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(Foto: Reprodução/ Blog o Cafezinho). |
O
debate sobre o apoio a Ciro Gomes ficou temporariamente interditado pelo
irracionalismo. “Isso não é mais debate,
Miguel, é guerra de bugio, como dizemos aqui no sul”, desabafou um amigo,
apreensivo com o rumo que as coisas tomaram. Este amigo, um intelectual bem
relacionado nos altos círculos do PT, que trabalhou no governo, era um dos mais
entusiasmados com a possibilidade de uma aliança do partido com Ciro Gomes. E
assustou-se com a gritaria. Mas assustou-se porque deseja a aliança, e tem medo
que o barulho atrapalhe a construção de um entendimento.
“Miguel, você viu o post publicado agora no
247″, e me mandou o link de um artigo de Carlos D’Incao, intitulado “Afinal
quem é Ciro Gomes”. D’Incao é um historiador que tem posições duras contra
qualquer um que não seja do PT. Em março deste ano, atacou Guilherme Boulos e
Manuela D´Ávila, num artigo bastante agressivo, no qual acusa ambos de fazerem
o jogo da direita e serem “esquerdotoches” :
Trecho:
[Boulos
e Manuela] fazem exatamente aquilo que o grande capital e as forças neoliberais
querem. Ao se lançarem como supostas “opções”, jogam abundante água no moinho
da direita, que apresenta de forma entusiasmada uma suposta “nova esquerda”,
distanciada da “velha e obsoleta” esquerda de Lula e do PT. E
essa “nova esquerda” já nasce batizada: são os “esquerdotoches”. O suposto
campo progressista que se diz de esquerda, mas que atua exatamente como a
direita quer.Boulos
foi o último dos “esquerdotoches”.
Mas
ninguém deu muita bola para o post. Seu artigo contra Ciro teve melhor sorte,
pois veio de encontro à onda de sectarismo que varreu o PT nos últimos dias.
O
artigo é uma coleção de picaretagens retóricas. Tudo se resume a uma acusação:
que Ciro mudou de partido várias vezes e que é de… direita.
Essas
acusações de mudança de partido, contra o Ciro, vindas do PT, tem um aspecto
profundamente injusto: Ciro passou por várias legendas, sim, mas o fazia para
continuar apoiando os governos petistas. Conforme as legendas em que ele
entrava iam abandonando o governo e migrando à direita, ele entrava em outro
partido, à esquerda, que fazia parte da base aliada dos governos Lula/Dilma,
aos quais serviu com rara (e põe rara nisso!) lealdade!
Recapitulemos
o histórico partidário de Ciro.
Ciro
foi, de fato, filiado ao PDS (ex-Arena), partido de seu pai. Foi o único partido
de direita de que participou. Mas já em 1983,
com menos de 25 anos, transferiu-se para o PMDB, que era a esquerda
possível naqueles tempos bicudos. Desde o início da década de 90, Ciro fala
sobre seu período no PDS com muito constrangimento, enfatizando que era ligado
à “esquerda católica”. Não sei até que ponto Ciro tenta negar o passado, mas é
fato é que ele jamais se orgulhou de ter participado, mesmo que brevemente, de
um partido conservador.
Ciro
foi fundador do PSDB, legenda criada em 1988. Todos se lembram que o partido
não era a legenda conservadora e neoliberal de hoje: era o partido da
social-democracia, de Mario Covas, Bresser Pereira, e de um FHC apoiado por
ninguém menos que Lula!
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(Foto: Reprodução/ Blog o Cafezinho). |
Lembro-me
que meu pai, um homem de esquerda e uma pessoa extraordinariamente generosa e
comprometida com valores democráticos, foi eleitor do PSDB até o início de
1999, quando morreu. Discutíamos em casa amigavelmente, porque eu sempre fui
Lula.
Ser
do PSDB, naqueles tempos, não era ser de “direita”. Pelo menos não até o PSDB
ser transformado e corrompido pelo poder.
Ciro
sai do PSDB em 1996, ou seja, no ano seguinte à chegada do partido ao poder,
antes da guinada conservadora de FHC. Antes da privataria. Antes mesmo do jogo
sujo da reeleição, quando o partido suborna deputados para aprovar a emenda que
permitiria a FHC esticar seu mandato por mais quatro anos.
Por
que Ciro Gomes sairia de um partido que estava no poder, e que permaneceria no
poder até 2002?
Quando
a gente critica um político que muda de partido, devemos ser justos para fazer
a seguinte avaliação: foi o político que mudou, ou foi o partido?
