Documento que pede anulação do impeachment é entregue ao presidente do STF



O escritor Fernando Morais encaminhou na manhã de hoje (24) ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, uma petição pública em que pede a anulação de todo o processo envolvendo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, desde sua aceitação pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), no ano passado.

A petição – assinada também pelos jornalistas José Trajano e Alípio Freire, pela professora aposentada da PUC-SP Stella Senra e pelo sociólogo Laymert Garcia dos Santos – acusa Cunha de "desvio de poder e ofensa à moralidade administrativa", como um dos pilares para pedir a anulação do processo.

Também são apontadas "interferência externa, deslealdade processual, ausência de liberdade de julgamento e abuso de poder" praticados pelo presidente interino Michel Temer, Cunha e parte dos congressistas contra a totalidade da Câmara, para destituir a presidenta eleita e alcançar o poder.

Pleiteia ainda a anulação do processo pela caracterização de um golpe parlamentar em que há falta de crimes de responsabilidade cometidos pela presidenta; relatórios comprometidos com a acusação; e desvirtuamento dos propósitos constitucionais do impeachment e do processo de responsabilidade decorrente da campanha inconstitucional feita por Temer.

Em seu perfil no "Foicebook", Fernando Morais diz que as pessoas o questionam se não estaria alimentando uma ilusão com a iniciativa da petição. "De cabeça de juiz, bunda de bebê e urna eleitoral nunca se saber o que vai sair. Eu já havia participado de iniciativa semelhante – chamada 'amicus curiae' – junto à Suprema Corte dos Estados Unidos, quando do julgamento dos cinco cubanos infiltrados em organizações de extrema-direita da Flórida. Hoje os cinco estão em liberdade", responde. "Aqui no brasil, em 1981, me aventurei a entrar com uma ação popular contra o general-presidente João Batista Figueiredo para impedir a construção de duas usinas nucleares no santuário ecológico de Iguape-Peruíbe. Ganhei. A esperança, tal como as sogras, é a última que morre."


Morais, Trajano, Alípio, Stela e Laymert: 'a esperança é a última que morre'.

“Espancadores da Democracia”, por Chico Alencar


Tudo começou com Eduardo Cunha (PMDB/RJ), então presidente da Câmara dos Deputados, e Rodrigo Maia (DEM/RJ), nomeado por Cunha relator-interventor da mal chamada reforma política. Seu projeto incluía não incluir o PSOL e outros partidos pequenos, ainda que ideológicos, nos debates das campanhas eleitorais futuras.

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Contrariando o Senado, a Câmara, sob a ‘orientação’ de Cunha e Maia, decidiu que só estariam garantidos nos debates os candidatos cujos partidos ou coligações tivessem pelo menos 10 deputados. O TSE ainda regulamentou a lei, suprindo sua omissão: 10 deputados federais. Um número casuístico: por que não 15? Ou 5? Ele foi calculado de acordo com a tamanho de algumas bancadas, como a do PSOL, do PV e do que então poderia vir a ser a Rede. O ‘condomínio do poder’ não queria intrusos no seu faz-de-conta, no seu embate de assemelhados.

O resultado está aí: muitos candidatos, sobretudo em capitais, com boa avaliação nas pesquisas, com história de vida respeitável, que todos consideram que qualificam a disputa, absurdamente impedidos de colocar suas ideias em confronto com os outros. Veremos um arremedo de discussão, uma farsa. Que democracia é essa?

Alguns dirão que a lei abre possibilidade para a participação dos ‘vetados’. Sim, desde que 2/3 dos adversários aptos concordem. São os ‘juízes’ sem o dever de Justiça: claramente parciais, visivelmente interessados. Estarão como vampiros a gerenciar um banco de sangue. Resta constrangê-los com o clamor da opinião pública.

Foto: Vera Siqueira.
A lei retroage para prejudicar, o que a Constituição não permite. As bancadas cujo número se afere, para garantir ou não a presença dos candidatos nos debates, foram constituídas nas eleições nacionais de 2014. Nenhum eleitor, naquela época, tinha ciência de que seu voto também seria precioso para garantir a presença democrática nas discussões abertas de eleições futuras. Uma fraude, um engano deliberado!

