15 de maio de 2023

Apenas quatro universidades federais não têm banca anti-fraude de cotas raciais

 

 Ilustração:  Nathi de Souza/Alma Preta.


Das 69 universidades federais existentes no Brasil, quatro ainda não possuem em seus cursos de graduação comissão ou banca de heteroidentificação para identificar possíveis fraudes nas cotas raciais.

De acordo com dados obtidos pela Alma Preta via Lei de Acesso à Informação (LAI), as instituições federais de ensino superior que ainda não possuem o mecanismo são a Universidade Federal de Rondônia (UNIR), a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Das quatro universidades que ainda não possuem as comissões que verificam a autodeclaração racial dos estudantes autodeclarados negros e indígenas, duas estão em fase de instalação: a UNIR e a UFOPA. Na UnB, a comissão existe apenas para a pós-graduação e a única que não possui é a UTFPR.

Em todas as universidades que possuem bancas de heteroidentificação, a análise é feita com base no fenótipo da pessoa autodeclarada negra (preta e parda), como a textura do cabelo, nariz e boca, por exemplo. Na maior parte, as avaliações são feitas de forma presencial e telepresencial.

A maioria dos integrantes das bancas possui formação, estudos ou integra coletivos voltados para a temática étinico-racial. Algumas regulamentações mencionam capacitação e outras têm como pressuposto a experiência e vivência no tema como capacitação para participação dessa atividade nas universidades.

A reportagem questionou no pedido de LAI qual o perfil racial dos membros das bancas nas universidades, mas não foi possível obter essa informação já que os dados fazem parte de um levantamento interno realizado em março de 2023 pela Diretoria de Desenvolvimento da Rede de Instituições Federais de Educação Superior (DIFES) a pedido da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR).

Em resposta, a DIFES informou que "não possui as informações solicitadas, uma vez que são de responsabilidade de cada universidade federal".

Universidades dizem que vão implementar bancas de heteroidentificação

A Universidade de Brasília informou que a previsão é de que as bancas de heteroidentificação nos cursos de graduação sejam implementadas para todos os alunos com entrada a partir do segundo semestre deste ano.

Em relação aos critérios para a análise dos alunos autodeclarados negros, indígenas e quilombolas, a UnB respondeu que o processo será fundamentados em critérios como o "respeito à dignidade da pessoa humana", "observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal", "garantia da padronização e de igualdade de tratamento entre os(as) candidatos(as) submetidos(as) ao procedimento de validação da autodeclaração", entre outros.

Já em relação aos membros que irão compôr as bancas, a universidade informou que eles "são partícipes de um banco coordenado pela Comissão de Acompanhamento de Políticas de Ações Afirmativas na Pós-Graduação (COPEAA) e passam por curso de formação".

A UFOPA, por sua vez, disse que planeja implementar a política de heteroidentificação em 2024 e que já possui um processo em tramitação no Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre a Política de Heteroidentificação e Comissão Permanente para a Promoção da Igualdade e da Diversidade Étnico-Racial da Ufopa.

Segundo a universidade, atualmente o processo seletivo regular conta com oito grupos de cotas, quatro voltados para o perfil PPI (pretos, pardos e indígenas).

Sobre o processo de análise, a UFOPA afirmou que o critério exclusivo será a análise fenotípica, como cor da pele, textura do cabelo, formato do rosto, lábios, traços faciais.

Para a composição da comissão de heteroidentificação, os critérios serão para membros "que tenham conhecimento na temática étnico-racial e ações afirmativas", "preferencialmente com experiência na temática da promoção da igualdade étnico-racial e do enfrentamento ao racismo" e "preferencialmente que acompanhem e tenham conhecimento sobre as políticas de ações afirmativas e as políticas de cotas existentes tanto em âmbito interno como externo", conforme cita a nota enviada pela UFOPA.

A Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) informou que ainda não adotou o uso das bancas de heteroidentificação porque durante o período em que adotou o Sisu como forma exclusiva de ingresso transferiu ao Ministério da Educação a gestão do processo seletivo "diminuindo, assim, a capacidade de realizar decisões mais estratégias sobre o processo".

Disse também que a decisão se deu pelo baixo número de servidores técnico-administrativos na universidade que, segundo a instituição, "é um dos menores de toda a rede de universidades e institutos federais", o que fez com que a universidade "optasse por concentrar sua força de trabalho para o cumprimento integral da legislação, que exige apenas a autodeclaração para concorrer no sistema de cotas".

Atualmente, o ingresso de alunos negros (pretos e pardos) e indígenas na UFTPR acontece por meio de duas cotas: para candidatos autodeclarados com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas; e para candidatos que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

A UFTPR também acrescentou que uma comissão interna, instituída em julho de 2022, atua na elaboração de um plano para implantação da heteroidentificação na instituição e que, assim que for finalizada, será encaminhada para o Conselho Universitário da Universidade.

Apenas a Universidade Federal de Rondônia não deu retorno sobre a implementação do mecanismo anti-fraude de cotas. Caso a instituição de ensino se posicone, o texto será atualizado.

Denúncias sobre fraude de cotas raciais são frequentes

Há pouco mais de dez anos, o sistema de cotas raciais nas universidades, previsto na Lei 12.711/2012, reserva vagas a alunos autodeclarados pretos, pardos e indígenas para ingresso no ensino superior como parte das políticas afirmativas de um processo de reparação histórica.

Mesmo com a implementação das bancas de heteroidentificação, são frequentes as reclamações sobre o ingresso irregular de estudantes através das políticas afirmativas.

Só entre 2020 e 2022, as universidades federais do país registraram, em média, sete casos de uso irregular das cotas raciais por mês, segundo levantamento feito pela GloboNews. Ao todo, 69 instituições de ensino superior contabilizaram pelo menos 1.670 denúncias de uso das cotas raciais no período analisado.

Na Bahia, um caso recente aconteceu em uma instituição estadual, na Universidade Estadual da Bahia (UNEB). A história de Janecleia Sueli, 49 anos, ganhou repercussão nacional após ela passar no curso de Medicina na instituição. Natural de Piritiba, no centro norte baiano, e moradora da periferia de Petrolina, em Pernambuco, a diarista passou 12 anos tentando realizar o sonho até que foi aprovada no vestibular da Uneb no início de 2023. Através de uma campanha de financiamento virtual, ela conseguiu levantar uma quantia para arcar com o deslocamento para Salvador e manter os estudos.

Porém, o que era para ser uma história de superação se tornou um caso de apuração após denúncias de que Janecleia, lida como uma pessoa branca, teve a autodeclaração como parda deferida pela banca de heteroidentificação da Uneb.

