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(FOTO/ Reprodução). |
Ainda
é muito comum no Brasil, em diversos meios de comunicação e até mesmo na
universidade, a afirmação de que o movimento negro brasileiro na
contemporaneidade seria uma cópia, em menores proporções, do movimento negro
pelos direitos civis dos Estados Unidos, que mobilizou a atenção de populações
negras mundo afora nas décadas de 1950 e 1960. Não há dúvidas de que o que hoje
chamamos de “movimento negro contemporâneo”, constituído no Brasil a partir da
década de 1970, recebeu, interpretou e utilizou informações, ideias e
referenciais produzidos na diáspora africana de uma maneira geral,
especialmente nas lutas pelos direitos civis em território estadunidense e nas
lutas por libertação nos países africanos na segunda metade do século XX,
sobretudo aqueles sob o regime colonial de Portugal.
Entretanto,
esse adensamento político que contribuiu e ainda contribui para a luta
antirracista no mundo nunca foi uma “via de mão-única”. Pelo contrário, podemos
verificar nitidamente até os dias de hoje a circulação de repertórios críticos
e pessoas pelo “Atlântico negro”. Aliás, não podemos esquecer que o racismo, um
elemento estruturante das desigualdades com as quais convivemos historicamente
no Brasil, é uma das faces da “modernidade” que se consolida em meio ao
imperialismo europeu no século XIX. Esse racismo não respeita limites
territoriais. Da mesma forma, a luta antirracista precisa ser entendida a
partir de uma perspectiva transnacional, que deve contemplar as diferentes
contribuições produzidas na luta política em diferentes contextos nacionais. O
que pouca gente sabe é que o movimento negro brasileiro, especialmente durante
a década de 1930, também contribuiu consideravelmente para a circulação de
referenciais para a luta antirracista, servindo inclusive como fonte de
inspiração para a dinâmica de transformações nas lutas das populações negras na
diáspora africana.
Ainda
durante o início do século XX, já era possível notar a importância da
circulação de ideias e perspectivas de construção das lutas por melhores
condições de vida para as populações negras em perspectiva global. A dinâmica
das transformações, tanto nas formulações políticas quanto nas estratégias
adotadas nas diferentes lutas por emancipação das populações negras, é sempre
muito complexa. A partir dos anos de 1920 e 1930, a circulação de informações
na diáspora negra se ampliou muito. Podemos objetivamente verificar essa
circulação na imprensa negra do Brasil e dos Estados Unidos na primeira metade
do século XX, onde ocorreram até mesmo intercâmbios entre jornais dos dois
países.
O
mais importante jornal da imprensa negra nos EUA, o Chicago Defender, fundado
em 1905 na cidade de Chicago, estabeleceu um intercâmbio com O Clarim
d’Alvorada, um dos mais importantes jornais da imprensa negra brasileira, que
circulou entre as décadas de 1920 e 1930, em São Paulo. O Clarim d’Alvorada
publicava informações sobre a comunidade negra nos EUA em uma coluna criada
especificamente para esse fim, chamada de O mundo negro – que inclusive acabou
sendo escolhida para dar o título de meu livro. Da mesma forma, o Chicago
Defender publicava informações sobre as lutas da população negra no Brasil.
Pesquisando nos arquivos do Chicago Defender encontrei 114 matérias, entre 1914
e 1978, não somente comparando as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos,
mas também exaltando as formas pelas quais os brasileiros tratavam a questão
racial, principalmente na década de 1930.
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Clarim d’Alvorada, 14 de julho de 1929. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. |
Aqui preciso falar um pouco sobre a importância da imprensa negra nos EUA da primeira metade do século XX. Segundo o historiador James Meriwhether, a imprensa negra norte-americana chegou ao “seu auge de poder e influência” durante as décadas de 1930 e 1940. Já Gunnar Myrdal afirmava em 1944, em seu livro An American Dilemma, que esses jornais passavam de família para família e poderiam ser encontrados em barbearias, igrejas, lojas. Seus conteúdos eram transmitidos pelo “boca a boca” entre aqueles que não podiam ler. Para Myrdal, “a importância da imprensa negra para a formação de opinião entre os negros, para o funcionamento de todas as outras instituições negras, para as lideranças negras e para as ações geralmente conjuntas é enorme”. Já W.E.B. Du Bois (1868-1963), primeiro negro a receber o título de doutor (Ph.D. em História) na Universidade Harvard, em 1895, e uma das principais lideranças negras norte-americanas no início do século XX, em matéria publicada no dia 20 de fevereiro de 1943 no Chicago Defender dizia que “houve um tempo, mesmo antes da Reconstrução” (1865-1877), em que “só um negro aqui e outro lá lia um jornal da imprensa negra, e mesmo assim pedia desculpas por isso”. E terminava dizendo: “Hoje provavelmente é verdade que raramente há um negro nos Estados Unidos que sabe ler e escrever e que não lê a imprensa negra. Ela tornou-se uma parte vital da sua vida”. Nas palavras de Hayward Farrar, “a imprensa negra tem mostrado o mundo para a comunidade negra, a comunidade para si mesmo, e a comunidade para o mundo”.