Os falsos democratas já se revelam, no início da campanha: candidatos de partidos que se nomeiam ‘do movimento democrático’, ou ‘social-democrata’, ou ‘da solidariedade’, barram a participação de outros, que podem questioná-los, como Luiza Erundina em São Paulo, e Marcelo Freixo, no Rio. Medrosos, carimbam seu compromisso zero com a democracia, com o pluralismo, com a própria sociedade. Como podem pretender governar cidades com tamanho cabedal de covardia?

Cabe ao STF julgar a inconstitucionalidade dessa ‘Lei da Mordaça’. Esperamos que a Suprema Corte faça justiça.

Por que é importante que pessoas brancas falem sobre racismo?



Vamos deixar a ilusão da democracia racial de lado e encarar nossa sociedade como ela é: cheia de separações baseadas em gênero, classe social e raça. Pessoas brancas convivem, em sua maioria, com pessoas brancas. O mesmo acontece com pessoas negras. E tudo isso não se dá porque o mundo é assim mesmo, mas porque certos lugares são reservados a certas pessoas. Você, pessoa branca de classe média, estudou com quantos negros na sua época de escola particular? E na universidade? Quantos amigos negros tem? E quantos amigos brancos? Basta responder com sinceridade que das duas, uma: ou você é a exceção que confirma a regra, ou é a regra.
Publicado originalmente no Ondda

Eu, mulher branca de classe média, estudei com pouquíssimas pessoas negras durante toda a minha vida. Tive pouquíssimos amigos negros até chegar à idade adulta. E ao olhar ao redor nos eventos da minha memória não consigo enxergar muitas pessoas negras frequentando os mesmos lugares que eu. Quando elas estavam ali, normalmente eram esteriotipadas por nós, os brancos.

O racismo não é um problema de pessoas negras – apesar de pessoas negras poderem reproduzir ideias do racismo, já que todos vivemos em uma sociedade que nos diz que devemos nos parecer com o “vencedor” para conseguirmos vencer também -, mas de pessoas brancas. Quem atravessa a rua somos nós. Quem não contrata somos nós. Quem não se relaciona somos nós. Quem acha que vivemos em uma democracia racial somos nós. Quem tem o poder na mão e, historicamente, sempre o teve somos nós. Nós, os brancos.

A gente não fala sobre isso, não toca no assunto e ainda compartilha imagem que tira uma fala do Morgam Freeman de contexto só para fortalecer essa escolha questionável. A verdade é que a gente precisa falar sobre racismo. A gente precisa ouvir o que pessoas negras dizem sobre o que é ser negra e aí comparar com as nossas vivências de pessoas brancas. Tudo o que existe de diferente entre uma coisa e outra pode ser chamado de privilégio. E nossa tarefa é abrir mão desse privilégio e encontrar maneiras que destruir as estruturas que fazem que alguns privilégios aconteçam mesmo quando a gente luta contra eles.

Uma questão importante é que pessoas brancas acreditam que ser branco é o padrão, o normal, o certo, enquanto qualquer pessoa “não-branca” seria a exceção. E isso não faz o mínimo sentido. Branco é raça. Mas por que quem detém o poder iria se questionar? Porque no fundo, se olharmos para a farsa da democracia racial, temos provas suficientes para entender que sabemos que manter esse poder apenas na mão de pessoas brancas é errado e que isso precisa mudar – caso contrário não criaríamos essa farsa.

67% das pessoas brancas que usam redes sociais não falam sobre raça

Esse é o resultado de uma pesquisa do Pew Research Center com americanos. Enquanto 72% das pessoas negras tendem a ler, participar de discussões e compartilhar conteúdos sobre raça nas redes sociais, 67% das pessoas brancas dizem que não se envolvem nesse tipo de discussão.