À Alma Preta, a autora da denúncia, que não quis se identificar, destacou a importância de dar visibilidade a esses casos, que, segundo ela, são frequentes nas universidades. "Pelo menos eu acho que as pessoas que querem cometer uma fraude dessas vão pensar duas vezes antes de fazer isso. Porque se a pessoa faz e fica 'de boa' (sic) durante o curso inteiro, a probabilidade é de outras pessoas fazerem também", desabafa.

Em março deste ano, a universidade informou que enviou o caso para a Comissão de Validação Departamental e aos setores competentes para verificar se a denúncia é plausível. "Será garantido à denunciada o direito ao contraditório e a ampla defesa da pessoa acusada, bem como o respeito a sua dignidade", cita a nota.

A Uneb disse ainda que adota a autodeclaração como regra geral e que, uma vez verificada inconsistência, os/as candidatos/as "serão eliminados(as) do processo seletivo ou terão a matrícula anulada a qualquer tempo, mesmo se já matriculados(as)”.

O caso foi registrado na Ouvidoria do Ministério Público estadual da Bahia (MP-BA). Uma reunião entre o órgão e a Uneb estava prevista para acontecer no dia 3 de abril, mas, segundo nota enviada pelo MP-BA, o encontro foi adiado a pedido da universidade.

Heteroidentificação: por uma política de reparação

Frutos de articulação do movimento negro, as comissões de heteroidentificação nas universidades surgiram como uma reação aos processos de fraude nas cotas raciais. Uma das primeiras experiências das cotas raciais aconteceu na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual da Bahia (UNEB), em 2003.

Segundo o advogado, professor e militante do movimento negro, Samuel Vida, com as ameaças à continuidade das políticas afirmativas, viu-se a necessidade de aperfeiçoar as cotas, até então validadas pela autodeclaração.

"Durante a implementação, a gente descobriu de forma não demorada que a fraude ameaçava o êxito da política e privava uma parcela de beneficiários do acesso já que pessoas brancas se autodeclaravam pardas ou até pretas e ocupavam essas vagas", explica Samuel, que participou dos processos de institucionalização da agenda do movimento negro desde a Constintuinte e foi consultor na elaboração do Estatuto da Igualdade Racial.

Em uma banca de heteroidentificação, um dos principais critérios para avaliar uma pessoa negra, grupo racial composto por pretos e pardos é o fenótipo. De acordo com a cientista social e pesquisadora dos processos de heteroidentificação, Najara Costa, o preconceito racial no Brasil se organiza pelo racismo de marca, que vai determinar a posição de cada pessoa na sociedade.

"Quando uma pessoa vai procurar ou concorrer a uma vaga de emprego, o que vale é o fenótipo dela e aquilo vai determinar com que ela tenha direitos dentro dessa sociedade que se organiza a partir desse racismo de marca e é isso que vai determinar que ela tenha oportunidades ou não e uma série de questões que vão desde a própria sobrevivência dessa pessoa porque a violência policial se caracteriza a partir desse fenótipo", comenta a pesquisadora, autora do livro "Quem é negra/o no Brasil?", obra que analisa as comissões nos concursos públicos no município de São Paulo.

"A autodeclaração é o primeiro elemento, é uma conquista universal. Se autodeclarar é como eu me entendo no mundo, é como a minha identidade foi forjada/construída. A heteroidentificação é como a sociedade me vê", completa Najara.

O "pardo"

O uso da categoria "pardo" nas cotas raciais das universidades também têm sido debatido por especialistas por gerar confusão no limite entre uma pessoa negra não retinta e uma pessoa branca que se considera parda, por exemplo.

No Pará, uma estudante autodeclarada parda teve a heteroidentificação negada pela comissão da Universidade Federal do Pará (UFPA) no início deste ano. Clara Costa, de 26 anos, já havia ingressado em 2013 na instituição de ensino pelas cotas raciais e por ser oriunda de escola pública. Ela se considera uma mulher negra de pele parda e realiza palestras sobre a temática racial em eventos acadêmicos.

A reportagem entrou em contato com a UFPA e questionou os critérios utilizados para indeferir a heteroidentificação da estudante. Em nota, a universidade respondeu que a banca é adotada pela UFPA desde 2021 para "validar a autodeclaração de pessoa negra (de cor preta ou parda) apresentada pelos(as) candidatos(as) classificados(as) em cotas PPI".

"Até então, era utilizada apenas a autodeclaração como único critério para reconhecer o direito dos(as) estudantes a essas vagas. Com o tempo, porém, foram recebidas denúncias de uso indevido dessas vagas por pessoas não negras, fosse por desconhecimento do público a que se destinam essas vagas, fosse intencionalmente (fraude)", disse a universidade.

Para a cientista social Najara Costa, um dos caminhos possíveis seria substituir o termo "pardo" por "negro" como forma de reivindicação diante do processo de apagamento histórico da identidade da população negra no país.

"Acho que a melhor estratégia para a gente definir quem é branco no Brasil é perguntar: 'Essas pessoas enfrentam o racismo?'. A forma como a pessoa se autodeclara para uma política pública precisa com que a gente tenha essa compreensão até porque essa é uma reparação histórica e para essa política pública a gente precisa defender que pessoas que enfrentam o racismo entre pela política de cotas", sugere.

Historicamente, o "pardo" foi utilizado como uma estratégia classificatória adotada pelas elites brancas brasileiras para inferiorizar e marcar uma distinção em relação àquelas pessoas não retintas mas que possuíam traços fenotípicos negróides: cabelo crespo, lábios grossos, nariz negróide, como explica o professor Samuel Vida.

"O Censo usa a categoria 'pardo' para se referir a pessoas negras de pele não retinta desde o século 19. As descrições sobre a escravidão durante o período colonial e durante o período imperial apresentam o pardo como escravizado e você pode ver isso nos anúncios de jornais procurando fugitivos e nos processos judiciais descrevendo fisicamente os escravizados punidos", exemplifica.

O professor defende o uso da categoria "pardo" para as políticas de cotas e avalia que o termo se trata de uma disputa política que tem que continuar a ser reafirmada pelos negros. Para ele, existem dois riscos em abandonar a categoria para os brancos:

"Primeiro, uma parcela de pessoas negras de pele clara retomariam um lugar de insegurança e indefinição identitária, ou seja, voltaria para o limbo que lhe foi reservado pela estratégia dominante no Brasil. Segundo, os brancos inventariam outra estratégia para fraudar porque ela não está definida pela ambiguidade do termo 'pardo', a fraude está definida por uma resistência política da branquitude à mudança das relações raciais", argumenta.

Como evitar fraudes de cotas raciais?

Diante da importância das ações afirmativas para a população negra nas instituições de ensino, especialistas comentam a necessidade de aperfeiçoamento das bancas de heteroidentificação.

Para Najara Costa, é fundamental que as pessoas que compõem as bancas passem por um processo de formação em letramento racial, em como o racismo opera no Brasil e quem faz jus às políticas de cotas raciais para evitar erros durante o processo.

