![]() |
O Filósofo Foulcault dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar |
O
mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas que hoje se desmancham
sob a ação demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal, quase sem
resistências, tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o espaço
político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, com a
concordância a respeito das tendências da economia e das sociedades.
Não há mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos, frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.
Não há mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos, frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.
Após
a crise, os porta-vozes desse quase consenso, economistas e que tais,
recolheram-se ao silêncio. Passado o vendaval que ajudaram a semear, já
agarrados aos salva-vidas lançados pela famigerada intervenção dos governos,
entregaram-se a tortuosas e acrobáticas manobras para justificar suas
convicções.
Michel
Foucault, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não é economista.
Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o
significado do neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam detratores e
adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade
contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas,
sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”.
Foucault
dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de
governar, a que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o
conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a sociedade regulada com base
no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio
regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da
concorrência... Trata-se de fazer do mercado, da concorrência, e, por
consequência, da empresa, o que poderíamos chamar de ‘poder enformador da
sociedade’”.
As
transformações ocorridas nas últimas décadas deram origem a fenômenos
correlacionados que não se coadunam com os princípios do liberalismo clássico e
sua imaginária concorrência perfeita protagonizada por um enxame de pequenas
empresas sem poder de mercado.
A
nova concorrência louvada pelos neoliberais admite a “centralização” da
propriedade e o controle dos blocos de capital. O processo se deu pela escalada
dos negócios de fusões e aquisições, alentada pela forte capitalização das
bolsas de valores nos anos 80, 90 e 2000, a despeito de episódios de
“ajustamento de preços”. A “terceirização” das funções não essenciais à
operação do core business aprofundou a divisão social do trabalho e propiciou a
especialização e os ganhos de eficiência microeconômica, além de avanços na produtividade
social do trabalho.
A
grande empresa que se lança às incertezas da concorrência global necessita cada
vez mais do apoio de condições institucionais e legais – sobretudo na
derrogação das regras de proteção aos trabalhadores – que a habilitem à disputa
com os rivais em seu próprio mercado e em outras regiões.
Elas
dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para
penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes
etc.), não podem prescindir do financiamento público para exportar nos setores
mais dinâmicos, não devem ser oneradas com encargos tributários excessivos e
correm o risco de serem deslocadas pela concorrência sem o benefício dos
sistemas nacionais de educação e de ciência e tecnologia.
Tanto
a “nova ordem mundial” como a sua crise foram construídas e deflagradas no jogo
estratégico disputado entre as empresas globais e seus respectivos Estados.
Esse fenômeno político-econômico envolveu os protagonistas relevantes da cena
global: os Estados Unidos, apoiados em sua liderança financeira e monetária, e
a China, ancorada em sua crescente superioridade manufatureira.
A
superação da crise atual não depende apenas da ação competente dos Tesouros
Nacionais e dos Bancos Centrais, mas supõe um delicado rearranjo das relações
políticas e concorrenciais que sustentaram o modelo sino-americano. Parece que
não é fácil.