Se vivemos em grupos separados, não nos convivemos interracialmente e carregamos preconceitos que estão nas bases de todas as relações, como pessoas brancas serão atingidas por esses questionamentos se outras pessoas brancas não forem a porta de entrada para o tema? Se as pessoas brancas, até mesmo inconscientemente, não dão ouvido ao que as pessoas negras dizem?

Cada pessoa branca que luta contra o racismo pode atingir diversas outras pessoas brancas. E apenas quando somos atingidos por um assunto tão incômodo é que conseguimos olhar para as nossas atitudes, que muitas vezes nem diagnosticamos como racistas. Ouvir as pessoas negras é o ideal, mas enquanto não chegamos a esse momento, cada pessoa pode fazer sua parte para amplificar a voz do movimento negro.

Lembre-se: não é sobre você

Uma coisa importante a ser lembrada é que apesar de pessoas brancas serem importantes na transformação social e no fim do racismo, essa conversa não é sobre nós. Não importa como eu, branca, me sinto em relação ao racismo, mas o que pessoas negras, que o sofrem, se sentem.

O papel das pessoas brancas é olhar para si como mais uma raça, é ser um megafone e ceder o espaço que nos é entregue de mãos beijadas a quem é realmente o foco daquilo. Não adianta nada eu falar sobre como uma mulher negra se sente, por exemplo, então eu posso convidar uma mulher negra para ocupar esse espaço. Se nenhuma mulher negra puder, o que é praticamente impossível, eu posso disseminar o discurso dela.

O mais importante é não querer holofotes e palmas. Sabe aquela coisa que sua mãe dizia quando você tirava boas notas na escola? Pois é, você não está fazendo nada além da sua obrigação.

Agora é hora de agir. O que você fez contra o racismo hoje?
 
Crédito: Visualhunt.




Mulheres que concorrem ao legislativo de Altaneira representam apenas 33% das candidaturas



Já está disponível no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a partir do Sistema de divulgação de candidaturas e prestação de contas eleitorais (DivulgaCandContas) o quantitativo de candidaturas para concorrerem aos cargos de prefeito(as)  e vereadores (as) nas eleições deste ano.

No município de Altaneira, com localização na microrregião do cariri, apenas de 4.758 (quatro mil, setecentos e cinquenta e oito) eleitores realizaram o recadastramento biométrico, estando, portanto, aptos a votar conforme informações do Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Os dados representam uma queda em relação ao último processo eleitoral quando 5.918 eleitores estavam aptos a irem a urna.

Os mais de 4.000 eleitores/as altaneirenses terão este ano 24 (vinte e quatro) nomes concorrendo a uma das nove vagas no legislativo. Destes, apenas oito mulheres estão na disputa o que representa irrisoriamente a 33,33%. As coligações concorrentes denominadas de “Com a Força do Povo” que agrega as agremiações PT, PDT e SD e “Mudança e Trabalho Já” que reúne os partidos PMDB, PCdoB, PRP, PR, PTB e PSD apresentam quatro mulheres cada.

Pensar no papel social, cultural e econômico desempenhado pelas mulheres na sociedade brasileira é muito importante. Quando direcionamos esse olhar para o viés político se torna cada vez mais instigante, visto um país marcado pelo machismo e pelo patriarcalismo dilacerado, onde apenas homens podem ocupar o espaço público e a mulher relegada ao ambiente privado, quase sempre associado as funções domésticas.

Mesmo entendendo que alguns passos já foram dados e que mudanças vem ocorrendo, é necessário ficarmos atentos e ter em mente que as mudanças são muito menos sentidas do que as permanência e que lutar por maior participação feminina na política é lutar pelo fortalecimento da democracia, principalmente se se levar em consideração que essa classe representa a maioria populacional deste pais, sendo ainda o grupo que mais sofre exclusão e violência.


Imagem capturada do sitio do TSE.



Internautas denunciam ato racista na Câmara de Altaneira e vereador lança nota



As primeiras horas da manhã desta segunda-feira (22) as redes sociais foram povoadas por mensagens e comentários criticando a postura “racista” que um parlamentar de Altaneira teria tido durante a sessão ordinária realizada na última sexta, 19.

