As ministras Anielle e Sonia (Foto: Sergio Lima/AFP). |
O
resultado das urnas, em 2022, expôs um país dividido entre conservadores e
progressistas representados, respectivamente, por Jair Bolsonaro, candidato à
reeleição, e Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente em busca do terceiro
mandato. A maioria do eleitorado de esquerda e do centro democrático se
aproximou, de forma intensa ou moderada, do campo magnético do petista,
declarado vencedor. De novembro para cá, Lula comandou a transição, nomeou
gabinete, foi diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral e, num histórico e
inesquecível 1º de janeiro, tomou posse. Recebeu de representantes do povo
brasileiro a faixa presidencial que o antecessor se recusou a repassar.
O
Brasil adentrou o ano novo em condições de retomar o debate sobre políticas
públicas que, implodidas no mandato anterior, lhe estreitavam o futuro. E
devolver normalidade ao funcionamento das instituições democráticas, duramente
ameaçadas e atacadas pelo ex-presidente e seus aliados. Mas, derrotado pelo
voto, o bolsonarismo passou a semear a ruptura. Já na noite do segundo turno da
eleição, proclamado o vencedor, iniciou-se a gestação de um golpe de Estado,
que nasceu morto no domingo, 8, mas deixou feridas.
Por
dois meses, em manada, Bolsonaro e aliados atacaram o sistema eleitoral;
extremistas, observados com injustificável tolerância, tomaram vias públicas e
vizinhanças de quartéis para pedir intervenção das Forças Armadas. Sob
cumplicidade ou omissão conivente de autoridades militares, policiais e
políticas, golpistas atacaram e vandalizaram instalações do Congresso Nacional,
do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal, no domingo infame. A TV
transmitiu ao vivo inédita profanação dos edifícios da República. Buscavam
abolir violentamente o Estado Democrático, depor um presidente legitimamente
eleito, crimes previstos no Código Penal, ensina Adriana Cruz, juíza federal e
professora de Direito Penal. E fracassaram. Pela destruição de patrimônio do povo
brasileiro, desnudaram-se.
A
extrema direita brasileira, bolsonarista, devotada ao capitão ex-presidente que
a tudo assistiu de um endereço na Flórida (EUA), ficou nua em plena Praça dos
Três Poderes. Nada a atenuá-los, encobri-los, disfarçá-los. No Planalto, os
incultos tiraram do pedestal a escultura “Bailarina”, de Victor Brecheret;
quebraram “Galhos e sombras”, de Frans Krajcberg; destruíram “O flautista”, de
Bruno Giorgi. Racistas, perfuraram seis vezes o quadro denominado “As mulatas”,
do modernista Di Cavalcanti. Obscurantistas, sucatearam o relógio do século
XVIII desenhado por André-Charles Boulle e fabricado pelo relojoeiro francês
Balthazar Martinot. A peça única foi presente da Corte de Luís XIV a Dom João
VI, que a trouxe para o Brasil em 1808. Patriotas de araque, arremessaram
n’água a “Bandeira do Brasil”, de Jorge Eduardo.
Autoproclamados
cristãos, arrancaram da parede a imagem de Jesus Crucificado do STF.
Autoritários, puseram abaixo as galerias de fotos dos ex-presidentes no
Planalto e no Supremo. Criminosos, rasgaram exemplares da Constituição e dos
códigos Civil e Penal usados pela Corte para consultas durante julgamentos;
picharam a estátua que representa a Justiça. Destruíram o plenário e arrancaram
o brasão do STF, golpes que provocaram “ferida quase física” na ministra Cármen
Lúcia:
“Foi ato planejado, ensaiado e voltado à
desfiguração das composições que fizeram a História das instituições. Papel se
rasga, mas a Constituição continua. Rasgar obras não destrói a literatura. O
mesmo com o Direito. Destroem-se exemplares para se manter mais forte a
instituição que dela se representa”, me escreveu a ministra.
A
democracia resistiu ao golpe. As instituições — Presidência da República,
Senado, Câmara dos Deputados, STF, governadores das 27 unidades da Federação —
se ergueram em reação. Hão de identificar, processar e punir os culpados, numa
cadeia de criminosos que vai de incitadores a organizadores, de financiadores a
facilitadores, de vândalos a agressores, de conspiradores a ladrões. Sem
anistia. O golpe tentado empurra para a luz da democracia aqueles que ousaram
flertar com o autoritarismo sombrio. Na pesquisa Datafolha, 93% dos
entrevistados condenaram os ataques de domingo. Nas trevas, os extremistas e os
cínicos que ainda relativizam a antidemocracia nunca ocultada por um líder
político que emergiu atacando adversários, pregando violência e incensando
torturador.
O
bolsonarismo está nu; e a democracia, viva. Foi por ela que, num palácio em
reconstrução, desfilaram Sonia Guajajara e Anielle Franco para serem empossadas
como ministras dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial. Duas brasileiras, uma
indígena, outra negra, que escancararam ao Brasil a possibilidade de fazer política
com gratidão à ancestralidade, valorização do território (a aldeia, a favela),
compromisso com a equidade, cocar e boné CPX, música e dança, poesia de
Conceição Evaristo, samba da Estação Primeira de Mangueira. Como disse Chico
Buarque ao entrar no palco, no Rio, no domingo nefasto: “Viva a democracia”.
Mesmo cansada de guerra, ela vai passar.
________
Com informações do Geledés e do O Globo.