vida livre das amarras do racismo, do patriarcado, da lgbtfobia e do
capital;
Por
tod@s os povos colonizad@s do mundo;
Por
Zumbi dos Palmares, Dandara de Palmares, Maria Firmina dos Reis, Cruz e Souza,
Lima Barreto, Antônio Conselheiro, Mariguella, Oswaldão, Helenira Rezende, Dadá
(Maria Sérgia), Carolina Maria de Jesus, Guerreiro Ramos, Luana Barbosa,
Matheusa, Amarildo, Marcos Vinícios, Lélia Gonzales, Beatriz do Nascimento,
Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Eduardo Oliveira, Amilton
Cardoso, Virgínia Bicudo, Neusa Santos, Sabotage, Marielle Franco e tant@s outr@s. (Por Adriana de Cássia
Moreira, no Negro Belchior).
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