Um dos primeiros a denunciar o fato foi o engenheiro civil Bruno Arrais. Sem citar quem teria cometido o “ato racista, ele questiona “em Altaneira existe tantas pessoas que brigam pela valorização da cultura afrodescendente, com muita razão, mas não se manifestaram sobre o ato racista que ocorreu na câmara municipal na sexta feira. Só queria saber o porque”.

A universitária Paloma Caldas também sem citar nome, taxou a atitude do parlamentar de “estúpida”, “nojenta” e “podre”. “Ao ilustríssimo vereador, que INFELIZMENTE faz parte da coligação que eu apoio, meus aplausos pelo fantástico número de horror da ultima sexta-feira. O senhor foi muito feliz no quesito ESTÚPIDO. Que Deus, na sua infinita bondade e justiça, possa lhe recompensar pela NOJEIRA e PODRIDÃO da sua mente, caráter. ..atos. Que sua voz seja ouvida por todos, e que os homens de bem não se corrompam a ponto de ferí-lo fisicamente, que ao meu ver, o senhor merecia uma medida disciplinar bem forte.
Um a verdadeira VERGONHA para a cidade. Um representante do povo atacando o povo. Já não basta termos uma criatura que tem orgulho de dizer que é formada, e é uma VERGONHA para a política e ainda para as mulheres, temos de aturar mais um serumaninho lazarento.

Aos amigos do grupo político é inaceitável o abafamento desse CRIME. Uma lástima quem se cala por opressão, disse ela indignada.



A mensagem de Paloma recebeu vários comentários, mas todos sem saber quem haveria proferido tais atos.

Por volta das 13h30, o vereador Flávio Correia com assento pelo SD lançou nota na rede social facebook em que diz ter feito um “infeliz comentário” ao qual foi “acusado de racista”. No texto, o vereador diz que foi mal interpretado por aqueles que não o conhece.  “Ao citar que ‘para mim Ariovaldo nem preto é’ estava subtendido uma frase que sempre disse a ele, que para mim ele é dourado, de ouro! Que inclusive - para quem ouviu - foi completada logo em seguida! Em outra situação, eu poderia ter me referido a qualquer um dos meus amigos dessa forma, ou até mesmo minha filha, que para mim nem branca é”..., afirmou. Segundo Flávio, “houve uma brecha para má interpretação, principalmente por uma frase que citava a cor da pele de um negro proferida por um branco” e que há existem  mais maldade na interpretação de alguns no que foi afirmado por ele.

A nota ainda menciona a sua origem familiar ao citar “sou filho de Chica Tubiba, negra, pobre e mãe solteira. Sou casado com Dona Aguida e ela me deu três filhos. Um de cada cor para representar bem a diversidade da nossa descendência! Minha família é minha maior riqueza e jamais iria tomar qualquer atitude que os atingisse!”.

Flávio pediu desculpa. “Mais uma vez me desculpo se ofendi alguém. Os que me conhecem sabem e aqueles que não conhecem procurem na história dos meus 56 anos algum caso de preconceito ou discriminação de qualquer espécie”, concluiu.

Ariovaldo Soares, alvo de tudo, comentou a nota. “Não vislumbrei sentimento de racismo na colocação do vereador Flávio Correia. Foi apenas uma brincadeira e não vejo razões para essa conturbação toda”.




A olimpíada acabou, os problemas voltaram

A imprensa brasileira, principalmente a televisiva é de chorar e rir ao mesmo tempo. Ela percebe seus telespectadores e telespectadoras como marionetes, incapazes de ver, interpretar e ter um olhar crítico sobre fatos e opiniões acerca do que se passa a sua volta. Muitos desses fatos e opiniões por ela – mídia – formulados.

O Brasil passa por uma avalanche de problemas – muitos, repito, por ela mesmo divulgados e até criados para atender e ganhar uns potinhos a mais na audiência – como, crise econômica, crise política, crise social e, as mais em evidências, porém nunca divulgadas, crise de ética, crise moral ou, simplesmente, crise de valores. Mas, como que de repente, não mais que de repente, todos esses problemas acabaram.

