O
repúdio à reforma da Previdência proposta pelo governo Michel Temer foi uma das
bandeiras erguidas pelas mulheres brasileiras neste 8 de março. Em discussão na
Câmara dos Deputados, o projeto iguala as regras da aposentadoria para homens e
mulheres ao exigir um mínimo de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição para
ambos os sexos.
CartaCapital
- Se passar, a PEC 287/2016 tende a aprofundar a desigualdade de gênero no
País. O regime previdenciário brasileiro é de repartição, solidário. Seu
objetivo é provocar um efeito redistributivo, com os jovens contribuintes
pagando a aposentadoria dos idosos, por exemplo. O sistema está intrinsecamente
ligado ao mercado de trabalho, e uma de suas funções é corrigir desigualdades.
Para
pesquisadoras ouvidas por CartaCapital, a reforma da Previdência proposta
ignora a histórica desigualdade de gênero presente no mercado de trabalho
brasileiro. A taxa de ocupação das mulheres é menor, e elas também recebem
salários inferiores. A diferença salarial vem caindo com o tempo, mas essa
redução tem sido lenta. De acordo com dados do Instituto Nacional de Geografia
e Estatística (IBGE), em 2015 o rendimento das mulheres equivalia a 76% o dos
homens, em média.
O
desemprego também as atinge de forma desigual. Como principais responsáveis
pelas tarefas domésticas e de cuidados, as mulheres ainda se veem
sobrecarregadas com a dupla jornada de trabalho. De acordo com os dados mais
recentes do IBGE, referentes ao último trimestre de 2016, o índice de
desemprego chegou a 10,7% para os homens e a 13,8% para as mulheres.
Economista
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Joana Mostafa afirma que,
de todos os pontos críticos da proposta, o mais grave é a mudança no tempo
mínimo de contribuição para ter direito à aposentadoria. Hoje, para se
aposentar por idade é exigido um mínimo de 15 anos de contribuição, para homens
e mulheres. Com a reforma, ambos terão que contribuir por 25 anos.
“Às mulheres é atribuído socialmente um
papel, que é o papel de cuidados: cuidar da casa, das crianças, dos idosos, das
pessoas com deficiência. Não importa se ela efetivamente vai executar esses
cuidados, se ela é mulher, é atribuído a ela esse papel”, afirma.
Com
o aumento da exigência do tempo de contribuição, quase metade das trabalhadoras
pode não conseguir se aposentar no futuro. Essa é a estimativa calculada por um
grupo de trabalho do Ipea, do qual Mostafa faz parte, que em breve divulgará
uma série de notas técnicas sobre a proposta de reforma da Previdência.
“A divisão sexual do trabalho faz com que as
mulheres tenham mais dificuldade de acessar o mercado formal e, portanto, mais dificuldade
de acumular os anos de contribuição. Hoje, 15 anos de contribuição já exclui
muita gente. Para as domésticas, por exemplo, é muito difícil. Aumentar para 25
anos vai excluir ainda mais, só os mais estruturados no mercado de trabalho vão
conseguir”, afirma a economista.
Ao
definir regras iguais para os sexos, o governo argumenta que as mulheres vivem
mais que os homens e, ainda, que o “padrão
internacional atual” é de igualar ou aproximar o tratamento de gênero na
Previdência. “A diferença de cinco anos
de idade ou contribuição, critério adotado pelo Brasil, coloca o País entre
aqueles que possuem maior diferença de idade de aposentadoria por gênero”,
pontuou o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, na proposta enviada ao
Congresso.
A
fala de Meirelles se baseia em um relatório sobre aposentadorias pelo mundo,
produzido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE). Em artigo publicado no jornal O Globo, a economista e professora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Lena Lavinas afirma que, em
diversos países que integram a OCDE, os sistemas previdenciários foram
reformados de modo a enfrentar os determinantes estruturais da desigualdade de
gênero.
