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"Você nos vê assim, com roupas bonitas, dançando, deve
imaginar que nossa vida é linda. A roupa é bonita, mas
nossa história é triste", diz uma cigana de campinas (SP) |
Por
trás da diversidade cultural e étnica do Brasil existe um mundo cigano, formado
por acampamentos em municípios localizados interior afora, que ainda é pouco
conhecido da grande população. São mais de 500 mil pessoas, divididas em
ramificações de três etnias distintas, que sofrem com falta de infraestrutura
adequada, dificuldade para ter acesso a programas sociais e para inserir os
filhos em escolas públicas, além de serem submetidos a cenas constantes de
discriminação e violência. Tais famílias vivem em 291 acampamentos ciganos
registrados por entidades da sociedade civil, prefeituras, governos estaduais e
governo federal, em 21 estados. Ficam, em maior número, localizados em Minas
Gerais, Bahia e Goiás.
O
que muita gente não sabe, incluindo muitos desse grupo de 500 mil pessoas, é
que o governo tem avançado em políticas públicas para os povos ciganos. Desde
2007 eles são protegidos pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais, têm direito ao cartão nacional de saúde –
que lhes permite acesso a toda unidade pública de saúde – e são objeto de
portarias estabelecendo que, em caso de população cigana nômade interessada em
se cadastrar nestes postos, não é obrigatório o fornecimento do endereço de
domicílio permanente nem de um marcador específico. Além disso, também podem
ser incluídos no cadastro único do governo para todos os programas sociais. Mas
não é, na prática, o que tem ocorrido.
Convidados
a falar em perto de 20 reuniões e eventos já promovidos pelo governo, por meio
da Secretaria de Políticas Públicas de Igualdade Racial (Seppir), os ciganos
reclamam que frequentemente são expulsos de municípios onde se instalam por
iniciativas que muitas vezes envolvem as próprias prefeituras. Dizem, ainda,
ter dificuldade de preencher seus dados em documentos do governo e, dessa
forma, ter acesso ao cadastro único de programas sociais. Seus filhos, nas
poucas vezes em que conseguem ser matriculados numa escola, mal conseguem
frequentar as aulas devido à discriminação de alunos e professores.
E
o que é pior: queixam-se que, constantemente, muitos grupos são ludibriados nos
acampamentos por falsos agentes governamentais que chegam pedindo informações
para que se cadastrem nos programas e terminam se aproveitando dos benefícios
sem que nada chegue, de fato, até eles. “Você
nos vê assim, com roupas bonitas, dançando, deve imaginar que nossa vida é
linda. A roupa é bonita, mas nossa história é triste. Viemos até aqui porque fomos
convidados e recebemos passagens para discutir nossa condição, mas muitos
ciganos no lugar onde moramos não têm o que comer”, afirmou Maura Ney, de
Campinas (SP), num destes encontros.
Degredados
Embora
pesquisadores sociais deixem claro que as estatísticas referentes aos ciganos
no Brasil ainda sejam incipientes, sabe-se que os primeiros deles a chegar ao
país foram o casal João Torres e sua esposa Angelina, em 1574, deportados pelo
rei de Portugal em um navio de degredados. Atualmente, os grupos que vivem por
aqui, segundo dados da Associação Internacional Maylê Sara Kali – AMSK Brasil –
(encampados pela Seppir), são ramificações de três etnias específicas: os Rom,
provenientes da Romênia, Turquia e Grécia; os Calon, da Espanha e Portugal; e
os Sinti, que vieram da Alemanha e França.
Conforme
cruzamentos de dados feitos pela entidade, junto com informações apuradas pela
Seppir com base em pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) sobre municípios brasileiros onde existem acampamentos ciganos, apenas
40 prefeituras confirmaram que desenvolvem junto a eles políticas sociais como
acesso a saúde ou educação. Pelo cálculo dos técnicos, significa dizer que
somente 13,7% do total de ciganos existentes no país recebem alguma política social:
o restante fica à margem desse tipo de iniciativa.
“As ações para apoio aos ciganos têm sido, ao
longo de décadas, de caráter cultural, para difusão das danças e histórias do
nosso povo, realização de seminários e encontros. Trabalhos, mesmo, para ajudar
as famílias, estamos vendo serem iniciados agora. Mesmo assim, pedimos um
trabalho de divulgação maior dos programas existentes em cada acampamento.
