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GRUNEC lança nota sobre sistema de cotas na URCA. (FOTO/ Reprodução/WhatsApp). |
A
redação do Blog Negro Nicolau recebeu na noite desta segunda-feira, 08, nota do
Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC) sobre a reserva de cotas para negros e pessoas com deficiências (PCD’S) na Universidade Regional do Cariri
(URCA) referente ao seu primeiro edital de concurso para o magistério com previsão de cotas.
Segundo
a nota, o edital lançado pela instituição não atendia o que preceitua a lei de
cotas, inviabilizando, portanto, o seu cumprimento. “As instituições de ensino, utilizando-se maliciosamente do discurso de
autonomia universitária conferida pela Constituição Federal, vêm reproduzindo
uma lógica de “cotas para inglês ver”, pois a metodologia usada para aplicar o
percentual das cotas não consegue alcançar o mínimo previsto na lei. Por
conseguinte, as cotas, que são ações afirmativas que buscam efetivar o direito
humano e constitucional à igualdade material, enquanto medida de reparação
social histórica, não estão surtindo os efeitos esperados. Os espaços de poder
e saber continuam sendo ocupados majoritariamente por homens, brancos e ricos”,
diz trecho do documento.
Desta
feita, o Grunec junto ao SINDURCA
ingressaram com Ação Civil Pública com a finalidade de garantir a
aplicabilidade correta da lei de cotas
na universidade. “O magistrado, Dr. José Flávio Bezerra Morais, proferiu a sentença procedente para obrigar a URCA a corrigir o edital em 72h, visando garantir
a aplicação correta da lei de cotas no certame”, pontua outra parte da nota.
Abaixo íntegra do documento:
TIRA A MÃO DAS NOSSAS COTAS!
Após
mais de três décadas de existência, a Universidade Regional do Cariri lançou
seu primeiro edital para provimento no cargo de magistério superior prevendo a
reserva de vagas para cotistas negros e pessoas com deficiência (PCD’s) pelo
sistema de cotas.
Contudo,
para nossa insatisfação –mas não surpresa- a forma com que o edital fracionava
as vagas por cursos e setores de estudo inviabilizava a correta aplicação da
legislação sobre cotas, já que acabava prevendo apenas 1 vaga na maioria dos
setores para ampla concorrência. Sabemos que não tem como reservar 20% de vagas
para negros e 5% para PCD’s com esse quantitativo. Por isso, das 184 vagas
previstas, apenas 3 eram para cotistas negros e 3 para PCD’s.
A
não surpresa com o ocorrido vem da nossa experiência de resistência de mais de
duas décadas que nos ensinou na luta que as instituições no Brasil ainda
possuem um posicionamento rígido diante das necessidades de mudanças
necessárias para romper com o pacto narcísico da branquitude que fundamenta o
racismo institucional e estrutural.
Segundo
Cida Bento (O pacto da branquitude, 2022, p.12), "(...) as instituições
constroem narrativas sobre si próprias sem considerar a pluralidade da
população com a qual se relacionam, que utiliza seus serviços e consome seus
produtos. Muitas dizem prezar a diversidade e a equidade, inclusive colocando
esses objetivos como parte de seus valores, de sua missão e de seu código de
conduta. Mas como essa diversidade e essa equidade se aplicam se a maioria de
suas lideranças e de seu quadro de funcionários é composta quase que
exclusivamente de pessoas brancas? Assim vem sendo construída a história de
instituições e da sociedade onde a presença e a contribuição negras se tornam
invizibilizadas. (...) Essa transmissão atravessa gerações e altera pouco a
hierarquia das relações de dominação ali incrustada. Esse fenômeno tem um nome,
branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não
verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios.
(...)".
Conforme
Silvio Almeida (O que é racismo estrutural?, 2018, p.29) racismo institucional
é “(...) o resultado do funcionamento
das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que
indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça”. O autor explica
que racimo deve compreendido como exercício de poder e dominação. “Assim, detêm
o poder os grupos que exercem o domínio sobre a organização política e
econômica da sociedade. Entretanto, a manutenção deste poder adquirido depende
da capacidade do grupo dominante de institucionalizar seus interesses
(...)”. “Assim, o domínio de homens
brancos em instituições públicas –por exemplo (...) reitorias de universidades
públicas etc.- (...) depende, em primeiro lugar, da existência de regras e
padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou
mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a
desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo
formado por homens brancos” (ALMEIDA, 2018, p.31).
Do
edital da URCA, assim como da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Universidade
Estadual Vale do Acaraú (UVA) que publicaram seus editais da mesma forma no que
diz respeito as cotas, o que chega para nós dos movimentos negros é que não se
pode confundir a conquista possibilitada pela legislação sobre cotas com o que
vem ocorrendo na prática.