“Suécia, Noruega, Suíça, e em tantos outros
países, as mulheres que podem justificar dedicação a filhos e idosos,
familiares doentes ou até desemprego de longo prazo receberam créditos (menos
tempo de contribuição ou idade mínima menor para aposentar) ou terão suas
contribuições ao sistema pagas pelo Estado”, diz Lavinas no artigo,
intitulado Armadilhas da igualdade.
O
debate sobre a Previdência tem gerado discursos dissonantes entre as mulheres.
Algumas feministas defendem idades iguais por avaliarem que a igualdade de
gênero deve ser um princípio acima de tudo, em todas as esferas. Esse mesmo
grupo, no entanto, concorda com a necessidade de um período de transição para
mudanças na Previdência, durante o qual o governo fortaleceria suas políticas
públicas de combate às desigualdades.
No
Brasil de Temer, porém, nenhuma contrapartida foi feita às mulheres. Tampouco
foi proposta a ampliação e a melhoria do sistema de creches, por exemplo. Dados
de 2015 do Ministério da Educação apontam que creches públicas e privadas
atendem apenas 30,4% das crianças com idade entre 0 e 3 anos.
A
economista Hildete Pereira de Melo, professora da Universidade Federal
Fluminense (UFF), se diz cética quanto à capacidade dos governos em enfrentar a
desigualdade de gênero. “A regra de
transição seria muito boa se a nossa experiência histórica não nos mostrasse
como é difícil que isso aconteça na vida real. Especialmente neste momento, em
que toda a nossa política social está sendo desmontada”, afirma Melo, que
edita a revista Gênero, da UFF.
“É por isso que eu sou cética. E digo: vamos
manter a desigualdade. Neste caso, a desigualdade é a possibilidade que as
mulheres têm de não ter uma vida ainda mais sofrida. Esta é uma bandeira que
deixa algumas de nós mudas. Elas pensam: ‘sempre fiz um discurso pela
igualdade, e de repente saio pela desigualdade'. Sim, porque não tem jeito!
Vivemos em uma sociedade patriarcal e o mercado de trabalho é extremamente
desigual. Então vamos para a briga”, convoca Melo.
Professora
do departamento de Demografia e Ciência Atuariais da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Luana Myrrha concorda. “Igualdade de gênero na Previdência sem que haja igualdade de gênero na
sociedade, principalmente no mercado de trabalho e nos afazeres domésticos,
tende a penalizar ainda mais as mulheres", afirma. "Creio que um período de transição seria uma
boa proposta, mas a pergunta que fica é: qual seria esse período? As distorções
nos salários e nos trabalhos domésticos estão longe de serem corrigidas.”
Homens
e mulheres estão, de fato, dividindo mais as tarefas, mas a diferença ainda
existe. Somando o serviço doméstico e o trabalho remunerado, as mulheres
trabalham, em média, 7,5 horas a mais que os homens por semana. É o que aponta
estudo divulgado nesta semana pelo Ipea, com base em dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE.
Coautora
do artigo A questão previdenciária: simulações quanto à igualdade de gênero -
vantagem para a Previdência Social e desvantagem para a mulher, publicado em
2016, a professora da UFRN afirma que a antecipação de cinco anos na
aposentadoria das mulheres está absolutamente de acordo com a realidade
brasileira.
“A sobrecarga da dupla jornada é uma
realidade na vida das brasileiras, então o ‘bônus’ de cinco anos a menos para
as mulheres requererem as suas aposentadorias me parece justificável”, diz
Myrrha. “A missão da Previdência é garantir proteção ao trabalhador e sua
família, por meio de uma política previdenciária solidária, cujo objetivo é
promover o bem-estar social. Diante da sua definição, acho que a previdência
precisa considerar as diversas desigualdades presentes na sociedade brasileira.
Desconsiderar as desigualdades é descaracterizar o objetivo dessa política.”
No cariri cearense, mulheres foram às ruas para, dentre outras pautas, dizer não a reforma da previdência. Foto: Divulgação. |
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