Em
1997, Ciro Gomes ingressa no PPS, que era o novo nome do Partido Comunista
Brasileiro. A partir daí, Ciro transitará, pelos próximos 21 anos (com exceção
de uma estadia relâmpago no PROS), apenas em legendas identificadas
programaticamente com o socialismo e esteve sempre ao lado de Lula, em quem
(diz o próprio Ciro) vinha votando, no primeiro ou no segundo turno, desde
1989.
Ciro
Gomes sai do PPS quando o partido rompe com Lula em 2004, e ingressa no PSB, na
época um importante partido da base aliada. Saiu na hora certa.
Ciro
sai do PSB em 2014, quando Eduardo Campos, presidente nacional do partido,
lança uma candidatura própria, com uma plataforma de direita. Ciro defendia,
junto com seu irmão Cid, que o PSB continuasse alinhado ao PT, e apoiasse a candidatura
de Dilma Rousseff. De novo, saiu na hora certa.
Nesse
processo de transição, Ciro fica alguns meses no PROS, partido recém-criado por
uma articulação meio bizarra, de empresários e políticos de direita e esquerda,
com objetivo de esvaziar a direita, sobretudo o DEM, e fortalecer a base do
governo.
Desde
2015, Ciro Gomes está no PDT, a legenda criada por Leonel Brizola.
As
especulações sobre uma aliança entre PT e Ciro Gomes rolam desde 2016, mas se
intensificaram há dois meses, após a
condenação de Lula em segunda instância.
A
diferença entre políticos profissionais e militantes é que os primeiros
precisam enxergar a situação com mais realismo, mais pé-no chão, e os
governadores são os mais preocupados com a indefinição do quadro, porque à aflição
de administrar seus estados numa relação cada vez mais difícil com a União, e
numa conjuntura de terrível crise fiscal e crescente endividamento, soma-se a
necessidade de consolidar, desde já, alianças e estrategias para as eleições
estaduais.
Alguns
blogs políticos da Bahia começaram a publicar notas sobre uma suposta
articulação de Rui Costa, governador do PT, em prol de Ciro Gomes. A
informação, que vinha da coluna Painel da Folha, disseminou-se como um rastilho
de pólvora pela imprensa política baiana, e seria confirmada meses depois, com
uma entrevista também à Folha de outro baiano peso-pesado, Jaques Wagner, um
dos cérebros do PT e segundo homem na linha “sucessória” de Lula. Wagner afirma
a Folha que há, sim, a possibilidade de uma composição com Ciro Gomes.
A
entrevista gerou mal estar em algumas áreas do PT, obrigando a presidenta do
partido, Gleisi Hoffmann, a fazer um teatrinho com Wagner, fingindo que o
enquadrava. O próprio Wagner, de olho nas reações, faz um gesto de recuo,
dizendo que o Lula ainda era a prioridade, e que não tinha dito exatamente
aquilo que dissera. Alguns petistas começaram a espalhar que houve erro de
“interpretação”, fake news, e que a fala de Wagner não tinha jamais existido.
Uma
semana depois da entrevista de Wagner, e como num movimento coordenado, Flavio
Dino sinalizou na mesma nessa direção, ao defender, em entrevista à Folha, que
os partidos de esquerda, PT, PCdoB e PSOL, abrissem mão de suas candidaturas, e
apoiassem Ciro Gomes. A declaração de Dino se destinava sobretudo ao PT,
naturalmente. Manuela D’Ávila, candidata do PCdB, que aparentemente não foi
pega de surpresa, reagiu com uma frase do tipo: “por mim, tudo bem”. Boulos nem
comentou, porque é impossível o PSOL participar de uma frente como essa num primeiro
turno. A reação agressiva veio desse lulismo difuso, não necessariamente
identificado com o PT, além das áreas menos flexíveis da militância petista.
Diante
do burburinho, Dino divulga uma mensagem no Twitter, com uma platitude
qualquer, também para acalmar os setores mais irritados do PT. Mas não retira o
que disse.
A
direção petista, por enquanto, parece acuada por setores agressivos da
militância, que começaram a fazer campanha contra Ciro Gomes como se ele fosse
o principal inimigo.
Mas,
ora bolas! O Brasil vive o momento mais dramático da nossa história, e as
chances de Lula obter o direito de disputar as eleições, ou de conseguir
governar, caso seja candidato e ganhe, são absolutamente nulas.
Com
Ciro, temos um candidato bem posicionado nas pesquisas, que ganha da direita
tranquilamente no segundo turno, cujo partido tem sinalizado, desde 2016, que
deseja o apoio do PT, que tem feito uma campanha ousadamente nacionalista e
progressista, defendendo uma vigorosa reindustrialização do país, a volta do
investimento público, a revogação da reforma trabalhista, a desapropriação dos
campos de pré-sal entregues aos estrangeiros.
