Faltava
mais de uma hora para começar o evento ''Diálogos
Insubmissos de Mulheres Negras'' e uma fila enorme já se formava no Largo
do Pelourinho, na capital baiana. Conceição Evaristo sequer havia chegado ao
anfiteatro e ainda dava seus primeiros passos nas escadarias do casarão
histórico do Teatro Sesc-Senac quando começou a ser ovacionada pelos presentes.
''Não gosto de dar autógrafo correndo.
Fico preocupada quando não posso falar com cada pessoa. Minha assessora sempre
fala que eu não dou autógrafo: dou consulta'', disse a escritora já no
palco, provocando risos no público.
![]() |
"Cada mulher que se reconhece no meu texto me potencializa e me compromete para uma nova escrita", afirma Conceição Evaristo na Filepô. Foto: Leto Carvalho/ Brasil de Fato. |
Do
Ceert - Evaristo era uma das
participantes mais aguardadas da primeira Festa Literária Internacional do
Pelourinho (Flipelô), que vai até este domingo, dia 13 de agosto. A escritora
começou sua fala agradecendo aos presentes e ressaltando a importância do
movimento negro na construção de sua literatura. ''Não foi o Prêmio Jabuti que me fez. Não foi a FLIP (Feira Literária
Internacional de Paraty) que me fez. Foi o movimento negro que me deu carta de
passagem. Especialmente as mulheres negras, que levaram meus textos para as
escolas e para a academia. Foram as editoras negras que acreditaram no meu
trabalho. Hoje agradeço a mídia pela divulgação, mas ela só me descobriu depois
que vocês me mostraram'', afirmou a escritora ao público, majoritariamente
negro.
Ao
lembrar de sua trajetória, Conceição contou dificuldades que enfrentou para
escrever livros como ''Insubmissas
Lágrimas de Mulheres'', que o evento integrante da programação da Flipelô. ''Estava fazendo o meu doutorado e, pouco
antes da defesa, tive uma isquemia cerebral. Escrevi o livro na volta para a
academia, nos momentos em que eu queria me desligar da tese. Levei 10 anos para
concluir o doutorado. Foi um processo dolorido e um momento de insubmissão
muito grande'', contou a escritora sobre a obra publicada pela editora
Nyandala em 2011.
Escrevivências e novos imaginários
Crescida
em uma favela em Belo Horizonte e sendo a segunda de nove irmãos, Conceição
Evaristo disse não ser possível ''colocar vida de um lado e obra de outro'' e
comentou alguns de seus desafios para escrever enquanto ''mulher negra na sociedade brasileira''. ''Minha escrita é muito comprometida com as minhas vivências. Nossa
história não começa com vitória. Ela sempre começa com luta e resistência. Não
tenho elementos para criar uma história que começa com amenidades. No
'Insubmissas Lágrimas de Mulheres' quis trazer histórias de vitórias e mulheres
negras como protagonistas. Os contos partem do histórico doloroso dessas
mulheres e elas contam suas vitórias nesse processo de resistência. Mas ainda
não consegui escrever uma história que não traga o elemento dor'',
confessou a ensaísta, hoje com 70 anos e seis obras publicadas.
Para
a professora visitante da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é
preciso construir novos imaginários na literatura e ver o silêncio como ''tática de defesa''. ''Tem aquele imaginário da mãe preta grata na
fazenda, que falava 'sim sinhô' e fazia tudo pela sinhá. Prefiro pensar essa
mãe preta como a mulher que sabia o dia em que o fazendeiro viajaria e levava
isso para senzala. Dali se organizavam as fugas para os quilombos e a mãe preta
voltava para fazenda como se não tivesse percebido nada. O imaginário da
escravidão ainda é de sujeitos passivos e essas narrativas só poderão ser
recriadas por nós'', afirmou.
Desafios para o presente
Conceição
Evaristo falou da importância da nova geração de escritores negros falarem
sobre temas como a diversidade sexual. ''Eles
trazem isso sem dificuldades, diferentemente da minha geração. Esse não era um
aspecto da vida das mulheres negras sobre que nos debruçávamos. Esses novos escritores têm essa coragem de se
colocar completos nos textos.'' Para ela, é essencial que as novas gerações
desenvolvam trabalhos coletivamente. ''Eles
também já perceberam a importância de trabalhar em coletivo - seja para recitar
ou publicar antologias. Devemos ter esse compromisso de ler os nossos textos,
dos mais velhos e dos contemporâneos. A literatura produzida por negros tem
tradição e não podemos perder a perspectiva do que ja foi feito'', avalia
Evaristo, cujos textos foram publicados em antologias brasileiras e
internacionais.
Ela
enfatizou a importância de mais valorização das mulheres negras, dentro e fora
do mundo acadêmico. "Conheço
inúmeros casos de homens negros que foram primeiro para as universidades
enquanto as mulheres negras cuidavam dos filhos. Lamento o fato de muitos
homens negros não nos valorizarem e não citarem nossos trabalhos. A falta de
cumplicidade faz com que eles fiquem sozinhos muitas vezes. Precisamos construir
mais redes de enfrentamento'', afirma.
![]() |
Imagem: Leto Carvalho/ Filepô. |
Literatura como resistência
Apesar
das dificuldades vividas em sua história, Conceição Evaristo afirmou acreditar
na literatura e na academia como ''lugares
de resistência'' e diz que seu trabalho faz sentido no encontro com
leitores. ''São vocês que dizem que eu
sou escritora. E cada mulher que se reconhece no meu texto me potencializa e me
compromete para uma nova escrita. Se meu texto literário for capaz de produzir
reflexão e fomentar uma ação acho que ele atua como signo de resistência, de
esperança e de denúncia. Matamos um personagem para denunciar a impossibilidade
de vida'', afirmou a 'escrevivente'.
A
escritora concluiu afirmando ter na história das comunidades quilombolas uma
inspiração e, na literatura, um resgate. ''Quando
os sujeitos escravizados fugiam, eles não tinham nenhuma garantia de
liberdade. O que dava potencialidade
para eles era saber que estavam em busca da liberdade. A resistência é nosso
estado perene. Eu sei que cansa, mas devemos estar sempre em luta e com
esperança. Quem vai chorar esses mortos? Somos nós. Para mim, o lugar de chorar
esses mortos, de denunciar e expurgar essa dor é a literatura.''
Flipelô
Em
sua primeira edição, a Festa Literária do Pelourinho (Flipelô) ocupa ruas e espaços
culturais do centro histórico de Salvador de 09 a 13 de Agosto. Com mais de 50
atrações entre shows musicais, debates, saraus, lançamentos de livros, oficinas
literárias e apresentações teatrais, a Flipelô comemora os 30 anos da Fundação
Casa de Jorge Amado e homenageia o escritor, a jornalista Myriam Fraga e a
escritora Zélia Gattai. A programação completa da Flipelô pode ser acessada no
site oficial do evento (http://www.flipelo.com.br).