"Ao meu ver, isso é falta de formação sobre o que deve caracterizar essa pessoa que vai fazer jus a essa política pública que é tão importante e é uma conquista histórica não só para as pessoas negras, mas para o Brasil para que a gente avance enquanto democracia e representação", ressalta.

O professor Samuel Vida acrescenta que as bancas ainda são uma experiência em construção e defende que elas passem por um processo de uniformização. Para ele, as comissões devem ser compostas por pessoas que atuam dentro das instituições de ensino e que possuem envolvimento com o movimento negro e sociais que discutem relações étnico-raciais no Brasil.

"Uma pessoa que integra uma banca deveria ser preparada mesmo que ela já venha dos movimentos sociais e que tenha algum conhecimento para produzir uma maior homogeneidade, não no sentido de uma unidade absoluta, mas uma compreensão a partir de parâmetros comuns", conclui.

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Com informações do Alma Preta.

14 de maio de 2023

Negro Mingu: um voluntário da fortuna da vila de Milagres-CE na Guerra do Paraguai

Desenho do negro Mingu vestido com a indumentária dos combatentes da Guerra do Paraguai. (FOTO | Desenho da professora Ana Ivyna Leite Lima).


Por César Pereira, Colunista

Conforme despacho do governo da Província do Ceará datado do mês de julho de 1866, todas os delegados nomeados para as vilas e municípios da província deveriam formar um corpo de homens voluntários para embarcar em direção ao sul do Brasil a fim de defender a nação contra o presidente Solano López, ditador paraguaio que em fins de 1864 havia declarado guerra ao Império do Brasil ao invadir a Província do Mato Grosso.

A Guerra do Paraguai, como ficou conhecido o conflito entre Brasil, Argentina e Uruguai contra a república paraguaia começou em dezembro de 1864 e duraria até o ano de 1870. Foram mais de cinco anos de combates que ensanguentaram a América do Sul, provocando a morte de centenas de milhares de pessoas, tanto nos campos de batalha quanto nas cidades e povoados invadidos por um ou outro dos lados em combate.

A guerra começou com o exército brasileiro desestruturado, mal treinado, mal armado e principalmente com um número de soldados muito inferior ao necessário para infligir combates contra uma nação invasora de seu território. O Paraguai contava com um efetivo militar de 70 a 100 mil soldados, o Brasil com aproximadamente 16 mil homens aptos ao combate. Assim, em 14 de dezembro quando a guerra principiou, o exército paraguaio avançou rapidamente dentro do território do império brasileiro. As tropas de Solano López avançaram sobre o Mato Grosso e sobre o Rio Grande do Sul.

Percebendo o perigo representado por estas primeiras vitórias do exército paraguaio, o governo brasileiro procurou rapidamente deslocar para a área do conflito armamentos e soldados aquartelados nas demais províncias do império, convocou a Guarda Nacional e baixou um decreto ainda no princípio do mês de janeiro de 1865, solicitando que todas as províncias estimulassem um alistamento geral e não obrigatório de civis para servir no exército brasileiro como combatentes voluntários.

No início da guerra, a alta oficialidade do exército e da marinha brasileira, bem como a elite política nacional deixaram bem evidentes que preferiam que os Voluntários da Pátria fossem homens brancos, membros das melhores famílias de cada província ou quando muito homens livres e brancos pertencentes as classes médias de cada localidade. Com o desenrolar da guerra e as demonstrações de força e bom preparo militar do Paraguai que estava impondo derrotas aos exércitos da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai), ficou evidente que o império brasileiro precisava urgentemente de mais combatentes para fazer frente ao corpo militar paraguaio.

O alistamento de Voluntários da Pátria iniciado em 1865 não se mostraria suficiente para suprir as baixas do exército brasileiro, nem tampouco para fazer frente ao numeroso exército paraguaio. Além disso, o Brasil enfrentava um outro problema, os filhos da elite branca, ou mesmo aqueles homens brancos livres, os quais a alta oficialidade das forças armadas brasileiras queriam ver nos campos de batalha simplesmente se recusavam a dela participar ou fugiam a convocação que insistentemente lhes era feita.

Percebendo a falta de combatentes e cobrado pelos oficiais comandantes do exército e da marinha nacional para aumentar o efetivo brasileiro no combate a Solano López, o imperador Dom Pedro II, enviou ao conselho de estado em 1866, uma consulta sobre a possiblidade de se enviar homens escravizados devidamente alforriados para combater o Paraguai.

A proposta levantou grande celeuma no parlamento, os argumentos gerais eram contra, pois segundo os adversários de tal medida, a lavoura brasileira precisava da mão-de-obra escravizada para continuar produzindo. Outros alegavam que era muito ariscado armar escravos, pois estes podiam voltar-se contra o branco. Dizia-se que um numeroso exército de libertos [...] seria um elemento perigoso no teatro das operações, e o seu alistamento poderia, dentro do Império, comover a população escrava, agitada não só pelos seus próprios instintos, mas ainda por instigação de agentes ocultos. (PARANHOS apud SCHWARCZ e STARLING, 2015).

Mas a posição do Conselho de Estado consultado pelo imperador foi que mediante o estabelecimento de determinadas condições para os alistamentos desses negros forros, deveriam sim ir para a guerra , desde que fossem comprados pelo estado, presenteados pelos seus proprietários ou em substituição a um branco que não pudesse ir para a guerra. A principal orientação dada pelo Conselho de Estado ao governo imperial era que os escravos que seguissem para os campos de batalha paraguaios deveriam ser homens entre 16 e 35 anos nascidos no Brasil.

Marcolino José Dias, o tenente negro que virou herói na Guerra do Paraguai. (FOTO | Reprodução | Internet).


Feitas as devidas ressalvas e elaborados o corpo da lei que regulamentaria a participação dos escravizados alforriados na guerra do Brasil contra o Paraguai encaminhou-se para as províncias a orientação para a formação do corpo dos chamados Voluntários da Fortuna. Esse novo corpo de soldados seria formado por homens negros cuja liberdade fosse comprada pelo governo imperial, ou por subscrição de populares, como também por homens negros escravizados cujos senhores tivessem doado ao Império do Brasil para se engajarem na guerra.

Havia também entre esses Voluntários da Fortuna, homens que tinham sido obrigados pela lei ou escravizados convencidos a trocarem de lugar com seus senhores ou filhos desses senhores que se recusavam a ir para a área de combates. Eram também chamados de Voluntários da Fortuna os homens pobres livres que se engajaram no exército por causa do soldo. Desse modo dezenas de milhares de homens negros escravizados deixaram o trabalho nas lavouras ou o trabalho doméstico para lutar numa guerra que não era deles, e em nome de um país que não os reconhecia como cidadãos.

