A
instantaneidade e conectividade das mídias sociais fomentam um ambiente hostil
em que todos têm "alguma opinião
sobre algo, mas poucos têm fundamentos refletidos e ponderados para iluminar as
opiniões", diz o filósofo e professor universitário Mario Sergio
Cortella, em entrevista à DW Brasil.
Cortella
é uma figura influente na sociedade brasileira como palestrante, debatedor e
comentarista de rádio. Com mais de um milhão de livros vendidos entre seus 33
títulos lançados, Cortella traduz à linguagem coloquial e adapta à realidade
atual do Brasil complexos temas filosóficos, existenciais e políticos como
"se você não existisse, que falta
faria?" ou "o caos político
brasileiro". Nesta entrevista, ele analisa como a cultura do ódio é
alimentada por "analfabetos
políticos".
DW Brasil:
Etimologicamente, a palavra "cultura"
(culturae, em latim) originou-se a partir de outro termo, colere, que indica o
ato de "cultivar". Podemos
considerar que a "cultura do ódio",
que se vê eclodir na sociedade brasileira, é algo que já estava presente nas
relações sociais, vem sendo cultivado e agora encontrou o tempo ideal para a
"colheita"?
Mario Sergio Cortella:
O ódio é uma possibilidade latente, mas não é obrigatório. Contudo, não havia
tanta profusão de ferramentas e plataformas para que fosse manifestado e
ampliado como nos tempos atuais no Brasil. A instantaneidade e a conectividade
digital permitiram que um ambiente reciprocamente hostil – como o da fratura de
posturas nas eleições gerais do final de 2014 – encontrasse um meio de expressão
mais veloz e disponível, sem restrição quase de uso e permitindo que tudo o que
estava aprisionado no campo do indivíduo revoltado pudesse emergir como
expressão de discordância virulenta e de vingança repressiva.
DW:
Qual o papel das redes sociais nesse fenômeno? Você concorda com Umberto Eco,
para quem as mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis?
MSC:
As mídias sociais favoreceram, sim, o despontar de um palanque também para a
imbecilidade e a idiotia. Antes delas, era preciso, para se manifestar, algum
poder mais presente ou a disponibilidade de uma tribuna mais socialmente
evidente. Agora, como efeito colateral da democratização da comunicação, temos
o adensamento da comunicação superficial, na qual todos têm (e podem emprestar)
alguma opinião sobre algo, mas poucos têm fundamentos refletidos e ponderados
para iluminar as opiniões. Como dizia Hegel: "quem exagera o argumento, prejudica a causa".
DW: Por que pensar e
se expressar de forma distinta daquilo "com o que eu concordo" passou a ser o estopim para reações de
ódio exacerbado no Brasil?
MSC: Uma sociedade
antes fragmentada concentrou-se em ser mais dividida. Isto é, dois lados em
confronto, agora dispondo de arsenais mais contundentes de propagação e, por
outro lado, vitimadas por poderes comunicacionais dos quais desconhece a face e
o interesse. O salvacionismo moral sugerido por alguns em meio a uma crise de
valores republicanos e à degradação econômica encontrou fácil disseminação.
Como se diz em português: "para quem
está com o martelo na mão, tudo é prego..."
DW: Como explicar
casos de "cidadãos de bem" sendo atores de ações de censura, de
extrema intolerância e violência, verbal e física, contra outros cidadãos,
igualmente "de bem"?
MSC: O "cidadão de bem", entendido como aquele
que não faz o que faz por maldade, é a encarnação do que Bertolt Brecht chamava
de "analfabeto político".
Isto é, alguém que, portador de boas intenções, age em consonância desconhecida
com as más intenções de quem almeja uma situação disruptiva e oportunista.
DW: Quem se
beneficia dessa explosão de ódio?
MSC: Todos os "liberticidas" e todos os "democracidas" são herdeiros dessa
seara incendiadora que exclui o conflito (divergência de ideias ou posturas) e
alimenta o confronto (busca de anulação do divergente).
DW: Aonde essa
cultura do ódio e intolerância no país pode nos conduzir? Tempos sombrios estão
por vir?
MSC:
Tempos sombrios podem vir, sempre. Contudo, podem ser evitados se houver uma
aliança autêntica em meio às diferenças entre aqueles e aquelas que recusam a
brutalidade simbólica e física como instrumento de convivência. Não há um
caminho único para o futuro. Não há a impossibilidade de esse caminho parecer
único. Não há inevitabilidade de que um caminho único venha.
DW: "Até nos tempos mais sombrios temos o direito
de ver alguma luz", disse a filósofa alemã Hanna Arendt. Qual seria a
luz para começar a responder a essa cultura do ódio?
MSC: A luz mais forte
é a da resistência organizada e persistente de quem deseja escapar das trevas e
não quer fazê-lo sozinha, nem excluir pessoas e muito menos admitir que impere
o malévolo princípio de "cada um por
si e Deus por todos". Seria praticando cotidianamente o "um por todos e todos por um".
Afinal, como dizia Mahatma Ghandi, "olho
por olho, uma hora acabamos todos cegos".
(Com
informações de CartaCapital).
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Cortella: 'Para quem está com o prego na mão, tudo é prego'. (Foto: Wikipedia/ CPFL Cultura/ T. Ferro). |