E
o que faz a militância petista? Começa um campanha de agressão a Ciro Gomes?
Por
exemplo: há um vídeo correndo por aí de Ciro Gomes em que menciona um possível
apoio a campanha presidencial de Aécio Neves em 2010. O vídeo é provavelmente de 2008 ou 2009, ou mesmo
antes, quando Aécio ainda era um governador popular em Minas, que dialogava
muito bem com a esquerda, a ponto de receber, frequentemente, elogios de Lula e
Dilma. Aécio teria sido o fiador político da série de investigações de Amaury
Ribeiro, que resultariam no livro Privataria Tucana, uma obra fundamental para
derrotar o PSDB nas eleições de 2010. As pessoas não se lembram, mas Aécio
quase saiu do PSDB naquele ano. Havia um assédio (no bom sentido) do PT e do
PMDB para que ele entrasse no PMDB e aderisse ao governo. Até mesmo Dilma, em
2010, segundo a Folha, teria defendido uma “dobradinha” com Aécio Neves nas
eleições.
Em
2009, em entrevista a uma rádio em Minas Gerais, Dilma Rousseff, então ministra
da Casa Civil do governo Lula, diz que Aécio era um dos melhores governadores
do Brasil. Em 2014, a campanha de Aécio vai abusar desses vídeos.
A
política dá tantas voltas que algumas coisas hoje parecem inverossímeis.
Reportagem da Folha de 15 de maio de 2007 diz que “Lula não descartou hoje a
possibilidade de apoiar Aécio Neves para a presidência da república”.
Reparem
que Lula cogita inclusive apoiar Aécio Neves mesmo se ele permanecer no PSDB…
“O candidato [da base aliada] pode ser do PSDB?”, pergunta Lula,
misteriosamente. Se o PT, no auge de sua popularidade, em 2007, quando tinha
enfim superado a sua primeira grande crise e obtido uma vitória eleitoral
esmagadora em 2006, cogitava apoiar Aécio Neves para presidente da república,
por que cargas d´água não pode agora apoiar Ciro Gomes?
O
triunfalismo de parte do PT, que fala que o partido é grande, que ganhou quatro
eleições, que tem tantos deputados, peca por esquecer o principal: o partido
foi derrubado por um golpe que produziu a maior crise política e econômica em
muitas décadas. Os mesmos setores que derrubaram Dilma, continuam aí, mais
fortes do que nunca. Para vencê-los, é óbvia a necessidade de ampliar o arco de
alianças. A ideia de driblar a rejeição ao PT dentro dos círculos de poder (em
especial nas corporações), através do lançamento de uma cara nova, precisa ser
levada em consideração!
Entendem
porque este sectarismo de setores do PT, com essas táticas de divulgar
vídeozinhos antigos de Ciro, é tão sem noção? O jogo político naquele tempo era
esse mesmo. Lula e seus aliados, entre os quais Ciro Gomes, cercavam Aécio para
dividir o PSDB, e conseguir governar. E conseguiram.
Em
2010, Ciro Gomes teria papel central na campanha de Dilma Rousseff, como
coordenador de sua campanha no segundo turno.
Outro
fator curioso é o súbito esquerdismo radical do PT.
Duas
outras peças circularam nas últimas 24 horas contra o Ciro. Um é o artigo de
André Singer, que ganhou o seguinte título no 247: “Steinbruch afasta Ciro da
esquerda”.
O
mesmo blog resumiu o artigo assim:
André
Singer analisa, na Folha, a possibilidade de o dono da Companhia Siderúrgica
Nacional, Benjamin Steinbruch vir a ser vice de Ciro Gomes, depois de ter se
filiado ao PP: “A filiação do empresário de modo a poder ser vice na chapa de
Ciro Gomes expressa as ambiguidades que cercam a candidatura do ex-governador
cearense”, escreve ele. “O pragmatismo de Ciro é compreensível” continua.
“Trata-se de um político profissional disposto a fazer o necessário para
ganhar. Atrair um grande capitão de indústria, como fez Lula com José Alencar,
soma. Do ponto de vista da esquerda, entretanto, tais manobras complicam a formação
de um programa comum”
Várias
perguntas se impõem simultaneamente: O que significam essas frases: “o
pragmatismo de Ciro é compreensível”, “político profissional disposto a fazer o
necessário para ganhar”? Isso são elogios ou xingamentos? Detalhe: Ciro ainda
não definiu quem será seu vice. Daí Singer fala que Ciro Gomes está imitando
Lula, atraindo um “capitão da indústria”, mas ao mesmo tempo afirma que “do
ponto-de-vista da esquerda, entretanto, tais manobras complicam a formação de
um programa em comum”. Hum? Se Lula fez, porque Ciro não pode fazer? Por acaso
o Brasil vive hoje um grande boom do pensamento revolucionário de esquerda?