Quando em julho de 1866, a Câmara Municipal da Vila de Nossa Senhora dos Milagres recebeu a notificação por meio de um decreto publicado no jornal O Cearense, de que esta comarca precisava arregimentar no mínimo seis Voluntários da Pátria que deveriam ser encaminhados ao município do Crato para serem devidamente alistados e assim marcharem para o Recife onde embarcariam para o sul do Brasil, o delegado Jesus da Conceição Cunha assim se pronunciou em carta publicada no jornal de oposição A Constituição:


[...] Entende-se que a nação inteira está em perigo, que haja necessidade do combatente lá no Rio Grande, mas não é menos verdade que precisamos de nossos filhos também aqui nesta vila. Cada família compreende a emergência em que está nosso país, amamos nossa Majestade, e sobretudo nossa liberdade nacional. Não vamos nos opor, mas como coronel da Guarda Nacional nesta Vila de Milagres, informo que não disponho de voluntários que possam deixar suas vidas para se oferecerem como soldados. (A Constituição, disponível em: http://memoria.bn.br, acesso em 13 de maio de 2023.)


O delegado Jesus da Conceição Cunha era uma liderança política ligada ao Partido Conservador em Milagres, e a sua carta foi logo respondida por uma outra missiva, desta vez publicada no jornal do Partido Liberal, O Cearense. A carta assinada por um pseudônimo, que se anunciava como combatente da autocracia do Cunha em Milagres, um certo Zé Pequi, (como se autointitula), denunciava que o Jesus da Conceição Cunha recusava-se a cumprir a determinação do governo para formar um corpo de Voluntários da Pátria em Milagres porque estava “mancomunado com os maiorais da terra, pra se manterem no mando e desmando do lugar, perseguindo e matando quantos não aceitassem sua dictadura (sic)” (O Cearense, disponível em: http://memoria.bn.br).

Ao que parece o delegado Jesus da Conceição Cunha foi instado pelo governo da Província do Ceará a arregimentar homens para compor o corpo de Voluntários da Pátria em Milagres. Em dezembro de 1866, publica-se no jornal O Cearense e Dom Pedro II, um informativo dando conta de que o delegado de Milagres encaminhou para o Crato, cinco homens voluntários que deveriam ser embarcados para o Paraguai.

Um relatório da Câmara Municipal de Milagres enviado ao presidente da Província do Ceará em janeiro de 1867, informa que dos cinco voluntários encaminhado ao Crato eram:


...Dois eram irmão, Filipe Simplício, Manuel Simplício criminosos de roubo de gado no Cuncas e no Podimirim (anistiados). Este outro é um escravo forro por alcunha Mingu cria do alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo e os dois outros, Pedro Dantas Linhares de Souza e João Telles Dantas Quintal, moços de boas famílias, que se haviam apresentado de mui boa vontade após excelente sermão do pároco José Castriciano que pregara em favor dos alevantamentos (sic) dos ânimos patrióticos do povo da Vila de Nossa Senhora dos Milagres. (Relatório dos Presidentes de Província, disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital, acesso em 13 de maio de 2023).



O “voluntário” que nos interessa aqui é especificamente este escravo forro do alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo. Ao se apresentar para ser alistado como “voluntário” da fortuna, o escravizado alforriado deveria escolher um sobrenome, mas pelas informações da Câmara de Milagres, sabemos que o preto em questão era conhecido na vila por Mingu.

Era um escravo de ganho do dito alferes, pois em 1861 o mesmo Belarmino Ferreira Lino de Melo, publicou no jornal o Araripe, impresso na cidade do Crato um anúncio em que alugava um negro “de muito boa aparência, constando os seus 19 anos, era bom pra tudo, mas principalmente para serviços domésticos, no entanto servia também como pajem e cuidava de criações.” (O Araripe, disponível em: https://bndigital.bn.br/acervo-digital/araripe/213306). Pouco menos de um ano após este anúncio de aluguel, outro foi publicado no mesmo jornal pelo alferes, mas desta vez reportando a fuga de Mingu:


No dia 08 de março do ano próximo fugio da casa do sr. Antônio Felizardo Lins, alfaiate nesta Villa de Nossa Senhora dos Milagres, um escravo preto que atende por nome Mingu, 20 annos de edade, boa altura, corpo esguio, bons dentes, cabelos carapinha, pés chatos., fala macia e andar vagaroso. O mesmo se intitula forro e a primeira vez que fugio foi pego trabalhando como cavouqueiro na Vila de Telha aonde seu pai se encontra desde que foi vendido para um senhor seu, fazendeiro nas terras daquela povoação. Quem o prender entregar sob a guarda do sr. João Alves Bezerra de Menezes que terá boa recompensa. Informa-se que quem o esconder responderá diante da lei. (O Araripe, disponível em https://bndigital.bn.br/acervo-digital/araripe/213309, acesso em 13 de maio de 2023).


De acordo com o anúncio de 1862, não era a primeira vez que Mingu fugia a escravização, fugira outra vez e se escondera na Vila de Telha (hoje Iguatu) onde fora recapturado. Também esta não seria a última vez que o alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo publicaria anúncio informando a fuga de Mingu e oferecendo recompensa por sua captura. Em 1866 novo anúncio, desta vez no jornal A Constituição do qual o alferes era correspondente:


ESCRAVO FUGIDO

Fugio do abaixo assignado, no dia 08 do corrente, o seu escravo de nome Mingu, alto, corpo regular, cabelo carapinho, dentadura perfeita, muito corrido, pouca barba, mete-se a conversador, indo vestido com camiza e ceroula de algodãozinho. Quem captura este escravo, entregando-o no Milagres ao seu legítimo senhor, no Icó a exmª dona Silvana Moreira dos Santos e no Crato ao sr. dr. Francisco Ribeiro Montezuma, será generosamente recompensado.

Icó, 08 de novembro de 1866.

Belarmino Ferreira Lino de Melo (A Constituição, disponível em: http://memoria.bn.br).


Como podemos perceber a partir dos anúncios publicados pelo alferes, Mingu era um homem escravizado que se rebelava contra a sua escravização fugindo ao seu escravizador sempre que encontrava oportunidade. Mesmo recapturado em suas fugas, Mingu não desistia de se fazer homem livre.

Provavelmente foram as fugas constantes do escravizado Mingu que levaram o alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo a aceitar o preço oferecido pelo estado por meio do seu amigo e aliado político Jesus da Conceição Cunha, delegado de Milagres entre 1857 e 1879 e vender Mingu para ser um “voluntário” da fortuna na Guerra do Paraguai.

Ao preto Mingu, como a tantos outros pretos escravizados que tiveram a liberdade comparada pelo governo imperial em troca de irem arriscar suas vidas numa guerra combatida por um país que não os considerava cidadãos parecia paradoxal, mas acima de tudo para quem desejava ser livre, e não servir a nenhum senhor escravocrata, a liberdade acenada pela carta de alforria do imperador era bastante preciosa.