Em nome de quem? Para atender a quem? Com qual interesse? São tantas perguntas... Mas, vou me contentar em ficar com esses três questionamentos. São suficientes por ora. O Brasil precisa se mostrar ao mundo. E para isso, não é bom que o mundo conheça um país à beira de um colapso. Não é animador para os holofotes mundiais perceberem que os brasileiros e brasileiras estão sofrendo pela terceira vez uma ditadura. A primeira foi com o Estado Novo em 1937 sob o comando de Getúlio Vargas e a segunda – mais longa – entre os anos de 1964 e 1985 tendo como comandantes os militares.

Mas porque tudo isso? Os jogos olímpicos do Rio de Janeiro chegaram e com ele uma infinidade de narrativas. Menos os problemas que relatei acima. Eles não aparecerem na Globo, na Band, na Record, no SBT, na Rede TV.... Não, não aparecerem. O que vimos foi uma infinidade de jogos e mais jogos. Competições e mais competições. Medalhas e mais medalhas.

As do Brasil bem menos. Poderia ter sido mais se investimentos em outros esportes e outras atletas fossem dados. O futebol feminino é um triste exemplo. Mas, deixe-me retomar o foco da questão.

Quem viu e ouvi falar durante as olimpíadas sobre a chikungunya? Sobre os altos índices de desemprego que continua a crescer em ritmo avassalador, pelo menos no ritmo e na intensidade que vinha sendo propagado no início do ano? O processo de afastamento da presidenta que todos os dias e o dia todo se ouvia e via falar? Quem viu essa informação com a intensidade de meses atrás? Não amigos. De forma nenhuma amigas. Essas informações, pelo menos durante esses últimos 17 dias de jogos olímpicos, não era interessante veicular. Nem pela mídia conservadora, tão pouco para o grupo político que ora administra o Brasil. Esses dois que arrancaram dos brasileiros o direito de escolha, o poder de decisão.

O problema maior é que grande parte dos brasileiros acabaram por comprar esses discursos. Não só isso. Revenderam ao compartilhar imagens e textos sem que se fizesse o devido questionamentos. Outros se mantiveram e se mantém inerte ante aos fatos.

Felizmente, um grupo de pessoas – em menor quantidade é verdade, souberam fazer as devidas correções. Não compraram essa narrativa enfadonha que envergonha aqueles e aquelas que possuem rigor crítico. Não foram convencidos por essa mídia que não informa, mas desinforma, aliena.

Os jogos acabaram e o que se verá? A volta daqueles problemas relatados acima. Menos, repito, a crise de valores. Todos eles tendo como único culpado um partido e uma pessoa. A semana toda será dedicada ao processo de afastamento da presidenta e com a construção de uma narrativa que fortalece o golpe. Assistam e tire suas conclusões. 

Imagem puramente ilustrativa (nem tanto assim). Divulgação.

Educar não é adestrar, por Leandro Karnal


Sou professor há 34 anos. Muitos pais pedem este conselho: como educar em pleno século 21? A resposta é complexa.

Somos dominados pela cultura da performance. O conteúdo está em alta, especialmente o de imediata aplicação. O vestibular tornou-se um vórtex e o ingresso em centros de excelência virou meta familiar, pois todos ficam envolvidos emocionalmente no esforço dos jovens.

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É fundamental que a criança e o adolescente dominem coisas como linguagem escrita/oral e habilidades matemáticas. Serão úteis por toda vida. Porém, há dois campos que fogem à aplicação imediata. O primeiro é a educação das artes plásticas. Alfabetizamos para a leitura de textos e raramente educamos para a leitura de imagens. Vivemos imersos num mundo visual e não nos adaptamos a isto. O desafio do olhar é intenso e o jovem quase nunca tem habilidade e repertório para julgar este mundo de fotos e desenhos que flui pela rede. Somos, quase todos, analfabetos visuais.

