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Participantes do II Congresso Internacional Feminista no Recreio dos Bandeirantes (RJ): conquista do foto teve muitas protagonistas. (FOTO/ Acervo Arquivo Nacional). |
Até
1830, pra se ter ideia, a lei permitia que os maridos castigassem fisicamente
as esposas, uma herança das Ordenações Filipinas, um conjunto de leis de origem
espanhola adotada por Portugal e implantada no Brasil colônia. O direito de
votar veio em 1932 - com a promulgação do decreto nº 21.076 no dia 24 de
fevereiro, há exatos 90 anos -, como mais um capítulo de uma história longa,
que vai muito além do acesso às urnas.
Até
1962, as mulheres casadas precisavam de autorização formal dos maridos para
trabalhar - o Código Civil de 1916 via a mulher como incapaz para realizar
certas atividades.
Nas
escolas, até 1854 as meninas aprendiam corte, costura e outras "prendas
domésticas", enquanto aos meninos se ensinava ciências, geometria e
operações mais avançadas de matemática. Depois que o currículo foi unificado no
ensino básico, ainda foram necessárias várias décadas até que as mulheres
tivessem acesso mais amplo às universidades, algo que só ocorreu depois de
1930.
Nísia Floresta: o acesso à educação
Uma
das precursoras dos movimentos pela conquista dos direitos das mulheres no
Brasil viveu um século antes da promulgação do voto feminino.
Dionísia
de Faria Rocha, que se tornaria conhecida pelo pseudônimo Nísia Floresta
Brasileira Augusta, nasceu em Papari, no interior do Rio Grande do Norte, em
1810.
Numa
época em que a vida das mulheres estava circunscrita basicamente à esfera
doméstica, como esposas e mães, Nísia foi um ponto fora da curva. Foi do Rio
Grande do Norte para Pernambuco, para o Rio Grande do Sul, para o Rio de
Janeiro.
Viveu
anos na Europa, onde transitava por círculos de intelectuais com nomes como
Almeida Garret, Alexandre Herculano, Alexandre Dumas, Victor Hugo e Amandine
Dupin - que se apresentava como George Sand, pseudônimo masculino que usava
para assinar seus livros, algo que não era incomum naquela época.
Teve
15 livros publicados e escreveu uma tradução livre da obra Vindication of the
Rights of Woman, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, intitulada Direitos
das Mulheres e Injustiça dos Homens.
Vanguardista,
Wollstonecraft chegou a publicar um livro em resposta aos escritos do filósofo
Jean Jacques Rousseau, que afirmava, em Émile, ou da Educação, que a mulher,
por ser intelectualmente inferior ao homem, deveria receber uma educação superficial,
com ênfase maior na educação moral.
Ainda
que não repetisse o discurso de rompimento da intelectual inglesa, Nísia
defendia que as mulheres tivessem acesso à mesma educação que os homens.
Foi
professora e fundou, em 1838, no Rio de Janeiro, um colégio para meninas com um
currículo que ia bem além das aulas de corte, costura e boas maneiras previstas
na lei. O programa do Colégio Augusto incluía latim, francês, italiano e inglês
- tanto gramática quanto literatura -, geografia e história.
Apesar
de não ter eliminado as aulas de "prendas femininas", o fato de dar
às meninas instrução bem mais ampla que o comum da época fez da escola alvo de
duras críticas dos jornais cariocas durante os 18 anos em que esteve em
funcionamento.
Na
edição de 2 de janeiro de 1847 do jornal O Mercantil, um comentário sobre os
exames finais em que várias alunas haviam sido premiadas com distinção
alfinetava: "trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no
escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos". O
trecho foi destacado pela pesquisadora Constância Lima Duarte, professora da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em sua tese de doutorado (Nísia
Floresta: Vida e Obra).
As
escolas praticamente não existiam no Brasil colônia, muito menos o ensino
obrigatório - a educação estava nas mãos da igreja Católica, que em seus
conventos e seminários lecionava a poucos alunos.
Com
a vinda da Corte para o Brasil, em 1808, o ensino começa a se difundir no país,
especialmente entre as famílias ricas, que costumavam contratar professoras
estrangeiras (francesas e portuguesas, principalmente) para que ensinassem aos
filhos dentro de casa.
A
primeira grande legislação sobre educação só é promulgada depois da
independência, em 1827, durante o período do Primeiro Império. É ele que
estabelece que o ensino para meninos e meninas deveria ser diferenciado.
Em
matemática, por exemplo, os cursos para meninas só deveriam cobrir as quatro
operações básicas - somar, subtrair, multiplicar e dividir -; enquanto aqueles
para meninos incluíam geometria, frações, proporções, números decimais. A lei
só unificaria os currículos quase 30 anos depois, em 1854.
A
pesquisadora Mônica Karawejczyk, que há 15 anos estuda a questão do voto
feminino no Brasil, pontua que Nísia não chegou a defender o voto feminino.
"Ela pedia outras coisas porque aquela era
uma época em que a mulher não tinha direito a quase nada. Só em 1827 tiveram
direito ao ensino primário, e mesmo assim não era igual [ao currículo
masculino]."