Justamente
durante o período considerado o ápice da imprensa negra nos EUA, há no arquivo
do Chicago Defender 41 reportagens sobre a questão racial no Brasil entre 1934
e 1937. Um ótimo exemplo é a reportagem publicada no Chicago Defender em
26/10/1935 sobre uma manifestação realizada pela Frente Negra Brasileira (FNB)
no Rio de Janeiro e que, segundo o jornal, teria mobilizado dez mil pessoas:
“Esta organização, composta exclusivamente por brasileiros negros, tem
direcionado suas energias contra a invasão dos direitos civis e
constitucionais. Batendo na tecla da solidariedade nacional, ela tem conseguido
eminentemente derrotar as forças do preconceito que, por pouco, ameaçaram minar
o tradicional espírito de jogo limpo e igualdade pelo qual o Brasil foi
conhecido antes do advento da insidiosa propaganda norte-americana”.
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Reportagem sobre a Frente Negra Brasileira. The Chicago Defender, 26 de outubro de 1935. |
É
interessante perceber a referência à luta por “direitos civis” levada a cabo
pela FNB no Brasil. Segundo o jornal, lutava-se no Brasil pela manutenção de
direitos civis e constitucionais, direitos ainda negados à população negra nos
EUA. O texto seguia apresentando a FNB para o leitor negro norte-americano: “A
Frente Negra é hoje a organização mais poderosa em todo o Brasil, exercendo uma
influência política que mantém afastados todos aqueles que poderiam negar as
garantias específicas da Constituição nacional”. Somente entre 1935 e 1937 a
Frente Negra Brasileira esteve presente em nada menos do que 20 reportagens do
Chicago Defender, em matérias como: “Brazilian politics seeking support of the
Black Front” [Políticos brasileiros buscam apoio da Frente Negra] (20 de março
de 1937), que, ao referir-se às vindouras eleições, afirmava que “os associados
à Frente Negra, de acordo com fontes autênticas, vão muito além dos 40 mil, com
novos membros se associando diariamente”, e que “com sua solidez, esta
organização representa hoje uma das forças mais poderosas a serem consideradas
no Brasil”. Essa e outras reportagens foram publicadas sempre em sua edição
semanal com circulação nacional.
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“Políticos brasileiros buscam apoio da Frente Negra”. The Chicago Defender, 20 de março de 1937. |
É
impressionante como os editores do Chicago Defender olhavam para o Brasil até
meados dos anos 1930 e viam muitos exemplos a seguir, tanto na possibilidade de
viver num contexto de “harmonia racial” quanto em algumas formas de luta
implementadas por negros brasileiros. Havia uma admiração declarada pela Frente
Negra Brasileira nas reportagens do periódico norte-americano.
Um
bom exemplo, nesse sentido, é a edição do dia 11 de janeiro de 1936, que trazia
no topo da primeira página, em letras garrafais, a seguinte manchete: “Grupo de
negros americanos segue exemplo do Brasil; Mapeia campanha para livrar-se dos
grilhões em 1936”, que apresentava para seus leitores os planos da “North
American Fronte Negra” para o ano de 1936! Ainda na mesma edição, na página 24,
havia outra matéria interessante: “Puerto Ricans organize Black Militant
Front”, na qual o jornal afirmava que a criação da nova organização em Porto
Rico também “foi inspirada no sucesso alcançado pela Frente Negra no Brasil”.
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“Grupo de negros Americanos segue exemplo do Brasil; Mapeia campanha para livrar-se dos grilhões em 1936”. The Chicago Defender, 11 de janeiro de 1936. |
Veículos
como os jornais O Clarim d’Alvorada e o Chicago Defender tiveram um papel
fundamental para a circulação de informações, ideias e referenciais para a luta
antirracista no Brasil, nos EUA e em outras partes do globo. Se levarmos em
consideração a importância da imprensa negra para a formação do movimento negro
politicamente organizado nos Estados Unidos, principalmente nas décadas de 1930
e 1940, e a cobertura dada às relações raciais e ao movimento negro no Brasil
no Chicago Defender, é possível perceber que o movimento negro brasileiro não
foi apenas receptor, mas que também contribuiu para essa circulação de
referenciais e até mesmo serviu como exemplo ou inspiração para outros negros
em suas lutas na diáspora africana. Precisamos conhecer mais e melhor as Nossas
Histórias!
________________
Por Amilcar
Pereira, originalmente no Geledés.
Assista
ao vídeo do historiador Amilcar Araujo Pereira no Acervo Cultne sobre este
artigo:
https://youtu.be/rk6ZYE7WQ3w
Nossas
Histórias na Sala de Aula
O
conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular
(BNCC):
Ensino
Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros
na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); e EF09HI04
(9° ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação
econômica, política e social do Brasil.)
Ensino
Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e
narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias
filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos,
econômicos, sociais, ambientais e culturais).
Amilcar A. Pereira Doutor em História (UFF), com pós-doutorado em História e Educação na Columbia University (EUA). Professor da Licenciatura em História e dos programas de pós-graduação em Educação e em Ensino de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Antirracista (Gepear-UFRJ); E-mail: amilcarpereira@fe.ufrj.br.