Se
a História é a memória oficial de um povo, a brasileira certamente não dá o
merecido valor a contribuição dos africanos sequestrados até aqui. A começar
pelos pouquíssimos registros que se tem das terríveis experiências vividas por
esses negros escravizados. O
silenciamento dessas vivências nos permite somente imaginar o quão doloroso foi
essa experiência, pois nos impede de acessar o horror através dos olhos de quem
conseguiu resistir e se fazer ouvir.

Essa ausência de vozes negras permanece ainda hoje, tanto na mídia quanto nos
quadrinhos, na literatura, nas artes visuais e outras tantas formas de
expressão. Contudo esse vácuo afeta principalmente os saberes teóricos sobre o
nosso passado, o impacto psicológico provocado e até mesmo o nosso
posicionamento na sociedade. Apesar de alforriados, negros ainda somos vistos,
principalmente pelos narradores oficiais da trajetória brasileira, como objeto:
de análise, de controvérsia, de escárnio etc. Assim como para boa parte da
sociedade o negro ainda representa o Outro – a ser evitado, temido, desejado,
exibido, controlado ou silenciado.
Como
os eventos históricos geralmente são relatados pelos vencedores, isto é, por
aqueles que causaram mais sofrimento, fica bastante fácil entender como vozes
negras — assim como de outros segmentos historicamente oprimidos pelas
sociedades — são impedidas de se pronunciar sobre os efeitos das opressões que
já sofreram e presentemente sofrem. Parte disso se dá pela crença científica de
que a dor anularia o senso crítico, de que vítimas de opressão seriam incapazes
de compartilharem suas perspectivas sem prejudicar a suposta imparcialidade da
versão oficial dos fatos.
Assim,
todos acabamos aprendendo que o homem branco é sempre o mais indicado a falar
por todos e para todos, como também é o único a ser redimido do legado de culpa
de seus ancestrais, que praticaram todo tipo de crimes contra a humanidade em
nome de uma civilização superior. Dessa forma, esses homens brancos ao se
apropriarem das manifestações de sofrimento e resistência acabam sendo
redimidos das barbáries que os seus iguais cometeram pois, benevolamente,
assumiram o papel de observadores críticos empenhados em registrar o passado
isentos de sentimentalidade.
Portanto,
caso ainda seja incompreensível porque se argumenta que a povo negra nunca foi
devidamente incorporado pela sociedade que o explorou (até serem legalmente
impedidos de), basta compreender o que jaz no constante desconforto que a menor
menção — sobre as consequências de séculos de doutrinação racista — provoca em
pessoas que se identificam brancas. Basta observar o que se esconde na já
previsível dificuldade e latente falta de empatia que muitas delas têm em lidar
com as imagens de sofrimento negro que trouxeram benefícios aos seus
antepassados.
[TW:
Privilégios] Tendo sido donos de
escravos ou abolicionistas, imigrantes europeus pobres ou colonos desterrados,
brancos nunca foram desumanizados, pois o sistema racista criado na época
colocava toda e qualquer eurodescendente branco em uma situação de privilégio
social, econômico, intelectual, estético e cultural em relação aos afrodescendentes
– forros ou não. Por mais explorados que tenham sido os europeus e asiáticos
que por aqui desembarcaram, quase nenhum deles pode dizer que veio traficado
até aqui, ou que foi arbitrariamente apartado de suas origens culturais,
linguísticas, espirituais e familiares, ou que nunca lhes foram, ao menos,
prometido recompensação alguma. Isso sem esquecer o pequeno detalhe de jamais
foram coisificados jurisdicionalmente. [/TW]
Dito
isto, é curioso perceber como parece haver um consenso entre muitas pessoas
brancas de que negros deveriam deixar tudo para trás, quando na verdade é
impossível superar uma dor que nunca pôde ser livremente expressada — seja por
ser doloroso lembrar, por analfabetismo, por censura ou por medo das
consequências sociais. Por se tratar de um sofrimento que permanece sendo
impedido de se debater. Embora não haja mais a ameaça de chibatadas ou outros
métodos de tortura psicológica ou física, a maior exigência que ainda se faz a
pessoas negras nunca deixou de ser o silêncio. Mesmo quando amarradas a um
tronco, pessoas negras dificilmente eram vistas como vítimas, mas sim como
eternas responsáveis pelo próprio infortúnio — #vitimização. Ao mesmo tempo em
que pessoas brancas sempre desfrutam da integral capacidade de açoitar vidas pretas,
assistir ao açoite ou virar o rosto.
Se
hoje a dor dos judeus choca é porque — além do Holocausto ser fruto da
monstruosidade do nazismo —, os
sobreviventes puderam registrar suas histórias em depoimentos oficias e não.
Enquanto que a nossa (dor) gera piada porque o mal-feitor dessa história é o
próprio povo responsável pela barbárie. O que de fato complica a transição até
que os ex-escravizados sejam aceitos plenamente como iguais — dignos dos mesmos
círculos sociais —, porque isso
implicaria em aceitar os derrotados colonizados na mesma mesa que até bem pouco
só podiam servir.
Pra
deixar escuro, generalizo em grupos porque a partir do momento em que um
continente inteiro se uniu para enriquecer as custas do sofrimento e
coisificação — sem precedentes — de outro, afim de colonizar um terceiro
continente, cujos habitantes foram dizimados com o mesmo propósito, é até cruel
achar que as consequências e as responsabilidades disso podem ser
individualizadas. Assim, da forma que pessoas negras devem se unir para remover
as mordaças históricas e reivindicar oportunidades mais iguais, pessoas brancas
deveriam compartilhar a responsabilidade de estarem no topo de uma hierarquia
racista idealizada precisamente para privilegiá-las.
Por
isso que enquanto pessoas brancas se esquivarem de qualquer responsabilidade
sobre o assunto, sem deixarem de aceitar os espólios herdados coletivamente a
custa dos mesmos sangue que insistem em lavar das mãos, todo o mal causado
talvez jamais seja expurgado. Enquanto a maioria das pessoas brancas não
entenderem que em todo pedido para esquecermos, ou falarmos sobre outra coisa
há um resquício de sinhô e de sinhá, essa página não tem como virar. Enquanto a
dor acumulada de pessoas negras valer menos que a possibilidade de desconforto
– não de tortura – de pessoas brancas não dá pra aceitar esse papo de que somos
todos iguais. Favor Não insistam mais.