A
educação, entretanto, é um grande catalisador das transformações que
aconteceriam nas décadas seguintes - e, por isso, o ativismo de Nísia e de
outras mulheres nesse sentido é considerado fundamental para os avanços que
vieram depois.
"No momento em que a mulher tem acesso à
educação, quando começa a ler, se instruir, começa a querer outras coisas: 'Por
que ele tem direito e eu não tenho?', 'Por que ele pode fazer Medicina e eu
não?' A partir daí, começa a haver uma maior conscientização sobre essas
questões", ressalta a pesquisadora, autora do livro Mulher Deve
Votar?: o Código Eleitoral de 1932 e a Conquista do Sufrágio Feminino Através
das Páginas dos Jornais Correio da Manhã e A Noite.
Leolinda de Figueiredo Daltro: o
primeiro partido feminino
Uma
mulher que fez muitas dessas perguntas foi a baiana Leolinda de Figueiredo
Daltro, que nasceu cerca de 50 anos depois de Nísia, em 1859.
Também
professora, seu principal foco no âmbito do magistério eram os indígenas.
Leolinda defendia que eles fossem incorporados à sociedade brasileira por meio
do ensino laico, desligado da igreja - em uma época em que praticamente todas
as iniciativas nesse sentido eram dominadas por agremiações católicas, como os
jesuítas.
Após
a proclamação da República, nos anos 1890, chegou a percorrer o interior do
país por alguns anos alfabetizando comunidades indígenas.
Já
separada do segundo marido e com 5 filhos - os quais sustentava com seu salário
-, a própria forma como levava a vida afrontava os costumes da época. E foi
experimentando as barreiras que se colocavam às mulheres pelo simples fato de
serem mulheres que Leolinda se voltou para as questões de gênero.
Em
setembro de 1909, foi impedida de apresentar um trabalho no primeiro Congresso
Brasileiro de Geografia por ser mulher, relata a historiadora Eliane Rocha em
sua tese de doutorado (Entre a Pena e a Espada - A Trajetória de Leolinda
Daltro: 1859-1934). Por essa mesma razão, nunca foi nomeada oficialmente como
"catequista leiga ou diretora de índios", cargos aos quais sempre
almejou.
"Ela percebeu que precisaria mudar as leis
para poder se inserir no espaço público", destaca Karawejczyk, que
também escreveu sobre Leolinda em sua tese de doutorado (As Filhas de Eva
Querem Votar: dos Primórdios da Questão à Conquista do Sufrágio Feminino no
Brasil).
Assim,
morando no Rio de Janeiro, em 1910 ela funda o Partido Republicano Feminino
(PRF), o primeiro com esse perfil montado no Brasil - e não formalmente
reconhecido como partido, já que nem direito a voto as mulheres tinham ainda
(uma das demandas, claro, do PRF).
"Ela
e todas aquelas mulheres começaram a frequentar as sessões parlamentares,
vaiavam, aplaudiam. Elas tiveram muita coragem de se colocar e exigir esses
direitos políticos", diz a pesquisadora.
Por
causa do estilo confrontativo, Leolinda era constantemente chamada pelos
desafetos - e por boa parte da imprensa - de "Pankhurst brasileira", uma referência a Emmeline Pankhurst,
uma das fundadoras do movimento sufragista na Inglaterra.
Líder
do Women's Social and Political Union (União Social e Política das Mulheres,
WSPU), a britânica é um dos nomes mais célebres do que ficou conhecido como
suffragettes, grupo que tinha um estilo de atuação mais combativo.
Para
pressionar os políticos e chamar atenção da opinião pública, as suffragettes
faziam ações que iam desde interromper discursos de autoridades até
acorrentar-se a portões de prédios públicos e atear fogo nas caixas de correio.
No
Brasil, as sufragistas do PRF eram constantemente alvo de campanhas
difamatórias e ridicularizadas nos jornais, ligadas pela opinião pública ao que
Karawejczyk chama de "mau feminismo"
- em oposição ao "bom feminismo"
que caracterizaria o grupo da geração posterior à de Leolinda, como Bertha Lutz
(leia mais abaixo).
Leolinda
"invadia espaços exclusivamente
masculinos e expunha-se pessoalmente às críticas, sempre buscando chamar
atenção para as desigualdades e injustiças", escreveu a historiadora
Teresa Cristina de Novaes Marques, que há mais de 20 anos se dedica a pesquisar
a história das mulheres, em um artigo na revista Gênero em 2012.
Entre
os exemplos, a pesquisadora cita o episódio do Congresso Pan-Americano
realizado no Rio de Janeiro em 1906, em que a ativista levou consigo um grupo
de sete indígenas para assistir ao evento.
Nos
anos 1920, Leolinda começa a se afastar aos poucos da vida pública. Isso não
impediu, entretanto, que ela não apenas votasse nas eleições de 1933, como
também se candidatasse a deputada federal - sem conseguir, contudo, se eleger.
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Com informações da BBC Brasil. Leia o
texto completo aqui.