A
história do país é cheia de episódios indigestos, que não viram enredo de
escolas de samba ou pretexto para as aventuras da Glória Maria no Globo
repórter.
Mas uma vez ou outra surge um documentário para invocar fantasmas do passado, como “Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil”, de Belisario Franca, lançado no mês passado e em exibição em Florianópolis, Niterói, Rio de Janeiro, Santos e Vitória.
Publicado
originalmente no DCM
Baseado
na tese de doutorado do historiador Sidney Aguilar Filho pela Unicamp, o
trabalho conta a história de 50 crianças órfãs levadas do Educandário Romão de
Mattos Duarte, no Rio de Janeiro, para uma propriedade rural no interior de São
Paulo, onde foram submetidas a trabalho escravo.
![]() |
Google Imagem. |
O
traslado sinistro ocorreu nos primeiros anos da década de 1930. Iludidos com a
promessa de que iriam viver em um lugar onde poderiam brincar e estudar
livremente, os meninos, a maioria negros, foram levados de trem para a fazenda
Cruzeiro do Sul, em Campina do Monte Alegre, pertencente à rica e influente
família Rocha Miranda.
Alguns
membros dessa família, segundo o documentário, nutriam simpatia pelas ideias de
Adolf Hitler e participavam da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento de
extrema-direita liderado por Plínio Salgado com fortes influências do fascismo
italiano.
Apesar
de soar absurdo hoje, tal alinhamento não era uma degenerescência entre as
elites brasileiras numa época em que as teorias de eugenia estavam entranhadas
na sociedade.
Eram
os primeiros anos do governo Vargas, com inspirações fascistas e laços
estreitos com a Alemanha nazista. A seção do partido Nacional Socialista
mantida no país era considerada a maior fora da Europa.
Foram
justamente os laços dos Rocha Miranda com o nazismo que levaram Aguilar aos
meninos escravizados. Em 1998, ao dar uma aula de História para uma turma de
ensino médio, o professor foi interpelado por uma aluna que falou de uns
tijolos com desenhos de suásticas encontrados em um casarão abandonado na
fazenda da família.
Aguilar
ficou intrigado com a história e foi a campo em busca de mais informações até
que descobriu a história dos meninos retirados do orfanato. Para a maioria
deles, a liberdade só chegou em 1942, quando o Brasil cortou relações com a
Alemanha e os símbolos nazistas passaram a ser proibidos.
Bandeiras
e documentos foram destruídos. O gado de raça, marcado com suásticas, foi
desprezado pelo mercado e deixado no pasto até envelhecer.
O
senhor Aloysio da Silva, o “Menino 23”, é um dos dois únicos órfãos
entrevistados no documentário. Segundo lembra, certo dia eles foram reunidos
sem explicações e em seguida liberados da fazenda. Deixados à própria sorte,
seguiram sem rumo pela linha do trem.
Houve
quem se perdesse pelas ruas ou sucumbisse ao alcoolismo. Os mais sortudos
conseguiram subempregos. Era a repetição em menor escala do que acontecera 50
anos antes, quando os negros saíram da escravidão sem receber a mínima
assistência do Estado.
A
família Rocha Miranda nega que tenha existido trabalho escravo e se defende com
um blog, onde dá as suas versões dos fatos. Há um vídeo no Youtube onde um dos
descendentes, Maurício Rocha Miranda, coleta depoimentos de antigos moradores
da cidade refutando qualquer indício de abusos na fazenda Cruzeiro do Sul.
Por
outro lado, a tese de Aguilar foi aprovada “incondicionalmente e por
unanimidade” e premiada pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior).
De
acordo com o documentário, Maurício Rocha Miranda foi procurado para dar o seu
depoimento, porém teria se recusado a participar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!