22 de outubro de 2025

Por que a parditude não é um projeto antirracista

 

(FOTO | Freepik).

Enquanto o debate sobre a parditude cresce, pouco se fala sobre o quanto essa narrativa reforça velhos mitos e esvazia o enfrentamento à branquitude.

A história da democracia racial no Brasil, como já demonstrou Florestan Fernandes, revela-se menos como um ideal alcançado e mais como um mito cuidadosamente construído. A ideia de que o Brasil seria um país sem racismo, em harmonia entre brancos e negros, não traduz a realidade social, mas mascara tensões históricas e estruturais. Essa falsa consciência legitimou a indiferença diante das desigualdades raciais e reforçou o conforto da branquitude ao longo de décadas.

No século XXI, o debate sobre identidades raciais ganha novos contornos. Surge, nesse cenário, a discussão sobre a “parditude” — a experiência de pessoas que se reconhecem como pardas e não necessariamente como negras. Projetos como o da pesquisadora Beatriz Bueno propõem enxergar a multirracialidade como eixo de um projeto antirracista, mas, ao observar atentamente, percebemos que algo essencial ainda falta: conteúdos efetivamente antirracistas que enfrentem a estrutura de poder racializada.

O mito da parditude, assim, parece funcionar de maneira semelhante à democracia racial. Primeiro, cria uma confusão interna dentro do próprio campo dos movimentos negros. Ao insistir na separação da identidade parda do universo das negritudes, desloca a discussão do racismo estrutural para disputas de reconhecimento e legitimidade entre grupos historicamente oprimidos. Em vez de focar no enfrentamento da desigualdade, concentra-se em questões de definição identitária, desviando a atenção do verdadeiro locus de poder.

Em segundo lugar, o mito oferece conforto à branquitude. Ao colocar os movimentos negros como interlocutores problemáticos ou “responsáveis” por não reconhecerem a experiência parda, o discurso desvia o olhar da elite branca e das instituições que perpetuam o racismo. A branquitude, nesse arranjo, não precisa se confrontar com sua própria centralidade histórica na manutenção da desigualdade, pois o conflito é deslocado para o campo das emoções e ressentimentos entre negros e pardos.

Terceiro, a parditude explora o ressentimento e a sensação de exclusão dentro do campo racial. Ao narrar que pardos não se sentem reconhecidos como negros, legitima-se a ideia de que essa experiência própria seria suficiente para construir um projeto antirracista. Mas essa lógica ignora que o racismo não se manifesta apenas na negação de identidades, mas na reprodução diária de privilégios, barreiras sociais e discriminações estruturais. Sem abordar essas dimensões, o mito da parditude se limita a uma narrativa simbólica, descolada da realidade material do racismo brasileiro.

Portanto, ao revisitar a história da democracia racial e seus ecos contemporâneos, percebemos que a parditude atualiza velhos mitos sob uma nova roupagem. Reconhecer a diversidade racial do Brasil é necessário, mas nomear experiências sem transformar essa nomeação em estratégias efetivas de combate à desigualdade não constitui um projeto antirracista. Pelo contrário: reforça o conforto da branquitude, desloca o debate para disputas internas no campo negro e neutraliza o potencial de ação política coletiva.

Um verdadeiro projeto antirracista exige, portanto, mais do que reconhecimento identitário. Precisa enfrentar a estrutura de poder racializada, transformar instituições, abrir caminhos de acesso à educação, renda e representação política e fortalecer políticas públicas que alterem concretamente a posição histórica de vulnerabilidade da população negra. A discussão sobre parditude, enquanto mito, só será produtiva se for incorporada a essa perspectiva: uma reflexão crítica que não substitua a luta contra o racismo por disputas simbólicas ou por narrativas de pertencimento que aliviam o desconforto da branquitude.

Em suma, o mito da parditude nos lembra que falar de identidade é importante, mas não suficiente. Um Brasil verdadeiramente antirracista exige mais do que metáforas, precisa de ação estruturante. Reconhecer a experiência parda é relevante, mas não deve servir como muleta para reforçar velhos mitos ou neutralizar o debate sobre o racismo.

_____

Texto de Maycon Dougllas, doutorando e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), publicado no Notícia Preta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!