Singer acha que o eleitorado lulista ficará horrorizado se Ciro Gomes imitar…
Lula?
Por
fim, e encerrando o post, temos um virulento ataque de Luizianne Lins (PT) a
Ciro Gomes. Mais uma vez, recorro ao 247:
A
ex-prefeita de Fortaleza e deputada federal Luizianne Lins (PT) rechaçou a
possibilidade de o ex-governador Ciro Gomes (PDT) representar a esquerda na
eleição presidencial. “De jeito nenhum!”, disse; “Eu não acho que ele tenha
trajetória de esquerda, que ele tenha pensamentos de esquerda, eu não acho que
tem sintonia com a esquerda brasileira, muito menos acho que o PT o apoiaria ou
sairia como vice dele”
Isso
aí tem um nome: irresponsabilidade. Não sei de onde a deputada tirou tanto
esquerdismo. Ela parece estar se referindo a uma eleição de grêmio estudantil.
Como vimos, não é, definitivamente, algo que ela aprendeu com Lula.
Além
do mais, não é verdade. Qualquer um que assista a uma entrevista de Ciro Gomes,
identificará um discurso muito claro de esquerda. Ele defende um processo
vigoroso de reindustrialização, ampliação dos investimentos públicos, retomada
de uma política externa independente, impostos progressivos, tributação de
lucro e dividendos, desapropriação dos campos do pré-sal entregues a
multinacionais. Mais esquerda que isso? Querem o que? Que Ciro cante a
Internacional Socialista na TV? Me admira muito ver setores do PT aderindo à
essa vulgar demagogia ideológica!
Ciro
não é, evidentemente, perfeito. Eu sei qual o problema dele com a esquerda
“militante”: o jeito “mandão”, o ar arrogante, tipo “coronel”, que as pessoas
não costumam identificar nos quadros de esquerda, os quais ou são irreverentes,
estilo povão bem humorado, como Lula, que finge uma simplicidade que nunca teve
(é muito mais sofisticado que muitos intelectuais), ou são quietos, tímidos,
como Pimentel, governador de Minas, e Wellington Dias, do Piauí. Haddad e
Jaques Wagner, apesar de intelectuais, falam manso, voz baixa, como pessoas
sempre dispostas a pedir desculpas. Procuram sempre se expressar de maneira
simples, didática, como se estivessem dando aula para crianças. Neste sentido,
são parecidos com os tucanos: Serra, Alckmin, FHC falam como se os ouvintes
fossem idiotas ou tivessem seis anos de idade. Falam lentamente, repetindo mil
vezes a mesma expressão, como se a gente não tivesse entendido da primeira vez.
Ciro fala alto, nervosamente, gesticulando, usando palavras difíceis, como um
coronel tentando impressionar o pião, e sempre com um risinho sarcástico no
canto da boca. Entretanto, isso é apenas um aspecto superficial de sua
personalidade, um trejeito, não tem a ver necessariamente com sua maneira de
ver o mundo, que deve ser analisada a partir de suas ideias. Haddad, como
presidente, provavelmente seria muito mais tucano do que Ciro Gomes.
Ciro
Gomes e seu irmão, Cid, são aliados do PT no Ceará. Apoiaram a eleição de
Camilo Santana em 2014, do PT, e hoje apoiam sua reeleição. A manifestação de
Luizianne, portanto, beira a traição política: Ciro Gomes é o mais importante
aliado de seu partido no Ceará. Para que esse tipo de agressão? É óbvio que há
um fator pessoal, menor, por trás.
Seja
como for, acho que o ruído em torno dessa possível aliança Ciro Gomes e PT só
atingiu esse nível porque é algo realmente possível. O PT precisa ter coragem e
enfrentar os setores mais radicalizados de sua militância. Para isso serve a
liderança política. O partido tem de conduzir, não ser conduzido, porque ele
tem acesso a um conjunto maior de informações do que a maioria das pessoas. A
direção do PT precisa emitir sinais claros, fortes, que orientem sua militância
no sentido de convergir para um objetivo comum, até porque, no segundo turno,
haverá necessidade de união. Talvez já no primeiro.
Ninguém
vai esquecer Lula ou interromper a luta por sua liberdade. Muito pelo
contrário. A luta por liberdade de Lula ficará muito mais fácil de ser
conduzida, se se desligar da utopia impossível de torná-lo candidato. O custo
político dessa operação é alto demais, e representará desperdício de recursos
políticos, morais e financeiros.
#lulalivre
#esquerdaunida
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