Nada sabemos sobre o cotidiano de Mingu nos campos de batalha do sul do Brasil, mas de forma geral, como já foi descrito por Francisco Doratioto no seu livro “Maldita Guerra”, os soldados negros eram tratados como inferiores diante dos voluntários brancos. Geralmente cabia a eles os piores serviços no campo de batalha e nos acampamentos militares. Limpar as latrinas, manter a limpeza, preparar os alimentos, recolher e sepultar os mortos, cavar valas, fazer a vigilância, servir de atalaias ou mensageiros. Muitos deles apenas faziam os serviços comuns daqueles que permaneciam ainda submetidos a escravidão.

Também descreve-se que esses pretos Voluntários da Fortuna eram tratados de forma vilipendiosa pela alta oficialidade da marinha e do exército brasileiro, como também da Argentina e Uruguai, pois sofriam todo tipo de discriminação e preconceitos, além de serem vistos como inferiores aos soldados brancos e vítimas do racismo que imperava nas forças armadas.

Em Milagres pouco se acreditava na volta dos Voluntários da Fortuna para a vila. Em 1868, o jornal O Cearense rejubilava-se com o retorno dos “ilustres heróis da Vila de Milagres” que voltavam condecorados da guerra, eram os primos Pedro Dantas Linhares de Souza e João Telles Dantas Quintal, “filhos da mesma família que não recusaram ceder seus varões para servirem a nação.” A nota laudatória nada falava de Mingu ou dos irmãos Simplício, estes últimos “voluntários” forçados.

Somente em 1874, quatro anos após o fim da Guerra do Paraguai aparece mais uma vez o nome do negro Mingu. Parece que retornara a Vila de Milagres recentemente, mas o que o põe em evidência na vila não é a sua volta, trata-se de uma contenda entre o padre José Castriciano inimigo declarado do delegado Jesus da Conceição Cunha e seus aliados políticos.

Numa carta escrita para O Cearense, José Castriciano denuncia o delegado como notório protetor de criminosos e relata que:


...ultimamente o Cunha tem estado ocupado perseguindo um crioulo forro que foi do alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo. [...], o preto é um infeliz que tendo sido soldado voltou para viver com a mãe, procurou minha protecção contra os desatinos do delegado que pretende entregá-lo ao seu antigo senhor. (O Cearense, disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=709506&Pesq=volunt%c3%a1rio%20da%20p%c3%a1tria&pagfis=7048, acesso em 13 de maio de 2023).


Com a proteção do padre José Castriciano e outras pessoas de Milagres, o negro Mingu garantiu sua liberdade contra as tentativas de reescravização do seu antigo senhor aliado do delegado.

Ao que parece Mingu retornou a Milagres com algum dinheiro, pois pesquisando no livro de espólios da secretaria paroquial de Milagres (1865 – 1880), consta uma informação importante sobre ele. Informa-se que este entregou sob a guarda do padre José Castriciano o valor necessário para a alforria da preta Joana Ireneu, sua mãe e que este padre em 1875, obteve do fazendeiro José Franklin de Lima a liberdade desta.

A última informação escrita sobre Mingu encontra-se no livro de batismo da mesma Secretaria Paroquial de Milagres (1871 – 1884), onde registra-se que em 1879, deu-se o batismo de Izael Ireneu filho de Domingo Ireneu e Firmina Viríssimo, sendo madrinha a avó Joana Ireneu e padrinho o sr. Francisco de Sá Batinga.

Depois disso temos apenas os relatos orais da própria família Irineu, cujo patriarca hoje com 93 anos de idade relata recordar-se de uma história de família sobre desse seu parente que foi pra “uma” guerra , vários membros dessa família ainda hoje reside numa localidade distante cerca de 10 km da sede do município de Milagres, numa localidade conhecida até a década de 1990 como Vilinha Negra, mas atualmente chamada oficialmente de Vila Mingu.

Ao voltar da Guerra do Paraguai os soldados negros passaram a questionar a manutenção do regime escravocrata num país em que eles foram defender com a própria vida. (FOTO | Reprodução | Internet).

REFERÊNCIAS

JUNIOR, Heraldino Santos : O dilema político sobre a participação do negro na guerra do Paraguai nos anos 1864 a 1869, disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br

http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital

https://www.arquidioceseolindarecife.org/arquivo.


ARQUIVOS CONULTADOS

Arquivo Público do Ceará

Arquivo da Secretaria Paroquial de Milagres

Arquivo do Laboratório de Ciências Humanas da E.E.M.T.I. Dona Antônia Lindalva de Morais.

13 de maio de 2023

Abolição da escravidão: quais lugares foram delegados a população preta após a assinatura da Lei Áurea?

Professor Nicolau Neto em roda de conversa com professores/as da EEMTI Santa Tereza, em Altaneira. (FOTO | Reprodução).

Por Nicolau Neto, editor

O dia 13 de maio é uma data histórica no Brasil. Há 135 anos era aprovada no senado do Império do Brasil e sancionada pela princesa Isabel, regente do Brasil, a Lei Áurea. Essa lei é registrada nos livros didáticos como aquela que aboliu a escravização da população negra no país após mais de três séculos.

Quando se fala em abolição da escravização no Brasil é preciso fazer diversos questionamentos, como esses: quais lugares foram delegados a população negra após a assinatura da Lei Áurea? Qual o papel que a população negra escravizada teve nesse processo?

É preciso destacar que essa abolição é inconclusa. O que não é contado na grande maioria dos livros didáticos nas escolas é que essa abolição mesmo inconclusa foi fruto de uma campanha popular que pressionou o Império para que a instituição da escravidão fosse abolida de nosso país e é consequência direta de revoltas pensadas e organizadas por negros e negras. Não foi algo dado. Não foi um presente da elite branca para a população negra.

A lei em si foi votada pela elite e não alterou a vida dos escravizados, das escravizadas e, como uma das consequências sentidas hoje está o racismo estrutural. O racismo no Brasil se estruturou com e pós o processo de escravização.

É estrutural também quando tentam de todas as formas apagarem quaisquer atos ou situações histórico-filosóficas que relembrem de forma positiva o negro, a negra. É estrutural quando associam a imagem do negro e da negra somente a criminosos, a vadios e a tudo que é negativo. De igual modo, é estrutural também quando somadas essas condições, há a naturalização de casos que remetam ao racismo.

Não há o que se comemorar neste dia 13 de maio. Aliás, essa data deve ser vista como mais uma oportunidade de denúncia do preconceito, da discriminação e do racismo cada vez mais latente, mas também de apontamento de caminhos para superá-los. Dentro dessa perspectiva, é que apresentei apresentando nesta no dia 13 de maio de 2021 de forma virtual (google meet) o Plano Municipal de Combate ao Racismo e de Construção da Equidade Racial em Altaneira –CE junto a secretária de Governo, Leocádia Soares, a secretária de Educação, Zuleide Oliveira, ao secretário de Cultura, Antônio de Kaci, a diretores e coordenadores de escolas no município, a formadores educacionais, a representante do Sindicato dos Servidores Municipais (Sinsema), Lúcia de Lucena, ao vereador e presidente da Câmara, Deza Soares e a advogada e vereadora Rafaela Gonçalves.

