Depois
das críticas do Ministério Público Federal e da Fundação Nacional do Índio
(Funai), o Ministério da Justiça revogou na sexta-feira 20 a Portaria MJ
68/2017 ao publicar a Portaria MJ 80/2017. O atribulado e inconsulto processo
de aprovação, revogação e substituição da medida que visa alterar o processo de
demarcação de terras indígenas, elogiado por Michel Temer, é por si só violador
de direitos. Ele demonstra a dificuldade do governo brasileiro em dialogar com
os povos indígenas e respeitar outros modos de vida.
Ao
anunciar uma nova portaria dias depois da publicação da polêmica Portaria MJ
68/2017, o governo seguiu desconsiderando a exigência legal de consulta aos
representantes indígenas e excluindo o diálogo com o Conselho Nacional de
Política Indigenista e especialistas.
Agora,
com menos explicações, a medida abala ainda mais a confiança na imparcialidade
das instituições e a legitimidade dos próprios atos da administração do governo
Temer.
Com
a Portaria MJ 80/2017, muda-se a forma mas não no conteúdo. Como anunciado na
proposta vazada na imprensa de um decreto presidencial e na portaria revogada
pelo ministro Alexandre de Moraes, há um grave intuito de se abrir o processo
técnico de demarcação de terras indígenas sob pressão política em favor de
interesses particulares.
Tal
medida busca inviabilizar as demarcações de terras indígenas e anular
procedimentos já em curso ou concluídos, a partir da exigência de critérios que
contrariam a Constituição Federal e que negam o direito dos povos indígenas de
viverem em suas terras de acordo com suas culturas, religiões ou cosmovisões e
planos coletivos de vida.
Em
setembro de 2016, Victoria Tauli Corpuz, a relatora das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas, levou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU sua
preocupação com a ausência de avanços na defesa dos direitos dos povos
indígenas e com os retrocessos institucionais e as ameaças de retrocessos
legais constatados em sua visita ao Brasil.
Esse
cenário se confirma com as portarias do MJ. Para a relatora da ONU, esses
retrocessos estariam levando a situações de etnocídio no país que durante muito
tempo foi exemplo para o mundo no que concerne à proteção de terras indígenas.
Assim,
foram feitas recomendações ao Brasil no sentido de se concluir os processos de
demarcação das terras indígenas; fortalecer as instituições que atuam na defesa
dos direitos dos povos indígenas, como a Funai e o MPF; combater e punir o
racismo, inclusive institucional, e as violências praticadas contra comunidades
indígenas; e garantir o direito de consulta e consentimento livre prévio e
informado estabelecido pela Convenção 169 da OIT e pela Declaração da ONU sobre
os Direitos dos Povos Indígenas.
A
Declaração da ONU foi aprovada em 2007, assim como a Convenção 169 da OIT e reconhece
a urgente necessidade de se respeitar e promover os direitos dos povos
indígenas no mundo, especialmente os direitos a suas terras, territórios e
recursos.
De
acordo com os instrumentos internacionais, os Estados devem assegurar o
reconhecimento e a proteção jurídica dessas terras, respeitando os costumes, as
tradições e os sistemas indígenas de usufruto da terra.
A
hipótese de reparação por perda de terras, territórios e recursos prevista na
declaração é excepcional, e deve acontecer primeiramente com a oferta de terras
de igual qualidade e extensão, nos casos em que não é mais possível o retorno
ao território indígena.
No
caso do Brasil, tal orientação deve ser lida em conjunto com o artigo 231 da
Constituição Federal, visando à proteção dos direitos territoriais originários.
Ou seja, a reparação não pode ser entendida como possibilidade para a não
demarcação das terras indígenas mediante oferta de indenização pelas terras que
ainda existem.
A
inversão de lógicas para a desproteção dos direitos humanos é um alarme do
atual cenário nacional e se agravará caso a matéria seja seja rifada ao
Congresso Nacional.
Em
2017, o Brasil passará por exame no Conselho de Direitos Humanos da ONU com
relação à situação dos direitos humanos nos últimos quatro anos, devendo
prestar contas das medidas adotadas pelo País para cumprir recomendações
expedidas pela ONU nos diversos temas.
A
pauta dos direitos humanos dos povos indígenas, assim como do direito de
participação e manifestação da sociedade, das violações dos direitos das
mulheres e a pauta do sistema prisional devem aparecer com força e grande
preocupação. Sem diálogo nem demarcações, o Brasil terá poucos avanços a
anunciar.
Direitos rifados: indígenas protestam contra a PEC 215 em Brasília, em fevereiro de 2016. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil |