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(FOTO | Freepik). |
Enquanto o debate sobre a parditude cresce, pouco se fala sobre o quanto essa narrativa reforça velhos mitos e esvazia o enfrentamento à branquitude.
A
história da democracia racial no Brasil, como já demonstrou Florestan
Fernandes, revela-se menos como um ideal alcançado e mais como um mito
cuidadosamente construído. A ideia de que o Brasil seria um país sem racismo,
em harmonia entre brancos e negros, não traduz a realidade social, mas mascara
tensões históricas e estruturais. Essa falsa consciência legitimou a
indiferença diante das desigualdades raciais e reforçou o conforto da
branquitude ao longo de décadas.
No
século XXI, o debate sobre identidades raciais ganha novos contornos. Surge,
nesse cenário, a discussão sobre a “parditude” — a experiência de pessoas que
se reconhecem como pardas e não necessariamente como negras. Projetos como o da
pesquisadora Beatriz Bueno propõem enxergar a multirracialidade como eixo de um
projeto antirracista, mas, ao observar atentamente, percebemos que algo
essencial ainda falta: conteúdos efetivamente antirracistas que enfrentem a
estrutura de poder racializada.
O
mito da parditude, assim, parece funcionar de maneira semelhante à democracia
racial. Primeiro, cria uma confusão interna dentro do próprio campo dos
movimentos negros. Ao insistir na separação da identidade parda do universo das
negritudes, desloca a discussão do racismo estrutural para disputas de reconhecimento
e legitimidade entre grupos historicamente oprimidos. Em vez de focar no
enfrentamento da desigualdade, concentra-se em questões de definição
identitária, desviando a atenção do verdadeiro locus de poder.
Em
segundo lugar, o mito oferece conforto à branquitude. Ao colocar os movimentos
negros como interlocutores problemáticos ou “responsáveis” por não reconhecerem
a experiência parda, o discurso desvia o olhar da elite branca e das
instituições que perpetuam o racismo. A branquitude, nesse arranjo, não precisa
se confrontar com sua própria centralidade histórica na manutenção da
desigualdade, pois o conflito é deslocado para o campo das emoções e
ressentimentos entre negros e pardos.
Terceiro,
a parditude explora o ressentimento e a sensação de exclusão dentro do campo
racial. Ao narrar que pardos não se sentem reconhecidos como negros,
legitima-se a ideia de que essa experiência própria seria suficiente para
construir um projeto antirracista. Mas essa lógica ignora que o racismo não se
manifesta apenas na negação de identidades, mas na reprodução diária de
privilégios, barreiras sociais e discriminações estruturais. Sem abordar essas
dimensões, o mito da parditude se limita a uma narrativa simbólica, descolada
da realidade material do racismo brasileiro.
Portanto,
ao revisitar a história da democracia racial e seus ecos contemporâneos,
percebemos que a parditude atualiza velhos mitos sob uma nova roupagem.
Reconhecer a diversidade racial do Brasil é necessário, mas nomear experiências
sem transformar essa nomeação em estratégias efetivas de combate à desigualdade
não constitui um projeto antirracista. Pelo contrário: reforça o conforto da
branquitude, desloca o debate para disputas internas no campo negro e
neutraliza o potencial de ação política coletiva.
Um
verdadeiro projeto antirracista exige, portanto, mais do que reconhecimento
identitário. Precisa enfrentar a estrutura de poder racializada, transformar
instituições, abrir caminhos de acesso à educação, renda e representação
política e fortalecer políticas públicas que alterem concretamente a posição
histórica de vulnerabilidade da população negra. A discussão sobre parditude,
enquanto mito, só será produtiva se for incorporada a essa perspectiva: uma
reflexão crítica que não substitua a luta contra o racismo por disputas
simbólicas ou por narrativas de pertencimento que aliviam o desconforto da
branquitude.
Em
suma, o mito da parditude nos lembra que falar de identidade é importante, mas
não suficiente. Um Brasil verdadeiramente antirracista exige mais do que
metáforas, precisa de ação estruturante. Reconhecer a experiência parda é
relevante, mas não deve servir como muleta para reforçar velhos mitos ou
neutralizar o debate sobre o racismo.
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Texto de Maycon Dougllas, doutorando e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), publicado no Notícia Preta.
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