As
instituições de ensino, utilizando-se maliciosamente do discurso de autonomia
universitária conferida pela Constituição Federal, vêm reproduzindo uma lógica
de “cotas para inglês ver”, pois a metodologia usada para aplicar o percentual
das cotas não consegue alcançar o mínimo previsto na lei. Por conseguinte, as
cotas, que são ações afirmativas que buscam efetivar o direito humano e
constitucional à igualdade material, enquanto medida de reparação social
histórica, não estão surtindo os efeitos esperados. Os espaços de poder e saber
continuam sendo ocupados majoritariamente por homens, brancos e ricos.
Os editais
desses concursos, e de tantos outros, são, antes de tudo, a concretização de um
intrincado sistema de manutenção de privilégios. O branquíssimo novo quadro almejado
de professoras/es da educação superior é, apenas, mais uma evidência da
tentativa de manutenção do pacto narrado acima pela Professora Cida Bento. Porém,
especialmente de universidades públicas, instituições de educação que, em tese,
são plurais, diversas e democráticas, espera-se muito mais.
Nesse
sentido, visando garantir a efetividade da lei de cotas, em 22/05/2022 ajuizamos
em coautoria com o SINDURCA a Ação Civil Pública n° 0201613-44.2022.8.06.0071
que tramita na 2ª Vara Cível da Comarca de Crato. O magistrado, Dr. José Flávio
Bezerra Morais, proferiu a sentença procedente para obrigar a URCA a corrigir o
edital em 72h, visando garantir a aplicação correta da lei de cotas no certame.
O
fundamento principal da referida ação toma como base o entendimento consolidado
do Supremo Tribunal Federal quando julgou a Ação Declaratória de
Constitucionalidade n.º 41, tendo por objeto a Lei n.º 12.990/2014, a fim de
refirmar a sua constitucionalidade e os procedimentos que são feitos em relação
à autodeclaração, entendimento este que tem eficácia vinculante contra todos. No
voto do ministro relator constam alguns pontos que achamos válidos enfatizar:
i) a importância da ação afirmativa para assegurar a igualdade material e
igualdade como reconhecimento, com vistas à superação do racismo estrutural
presente no país; ii) inviolabilidade dos princípios do concurso público e da
eficiência, considerando que a reserva de vagas para negros não os isenta da
aprovação no concurso público à vista de que eles precisam alcançar notas e
serem avaliados da mesma forma que as pessoas que concorrem em ampla
concorrência; iii) observância do princípio da proporcionalidade e constatação
de que a existência de política de cotas para o acesso de negras/os à educação
superior não torna a reserva de vagas nos quadros da administração pública desnecessária.
Ainda
no seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso reafirma os temores da nota
técnica do Ipea na medida em que ressalta que a divisão das vagas em áreas de
conhecimento, campus ou editais com uma única vaga, podem contribuir para que a
lei não surta efeito e por isso os pontos que definiram os parâmetros que devem
ser observados pelas instituições públicas para aplicar a lei de cotas merecem
destaque. Quais sejam: (i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para
todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as
vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii)
os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização
exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em
concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a
partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na
nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira
funcional do beneficiário da reserva de vagas. (ADC 41, Tribunal Pleno, julgado
em 08/06/2017).
É um
precedente de suma relevância para entender o porquê não há justificativa legal
para as instituições continuarem lançando editais que preveem o fracionamento
das vagas por áreas de especialidade, de forma a obstacularizar a aplicação do
percentual total das cotas previsto em lei.
A
mobilização refletiu na articulação de reinvindicações também na UECE e UEVA.
Tamanha repercussão certamente foi o que fez o Poder Executivo estadual
publicar o Decreto n° 34.821 de 27 de junho de 2022, que dispõe sobre a reserva
de vagas para candidatos negros e PCD’s em concursos públicos. Em resumo, o
referido decreto autoriza que quando houver menos de 5 vagas (já que a lei
estadual de cotas para negros permite a reserva de 20% de vagas apenas quando
houver 5 ou mais vagas no total) a segunda vaga, quando houver, automaticamente
será do candidato cotista negro e a terceira da PCD.
Diante
do decreto, a URCA pediu extinção do feito sem resolução do mérito por perda
superveniente do objeto da ação em razão da publicação da referida norma
regulamentadora.
Ocorre
que na prática, embora tenha aumentado o quadro de vagas reservadas para negros
e PCD’s, o decreto continuava não contemplando o mínimo previsto em lei. Basta
ver o edital da UECE republicado após o decreto, que passou a reservar 67 vagas
cotistas negros, quando deveriam ser 73 para atingir o mínimo de 20%. Ora,
somos maioria da população cearense, o mínimo de 20% já nos parece tão pouco, menos
que isso a quantidade é irrisória. Jamais aceitaríamos.