É necessário ainda que cobrar das escolas públicas e particulares do Brasil o cumprimento das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 para além de datas e eventos esporádicos de maneira que se tenha currículos plurais, onde a educação das relações étnico-raciais seja discutida pelo víeis descolonizador.

Por que o Brasil demorou tanto para abolir a escravidão?

Professor Nicolau Neto fala sobre abolição inconclusa na abertura do VII Festival Alunos que Inspiram na EEMTI Pe. Luís Filgueiras. (FOTO | Reprodução).

 

A abolição do sistema escravagista brasileiro foi uma das últimas do mundo a ser implementada e ocorreu apenas em 13 de maio de1888, o que deu ao Brasil o título de último país da América Latina a acabar com a escravidão.

Depois do Brasil, faltava ainda 11 países eliminarem o regime escravocrata: Tunísia (1890), Gâmbia (1894), Madagascar (1897), China (1906), Serra Leoa (1928), Nigéria (1936), Etiópia (1942), Alemanha (1945), Marrocos (1956), Arábia Saudita (1962) e Mauritânia (1981).

A extinção do trabalho escravo foi um longo processo, que transcorreu ao longo da segunda metade do século 19, quando a preocupação em relação à utilização da força do trabalho negro entrou no debate público.

Segundo o professor e historiador Duílio Battistoni Filho, a intelectualidade brasileira se esforça até os dias atuais para explicar a abolição, principalmente por ter sido tardia. A maioria dos países latino-americanos decidiu suprimir o tráfico e a própria escravidão durante as guerras de independência (1810-1825). Como exceção, ocorreu ainda a abolição nas colônias holandesas, em 1863, Estados Unidos da América, em 1865, e no Brasil, em 1888.

Trabalho escravo era rentável

A conclusão, trazida por Battistoni no artigo “Por que o Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão”, é de que a rentabilidade do trabalho escravo teria permitido prolongar o sistema escravista quase até o fim do século. Somente a pressão abolicionista provocou a mudança das expectativas dos fazendeiros do Rio de Janeiro e arredores.

Entre as razões políticas do caráter tardio tomado pela abolição no Brasil, é possível destacar a demora da campanha abolicionista, em particular na região fluminense. O problema eleitoral foi importante, pois com a abolição os antigos escravos teriam direito ao voto, o que poderia provocar um abalo na sociedade racista e ferir os interesses políticos da classe dirigente. O próprio ministério Cotegipe procurou cercear qualquer campanha que tivesse o objetivo de acabar com a escravidão.

A preferência pelo imigrante europeu, as poucas oportunidades aos ex-escravos ocasionaram em uma desigualdade social que reforçou o racismo e está presente até os dias atuais”, diz o texto.

Já para o sociólogo Gilberto Freyre, o atraso na aboliçãol decorreu da fácil adaptação do português à população negra, razões genéticas e culturais, além da facilidade das relações sexuais entre senhores de engenho e suas escravas. De um modo geral, os proprietários rurais estavam fortemente comprometidos em manter o regime escravista por razões de dependência econômica, prestígio social e poder político.

Esse processo ocorre, portanto, a partir de medidas legais que, gradativamente, tentavam propor resoluções à questão da escravização de pessoas. A primeira medida adotada efetivamente foi a Lei Eusébio de Queirós (1850), que proibiu de vez o tráfico por meio do Oceano Atlântico.

Já na década de 1870 a Lei do Ventre Livre (1871) declarou livres os nascidos no Brasil, criando um desconforto com os cafeicultores do Vale do Paraíba, base importante de apoio ao governo. Próxima à Lei Áurea, a Lei dos Sexagenários libertou os escravos com mais de 60 anos de idade. Contudo, todas essas medidas pareciam tentativas de adiar o fim da escravidão.

Abolicionistas

Na década de 1880, a campanha abolicionista ganhou força e diversos atores sociais participaram delas, com suas variadas classes sociais. Joaquim Nabuco foi um importante nome do abolicionismo. Vindo de uma família de proprietários de terras em Pernambuco, o ativista fez frente ativa à campanha abolicionista.

José do Patrocínio é outro nome de destaque no contexto. Filho de um dono de escravizados com uma mulher negra, foi o responsável pelo jornal Gazeta da Tarde, meio de propagação das ideias abolicionistas. André Rebouças, que hoje nomeia uma avenida da cidade de São Paulo, foi outro importante adepto destes ideais.

Protagonizou a luta pelo abolicionismo também Luís Gama, que foi ilegalmente escravizado, fugiu, se formou soldado e depois atuou como jornalista e advogado na cidade de São Paulo.

Caminho para a abolição

A historiadora Ana Luíza Mello Santiago de Andrade, em seu artigo “Abolição da escravidão no Brasil”, explica que entre 1885 e 1888 houve uma fuga em massa dos escravizados das fazendas paulistas, incentivados por ativistas. Neste cenário as elites paulistas, observando a ruína iminente do sistema escravagista, apressaram o plano de imigração para dar conta da produção cafeeira.

O senador conservador Antônio Prado, representante do Oeste Paulista, ainda tentou conter os danos aos fazendeiros que seriam causados pela abolição dos escravizados. Ele defendeu que se libertasse os negros, mas garantindo primeiramente a indenização aos senhores, bem como a prestação de serviços por mais três meses, para assegurar a colheita seguinte.

Por fim, optou-se pela abolição sem restrições, aprovada pela maioria do Senado e assinada pela Princesa Isabel, então na regência do trono. Com a Lei Áurea sancionada, o destino dos ex-escravos foi marcado por dificuldades devido à falta de condições para subsistência em todas as regiões do Brasil.

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Com informações do Alma Preta.

11 de maio de 2023

Açaí com suflê

 

Alexandre Lucas. (FOTO | Acervo Pessoal).


Alexandre Lucas, Colunista

Aquele sofá parecia um divã. O silêncio acolhia a beleza do encontro. Os cachorros latiam como se estivessem rindo e roçaram mendigando ternura.

Carlos foi convocado, veio num livro capa amarela, talvez para proclamar a alegria e disfarçar a sua poesia repleta de dúvidas e atestada de ironia. Para recebê-lo chamou Morzat com a delicadeza dos seus toques. Fechou os olhos como se sentisse as palavras assoprando o seu corpo, encaixando no seu ritmo e brincando de ciranda na ponta dos seus seios. Drummond falava do amor: incerto, contraditório e real.