Ainda somos invisíveis aos olhos de muita gente”, acentuou Sérgio Ribeiro,
de Minas Gerais.
Por
conta disso, a secretaria lançou, em maio, uma publicação intitulada “Guia de
Políticas Públicas para Ciganos” e foram escolhidos, pelos próprios
representantes, 30 delegados que tiveram voz durante a última Conferência
Nacional de Igualdade Racial, realizada no final de outubro. Dentre as
propostas para melhoria destas famílias, destacam-se, na educação, programas de
alfabetização no ensino de jovens e adultos para povos ciganos, bem como
monitoramento da rede pública e privada de ensino quanto ao conteúdo sobre os
ciganos nos materiais didáticos. Também constam dentre as propostas a
intensificação de ações, nos estados e municípios, para cobrança do cumprimento
da resolução que trata de diretrizes para o atendimento de educação escolar
junto a populações em situação de itinerância.
No
tocante ao cadastro único de programas sociais, faz parte da pauta uma maior
orientação e acesso desses grupos aos procedimentos para inscrição nos
programas e contato constante do governo federal com os municípios para pedir que
sejam sanadas dúvidas sobre o cadastramento de famílias ciganas e demais grupos
que exigem um processo diferenciado de abordagem, em razão de suas
especificidades étnicas e culturais.
‘Brasileiros’
“Antes de sermos ciganos, nós somos
brasileiros. A gente já está aqui há 439 anos. Queiram ou não, fazemos parte da
construção do Brasil”, destacou Bárbara Piemonte, também de Campinas, em
depoimento que terminou sendo incluído em relatório da Seppir, divulgado
recentemente.
Os
ciganos lembraram que são eleitores, bastante lembrados em período de eleições
e achados quando possuem uma condição social melhor e possuem impostos a serem
pagos. Mas não veem os mais carentes das etnias aos quais pertencem serem
encontrados, da mesma forma, na hora de os benefícios sociais por parte de
governos estaduais e prefeituras serem distribuídos. “A discriminação e injustiça são grandes. Somos vistos como um pessoal
estranho pela maior parte da população”, ressaltou Amarildo Rocha, de Feira
de Santana (BA).
“Eles são uma minoria étnica que ficou,
durante muitos anos, ignorada pelo Estado. Passar a ter esse reconhecimento
desejado é algo que requer tempo, mesmo com as políticas tendo sido iniciadas
há alguns anos. Os ciganos enfrentaram em todo o mundo, ao longo da história, grandes
obstáculos e mantêm até hoje seus costumes e modos de viver”, avalia o
etnógrafo Davi Lisboa, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para Lisboa,
políticas aplicadas às famílias ciganas ainda devem demorar a apresentar bons
resultados. “É preciso maior apoio do
Estado como um todo para facilitar os programas de inserção social deles”,
completou.
Lisboa
lembrou que, para muitas famílias ciganas, o ato de identificar-se ou dar algum
endereço ainda é estranho e visto como um gesto para dar motivo a futuras
perseguições ou prisões, no caso de tentarem retirá-los de alguma área onde
montarem acampamento. E essa maneira de pensar prejudica os grupos nos
cadastramentos aos quais precisam ter acesso.
Cidadania
A
ministra Luiza Bairros, titular da Seppir, afirmou que as questões referentes
às comunidades ciganas são consideradas as mais desafiadoras para a pasta, uma
vez que é em meio a essas pessoas “que a
alteridade realmente se estabelece”. “Culturamente,
são as comunidades mais diferentes de nós e estamos trabalhando não só para
ampliar estas políticas, como também, em constante vigilância para que os
ciganos sejam beneficiados”, enfatizou.
De
acordo com a senadora Ana Rita Esgário (PT-ES), presidente da Comissão de
Direitos Humanos e Participação Legislativa do Senado, a questão é de
cidadania. “Precisamos incentivar e
ampliar as ações governamentais para os ciganos como instrumento para fortalecer
a cidadania e os direitos fundamentais do país como um todo. Fazendo com que
eles tenham acesso aos programas, também seremos beneficiados com menores
índices de exclusão social”, frisou.
Via
Rede Brasil Atual