Nesse
contexto, em trocas de experiências com profissionais de universidades em que a
política de cotas estão há mais tempo sendo aplicadas de forma positiva,
apresentamos como proposta de acordo extrajudicial uma metodologia semelhante à
adotada pela Universidade Federal da Bahia em seu último concurso público para
que a URCA pudesse sanar a irregularidade. Contudo, a URCA continuou insistindo
que a aplicação conforme o decreto era melhor, pois a instituição acredita,
conforme expôs na sua peça recursal de agravo de instrumento nos autos do
processo, que de outra forma não seria justo, pois a definição de critérios
para distribuir as vagas a partir do novo decreto era mais clara e objetiva.
Nos parece
muito clara mesmo, bem branca para ser mais enfático, essa lógica utilizada
para interpretar como seria “justo” distribuir vagas entre ampla concorrência e
cotistas, sendo que de uma forma ou de outra a maioria das vagas sempre foi e
vai continuar sendo da ampla concorrência. A racionalidade dita moderna, ao
nosso ver, de fato não consegue, ainda, promover o descentramento cognitivo da
colonialidade racializada para compreender que o mínimo previsto em lei já é o
mínimo e que os diversos concursos públicos realizados dessa forma –com
metodologia de fracionamento das vagas por áreas de especialidade- não atingem
sua função social.
Na
audiência de conciliação insistiram na argumentação do tipo “nós temos
autonomia universitária e por isso não aceitaremos sugestões de terceiros com
base em experiências de outras universidades para interferir nas nossas
decisões institucionais”. Ou seja, de nada vale a expertise de
diversas/os pesquisadoras/es doutoras/es pós-doutoras/es que já conseguiram
implantar há anos uma política de cotas eficiente porque a instituição tem
autonomia... sem reduzir essa garantia constitucional de extrema relevância
para nossas universidades, mas foi terrível ouvir esse fundamento tão valoroso
como argumento para legitimar sua autonomia para ser eficaz em ser perversa
mantendo a instituição fechada para dialogar com a comunidade acadêmica,
movimentos negros e sociedade em geral. Fechada para o ingresso da pluralidade
e diversidade em seu quadro de docentes.
O
resultado desta ação ao nosso ver é primoroso ao julgar procedente este
processo que envolve interesses e direitos coletivos e difusos. E nos mostra
que, embora historicamente o Direito tenha servido de alicerce ao racismo
institucional/estrutural ao legitimar por meio de leis ou julgamentos injustos
casos que envolvem direta ou indiretamente a temática étnico-racial, é preciso
insistir em mostrar uma face do Direito que o coloque como instrumento da
justiça racial.
Nas
palavras do nobre Ministério Público, por meio do seu membro promotor Dr. David
Moraes da Costa “O que não se pode permitir – e o STF já sobre isso se
manifestou – é que a Instituição formate um concurso que, de princípio, já se
configure fraude à reserva de vagas, o que não será o caso sempre que se
evidenciar no certame que o respectivo edital destinou o percentual de vagas
exigido na lei para negros e pessoas com deficiência.” [...] Ao ressaltar que o
sistema de justiça não pode determinar um método específico para aplicação da
lei de cotas em razão da autonomia universitária enfatiza “Isso, por evidente,
não afasta a Universidade da exigência do dever de legalidade, o que implica em
adequar o edital do Concurso Público, com regras claras e precisas, aos comandos
legais, especialmente os insertos no Decreto n.° 34.821 e na Lei Estadual 17.432/2021.”
Tendo
em vista todos os argumentos, consideramos um precedente judicial histórico vitorioso
a sentença proferida pelo magistrado Dr. José Flávio Bezerra Morais ao apontar
mais de uma forma da universidade efetivar corretamente a política de cotas sem
cair no “erro” de burlar as cotas.
Agora
nos resta acompanhar o cumprimento da sentença, bem como continuar averiguando
se as demais universidades vão tomar este caso como exemplo para adequarem
corretamente seus editais. Senão, lá vamos nós de novo...
Importa
lembrar que a sentença ainda não transitou em julgado, pois é necessário
decorrer o prazo para recursos. Sabemos que recorrer é direito de qualquer
parte do processo, mas achamos que ficou evidente o porquê da interpretação da
lei de cotas para criação de metodologias para aplicá-las nos concursos deve
primar pela maximização de seus efeitos para que não estejamos diante de texto
morto.
Seguiremos
lutando por todas as vagas para uma plena reintegração de posse.