Levar uma criança/adolescente a um museu é algo muito importante. Deve-se preparar a experiência mostrando algumas obras que serão vistas. Devemos dar informações lúdicas e práticas. Deixe seu filho perceber a cor ou a espacialidade. Ele deve ser livre para se expressar e não devemos julgar o parecer de imediato. Importante: fique um tempo reduzido no museu, proporcional à idade. Aumente este intervalo a cada novo passo da maturidade. Podemos evocar o tema do que foi visto em conversas familiares. Indique sites que aprofundem a experiência. Isso tudo faz parte de uma educação visual e artística. O olhar fica mais sensível e amplo. Use todas as oportunidades. Indique como o selfie que ele tanto faz apresenta uma composição espacial. Introduza, aos poucos, a gramática de cada escola artística. Aprendizado implica esforço.
Educar não é adestrar, mas ampliar e estimular o repertório para que cada ser faça parte da aventura humana. A educação pela arte é poderosa e pode mudar, para sempre, a vida de alguém.

O outro ponto é a música. Todos os seres humanos deveriam ser expostos à linguagem musical desde cedo. Crianças amam o ritmo de tambores (para desespero de pais) e podem entrar logo no campo da melodia. Caixinhas de música seduzem bebês. Alfabetizar em música é algo muito bom. Em primeiro lugar, poucas coisas exigem áreas tão variadas do cérebro. Tocar requer habilidade motora das mãos, matemática do compasso, sensibilidade e abstração interpretativa. Descobrir esse universo é algo que ilumina as sinapses e estabelece a comunicação entre os dois lados do cérebro. Acreditem: a música torna as pessoas mais inteligentes! Rousseau, Nietzsche, Adorno e Barthes foram muito interessados em música. Parte de sua agudeza mental derivou disto.

Há uma outra vantagem na educação musical. Ao estudar piano, violão ou outro instrumento, despertamos um verdadeiro método. A criança começa com 15 minutos diários, depois meia hora e vai aumentando. É um sistema crescente de concentração. Surge uma arquitetura gradativa que estimula a paciência. Foco é um diferencial enorme nas relações profissionais e afetivas.

O livro O Grito de Guerra da Mãe Tigre (Amy Chua) narra a experiência de uma sino-americana com suas filhas Uma foi levada ao piano e outra ao violino. Dentro dos princípios defendidos pela mãe, as meninas foram estimuladas a um alto grau de excelência quase obsessivo. Proponho algo diferente, mas Amy Chua tem a vantagem de ter uma estratégia e de se envolver nela.

A música é para criar alma, não para tocar, obrigatoriamente, no Carnegie Hall ou na Sala São Paulo. Preciso estudar música para ser um bom ouvinte. O jovem deve ser incentivado até o ponto em que ele possa se divertir com a música. Todos ganham com esse aprendizado. Possibilitamos, com as artes, que o indivíduo viva sua sensibilidade, crie foco e amplie seu leque de interesses. Pense bem: se você não quiser enfatizar isso porque seu filho não será músico ou pintor, deveria evitar que ele aprenda a ler, porque ele também não será escritor. Interrompa a Educação Física: ele não competirá nas próximas Olimpíadas. Educação é para formar o ser humano completo, não para tornar cada atividade um projeto de carreira. A carreira virá de forma natural, ela é efeito de uma causa anterior, a personalidade.


Livros, tabela periódica, fórmulas físicas, redação, processos históricos: tudo isso pode ser parte de um projeto. Desejei reforçar a arte e a música como linguagens específicas para um diferencial humano. Meu ex-professor, Pe. Milton Valente SJ, afirmava: non scholae, sed vitae discimus (não é para a escola, mas para a vida que aprendemos). Poucas coisas têm tanta vida no mundo como a criatividade artística e musical. Ouse, crie e acredite: seu filho será outro se tiver acesso a estes dois mundos. Focar somente no que vira lucro é bom para o projeto de hamsters amestrados, não para pessoas integrais. Não temos a menor ideia de qual carreira será brilhante em 2046, mas todas necessitarão de criatividade e inteligência. Aproveito e agradeço a todos os meus mestres que apostaram que haveria vida após o vestibular. Bom domingo para vocês!