Entre os poemas, a partilha das comidinhas, a leitura das minhas interrogações e o gosto do amendoim caramelado. Paz e Guerra, não, não, era obra posta à mesa, nem disposta entre as pernas, mas o redemoinho entre a carne e a mente.

Era presente aquele encontro, desses para tomar água. Beber água diminui a quentura do corpo e reduz as batidas do coração. Distante reviro os botões procurando no vestido a poesia decotada, os olhos estrelados e o descanso do sofá.

10 de maio de 2023

Seminário Nacional “20 Anos depois - A Lei 10.639/2003 e o Ensino de História” já tem programação

 

Seminário Nacional “20 Anos depois - A Lei 10.639/2003 e o Ensino de História” já tem programação. (FOTO | Reprodução).

O Seminário Nacional 20 anos depois: A lei 10639/03 e o Ensino de História será um evento on line entre os dias 22 e 26 de maio, promovido pela Associação Nacional de História (ANPUH) e Associação Brasileira de Ensino de História (ABEH) com apoio de outras instituições parceiras. Esse encontro tem como finalidade mapear, debater, problematizar e dar visibilidade a pesquisas e experiências diversas que reflitam o impacto das leis 10639/2003,11645/2008 e diretrizes complementares, especialmente no Ensino de História, mas também em campos disciplinares afins, com enfoque para propostas e práticas de Educação para as Relações Étnico-raciais na Educação básica, no Ensino Superior e também em espaços não formais de Educação em diálogo com entidades, associações, coletivos e movimentos sociais. A nossa proposta é apontar desafios futuros para a área de História, propondo a construção de projetos formativos, atividades e compromissos coletivos de enfrentamento ao racismo no campo da Educação formal e não formal.

As inscrições no evento são gratuitas e tem como público alvo Professores de História e outros campos das Ciências Humanas das redes básicas de ensino e do Ensino Superior; Estudantes de história e outros campos das Ciências Humanas, em diferentes níveis de ensino; demais professores, pesquisadores, profissionais de áreas afins, interessados no tema; gestores, dirigentes e membros de associações, movimentos sociais, entidades não governamentais e coletivos de pesquisa e ações de extensão.

São duas as modalidades de inscrição.

Ouvinte: Aberto a toda a comunidade acadêmica e não acadêmica, interessada no tema.

Terão direito a certificados de ouvintes, os inscritos que participarem de até 75% das atividades. O evento terá 40 horas de atividades.

Círculos de Diálogo

Os Círculos de Diálogo são atividades que contarão com a participação de professores e pesquisadores convidados e especialistas nas temáticas propostas para essa modalidade. Terão duração de até 02 horas e serão transmitidos por meio do canal do Youtube da ANPUH-Brasil, nas datas programadas. Podem ser acompanhadas por todos os inscritos no evento. Serão 7 Círculos de Diálogo temáticos:

Círculo de Diálogo 1: Materiais Didáticos para se ensinar História no contexto da Educação para as Relações Étnico raciais.

Círculo de Diálogo 2: Currículos prescritos e praticados nos últimos 20 anos. Qual o compromisso com o antirracismo?

Círculo de Diálogo 3: Currículos dos cursos de História 20 anos depois. Que avanços podemos demarcar?

Círculo de Diálogo 4: 20 anos da lei 10639/2003. O que mudou na formação de professores?

Círculo de Diálogo 5: Universidades e movimentos sociais na construção de epistemologias, resistências e insurgências antirracistas

Círculo de Diálogo 6: Educação Antirracista em perspectiva decolonial e intercultural

Círculo de Diálogo 7: A Educação Antirracista em uma perspectiva transnacional

Rodas de conversa

As Rodas de conversa são espaços de diálogo destinado a apresentação de trabalhos que sejam resultado de pesquisa ou experiências envolvendo a temática proposta para o evento. Para participar dessa modalidade, é necessário fazer a inscrição seguindo as orientações especificas. As apresentações ocorrerão em dia e horário previamente definido, por meio de sala no google meet que será informada com antecedência.

As rodas de conversa serão organizadas por meio dos seguintes eixos temáticos:

1- A construção de currículos antirracistas no Ensino de História

2- Materiais didáticos insurgentes e antirracistas

3- Formação de professores antirracistas

4- Relações étnico raciais em perspectiva multi e transdisciplinar

5- Enfrentamentos ao racismo no cotidiano escolar

6- Memórias e patrimônios insurgentes no Ensino de História

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As informações são do site do evento. Clique aqui e confira a programação completa.

9 de maio de 2023

Cariri cearense e a educação das relações étnico-raciais

 

Imagem de divulgação do livro “Caderno Educação das Relações Étnico-Raciais no Cariri Cearense e Orientações Didáticos Pedagógicas”


Publicação apresenta estudos que pautam a educação das relações étnico-raciais da perspectiva negra e indígena no Cariri cearense

O projeto emociona na medida em que nos possibilitou, apesar do período mais complicado da pandemia, um reencontro com a história do povo negro e indígena, a partir da nossa própria história e do nosso lugar. Os materiais produzidos retratam esse encontro e essa reconexão.”

É assim que a pesquisadora Cícera Nunes define como se sentiu após a realização do projeto “Currículo e os processos de formação docente no campo das relações étnico-raciais.”

Um dos frutos da experiência foi a publicação “Educação das Relações Étnico-Raciais no Cariri Cearense”, que pode ser acessada gratuitamente na Biblioteca Dinâmica do Observatório Anansi neste link.

O CEERT conversou com Cícera a respeito da publicação e do projeto. Cícera é doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e atualmente é Professora vinculada ao Departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri (URCA). Confira os principais trechos da entrevista:

Como surgiu a ideia de elaborar o projeto e qual foi o objetivo dele?

Cícera: O projeto “O Currículo e os processos de formação docente no campo das relações étnico-raciais”, em uma perspectiva inter e transdisciplinar, surge de uma trajetória de trabalho junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais, que coordeno no Cariri cearense e tem buscado construir relações de parceria, em especial com escolas de educação básica, visando suprir a necessidade de suporte formativo e a produção de material bibliográfico e didático pedagógico na temática das relações étnico-raciais.

O projeto teve na sua centralidade a proposta de recontar e ressignificar a história do Cariri cearense a partir de perspectivas negras e indígenas. Fizemos uma inserção em um bairro negro, chamado Comunidade do Gesso, localizado na cidade do Catro (CE), procurando estabelecer parceria e aproximação com agentes escolares e moradores da comunidade, para que pudéssemos perceber influências, referências e presenças negras e indígenas na história desse lugar.

Depois disso, debatemos uma proposta de currículo e processos de formação dos profissionais da educação que caminhassem para uma educação de pertencimento a partir da relação com a história do lugar e do povo negro e indígena do Cariri cearense.

Quais são os destaques da publicação Educação das Relações Étnico-Raciais no Cariri Cearense, orientações didático pedagógica?

