“Interrompemos esse programa para apresentar
um comercial do século XIX:
Extra, extra, atenção! Não compre
escravo hoje!
É que amanhã é dia de mega promoção
aqui nas “Escravas Bahia”.
Cabindas, Guinés, Angolas! O Feitor
ficou maluco!
Quer açoitar quantos?
É isso mesmo! Compre dois escravos
de engenho e leve uma ama de leite inteiramente grátis!
Venha conhecer novas filias:
Pelourinho e Pedra do Sal!
Escravas Bahia: Servidão total pra
você!”
Esse
foi o roteiro interpretado por Marcius Melhem, em um quadro do programa “Tá no Ar”, que foi ao ar na última
quinta-feira (12/02) pela Rede Globo, em que os atores “brincam com comerciais de TV”.
Já
abordamos várias vezes neste Blog o debate sobre os limites do humor, aliás,
assunto recorrente. Só para citar um dos casos, lembro o infeliz “Baú do Baú do
Fantástico”, de novembro de 2013, quando Bruno Mazzeo dá vida a um repórter que
faz a cobertura da abolição da escravidão no Brasil. Triste!
Preciso
aqui repetir o “clichê” – verdadeiro à meu ver -, de que a rede globo de
televisão é sim produtora de conteúdos ideologicamente comprometidos, sempre a
serviço de determinados interesses políticos e econômicos e que sua arte, na
maioria das vezes, tem sempre a intencionalidade de reforçar estigmas,
estereótipos e valores, tudo isso com dois intuitos fundamentais: vender
produtos de seus anunciantes e formar a opinião coletiva.
O
Programa “Tá no Ar”, criação de Marcelo Adnet, Marcius Melhem e Maurício Farias
e que conta com outros atores de peso como Danton Melo e Mauricio Rizzo, desde
sua estréia em 2014, vem sendo comemorado pela crítica justamente pelo humor
ácido e em grande parte, pela crítica à própria programação da rede globo e das
tv’s tradicionais. Sei que muitos responderão è este texto com argumentos de
defesa à liberdade de expressão, de crítica ao politicamente correto, de
acusação ao “coitadismo negro” ou de erro na percepção, já que a intenção do
programa teria sido exatamente o contrário: criticar e denunciar a forma como a
TV expõe os negros. Um equívoco.E explico: Empresto
o pensamento da professora e ativista negra Adriana de Cássia, quando da
polêmica sobre o conteúdo das charges do jornal francês Charlie Hebdo, que
resultou no triste assassinato de diversos artistas, sem a intenção de
comparações desproporcionais, mas pertinente:
“A ideia de raça que organiza o entendimento
do que é o racismo se estabelece a partir de uma constante social, não
biológica, que relaciona determinados traços fenotípicos a uma expectativa de
desenvolvimento cognitivo e de comportamento social determinando, dessa
maneira, tanto o lugar dos grupos sociais na estrutura quanto a expectativa que
as pessoas tem em relação a esses grupos.”
Mesmo
que a intenção dos humoristas do “Tá no Ar” tenha sido criticar o
racismo na televisão brasileira, há de se perguntar: “Os grupos que reivindicam
direitos para a população negra fazem piada com a escravidão? O Movimento Negro
faria? É possível também argumentar que o programa usa a estratégia da ironia
para expressar uma idéia antirracista, entretanto, a imagem deveria falar por
si mesma, não poderia dar margem para outros tipos de interpretações. Se, ao
observar a imagem, é possível uma interpretação racista, a tarefa fora, neste
aspecto, mal sucedida. Outra questão: Houve uma pesquisa dirigida à população
negra para aferir como se sentem, tendo sua imagem e sua história satirizada em
rede nacional? Eu, como descendente de pessoas escravizadas não me senti
confortável com a piada. Tampouco achei graça em ouvir a “mega-promoção” em que
a ama de leite sai de graça, depois da compra de dois escravos homens. Afinal,
impossível não associar à minha mãe, irmã, filhas e à todas as mulheres negras
brasileiras, principais vítimas da violência racista e machista em todos os
níveis. Assim, a peça teatral da maneira como foi construída, reforça a lógica
racista da representação.
E
repito o que já escrevi aqui quando da análise do humorístico do Fantástico: Um
regime de escravidão que durou 388 anos; Que custou o sequestro e o assassinato
de aproximadamente 7 milhões de seres humanos africanos e outros tantos milhões
de seus descendentes; e que fora amplamente denunciado como um dos maiores
crimes de lesa-humanidade já vistos, deve ou pode ser motivo de piadas?
Quantas
cenas de “humor inteligente”
relacionado ao Holocausto; Ou às vítimas de Hiroshima e Nagasaki; Ou às vítimas
do Word Trade Center ou – para ficar no Brasil – às vítimas do incêndio na
Boate Kiss, assistiremos como fruto da boa intenção de roteiristas que não
sabem do que falam ou do cinismo dos grandes meios de comunicação? Ah, mas
homens e mulheres postos à venda e nos lembrando que sempre fomos – negros e
negras – tratados como mercadoria, desumanizados e coisificados, em rede
nacional e à mercê da gargalhada coletiva, isso pode! E com direito a status de
humor crítico e inteligente.
Se
é verdade que a crítica e a autocrítica são elementos da concepção de “Tá no
Ar” e da iniciativa da emissora, eles falham no momento em que não rompem com a
lógica de manipulação das representações e reforçam estereótipos raciais,
colocando-se assim como um veículo de comunicação que, através de tal conteúdo,
fortalecem e fomentam o racismo.
É
preciso estar alerta. Fugir à regra da cognição racista é tarefa das mais
difíceis. Se a missão é combater o racismo, não se pode utilizar da mesma
lógica estrutural que organiza o pensamento racista. Portanto, nada de piadas
sobre a escravidão, por favor!