Cícera: O Caderno é uma inspiração das Diretrizes Curriculares Nacionais. É uma tentativa de levantamento dos estudos que pautam a educação das relações étnico-raciais, tanto a partir da perspectiva negra, como da perspectiva indígena no Cariri cearense.

São estudos que propõem a discussão a partir das escolas de educação básica e trazem uma contextualização sobre a política educacional antirracista e processos de formação de professores.

Trazem também indicações importantes de estudos e materiais pedagógicos que essa rede pode acessar para servir como suporte para implementação da política e também como suporte para a elaboração e fundamentação dessa política no contexto do Projeto Político Pedagógico das Escolas.

Quais são os demais produtos do projeto?

Cícera: Nós tivemos a produção de um vídeo-documentário chamado “Sankofa Gesso” e de três cadernos pedagógicos: “O Território Criativo do Gesso, Memórias e Narrativas Negro-Indígenas”; “A escola de Educação Básica e Educação para Relações Étnico-Raciais” e o “Caderno Educação das Relações Étnico-Raciais no Cariri Cearense e Orientações Didáticos Pedagógicas”.

Além disso, instalamos duas bibliotecas com a média de 200 títulos de autorias negras e indígenas, sendo uma biblioteca comunitária na escola parceira do projeto e uma biblioteca no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação, Gênero e Relações Étnico-raciais, que está localizado na universidade regional do Cariri.

Nós também desenvolvemos um aplicativo que mapeia os pontos de memória da Comunidade do Gesso e conta a história da comunidade a partir das informações postas no material didático.

Também realizamos, por mais de um ano, uma ação de formação que envolveu professores da educação básica da rede de ensino da região do Cariri cearense e também os estudantes da escola parceira do projeto.

Por fim, realizamos uma intervenção urbana com grafite, com a participação dos estudantes, professores e moradores do lugar, retratando nas paredes da comunidade um pouco de história e da trajetória da população negra no contexto brasileiro e local.

Como o projeto desenvolvido contribui para a Educação Antirracista?

Cícera: O projeto contribui para o fortalecimento de uma Educação Antirracista na medida em que proporcionou uma melhor identificação das referências negras e indígenas presentes na história e na cultura do lugar que possibilitam desdobramentos em várias ações pedagógicas nas variadas áreas do conhecimento. Essas informações foram materializadas nos cadernos pedagógicos e nas ações de formação que contaram com a colaboração de pesquisadores negros e indígenas.

A ação também contribuiu para aprofundar reflexões em torno da implementação da história e cultura indígena, discussão praticamente ausente nas ações de formação da região. A ação de formação proposta e o material pedagógico produzido são importantes suportes de ressignificação das propostas pedagógicas das escolas e das ações de formação dos profissionais da educação.

Como se sentiu com a experiência?

Cícera: O projeto emociona na medida em que nos possibilitou, apesar do período mais complicado da pandemia, um reencontro com a história do povo negro e indígena, a partir da nossa própria história e do nosso lugar. Os materiais produzidos retratam esse encontro e essa reconexão.

Considero que, ao fim dessa experiência, o que fica de mais marcante foi a possibilidade concreta que o projeto aponta para que a escola dê sentido a essas experiências que são vividas fora e dentro dela, com a possibilidade que a gente se reencontre com a história que nos foi negada historicamente e é nossa. Agora a gente precisa construir essa relação de pertencimento.

Projeto selecionado – O projeto “Currículo e os processos de formação docente no campo das relações étnico-raciais, numa perspectiva inter e transdisciplinar” é um dos projetos apoiados pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica: pesquisa aplicada e artigos científicos, lançado em 2019, iniciativa do Itaú Social coordenada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em parceria com o Instituto Unibanco, a Fundação Tide Setubal e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Outros/as pesquisadores/as sobre o tema mapearam exemplos de práticas pedagógicas antirracistas e também têm obras disponibilizadas para download gratuitamente no acervo digital Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisas e Materiais, que pode ser acessado na Biblioteca Dinâmica do Observatório Anansi, pelo site: https://anansi.ceert.org.br/biblioteca

Até dezembro deste ano, o acervo digital vai abrigar mais de 50 produções, entre livros, teses acadêmicas, artigos, e-books, jogos didáticos e vídeos, que serão lançados periodicamente.

A iniciativa foi lançada oficialmente em 9 de janeiro deste ano, em comemoração aos 20 anos da Lei 10.639, que alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras.

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Com informações do Observatório Anansi e do Ceert.

Inep publica edital com regras para o Enem 2023

 

Estudantes do 3º Ano A, da EEMTI Pe. Luís Filgueiras, em Nova Olinda - CE. (FOTO | Prof. Nicolau Neto).

O edital com cronograma e regras para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023 já está disponível para os interessados em participar do certame, que será aplicado nos dias 5 e 12 de novembro. As inscrições ficam abertas do dia 5 a 16 de junho.

Além de apresentar datas e horários dos exames, o Edital nº 30 detalha os documentos necessários, bem como as obrigações do participante, incluindo situações em que o candidato poderá ser eliminado. A taxa de inscrição é R$ 85 e deve ser paga até dia 21 de junho.

A publicação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (inep) traz também critérios para correção das provas e procedimentos para pessoas que precisam de cuidados especiais durante o concurso, bem como orientações sobre horário e local do exame.

Horários

Os portões de acesso serão abertos às 12h e fechados às 13h e as provas começam a ser aplicadas às 13h30. O término será às 19h, no primeiro dia, e às 18h30, no segundo. Estão previstas exceções de horário em casos específicos, no caso de participantes com solicitação de tempo adicional aprovada, ou com pedido de recurso de vídeo para a prova em Libras.

As inscrições devem ser feitas na Página do Participante, no portal do Inep, onde outros acessos indicam cronograma, tutoriais e orientações, além de uma área com as dúvidas mais frequentes dos candidatos. O texto detalha como será feita a reaplicação do teste e as situações em que poderá ser refeita, como problemas logísticos e doenças infectocontagiosas, por exemplo.

Os gabaritos das provas objetivas serão publicados no dia 24 de novembro no Portal do Inep. Já os resultados individuais serão divulgados no dia 16 de janeiro de 2024 no mesmo site.

Covid-19

Apesar de o país não estar mais em situação de emergência sanitária devido à pandemia, o instituto informa que será necessária a utilização de máscara de proteção à covid-19, “nos estados ou municípios onde o uso da máscara em local fechado seja obrigatório por decreto ou ato administrativo de igual poder regulamentar”.

As notas do exame são usadas para o ingresso de estudantes em universidades públicas e privadas, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), do Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

Os resultados individuais podem ser aproveitados pelos estudantes brasileiros interessados em cursar uma graduação em instituições portuguesas, que mantêm convênio com o Inep.

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Com informações da Agência Brasil.