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Nzinga Mbandi, a saga e o trono da rainha resistente

 

Figura 01. Retrato de Nzinga Mbandi em um pergaminho conservado no mosteiro de Coimbra, ilustração presente na obra: BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionária Africana. Lisboa: A.G.U. 1952, 11vol. 

Por César Pereira, Colunista

Em 1571 o rei de Portugal Dom Sebastião determinou a organização de uma política colonizadora para as terras portuguesas nos territórios africanos conhecidos hoje como Angola. O objetivo do monarca europeu era criar uma estrutura colonial semelhante àquela que já estava em desenvolvimento no Brasil desde 1530.

As atividades coloniais dos portugueses na África Austral (região do continente africano onde se localiza hoje Angola, Namíbia, África do Sul, Zimbábue, Moçambique, Zâmbia), já vinham sendo desenvolvidas desde os fins do século XV. Durante a primeira metade do século XVI tinham se restringido a contatos comerciais de ordem diversa: trocas de produtos africanos (noz-de-cola, metais, metais preciosos, peles, marfim), mas também escravos.

Após a consolidação do projeto de colonização efetiva das terras da América Portuguesa (Brasil) e a organização da produção da lavoura de cana-de-açúcar e açúcar nos engenhos a necessidade de mão-de-obra escravizada aumentou a demanda pelo tráfico de seres humanos escravizados na América. Assim, a partir da década de 1550 à medida que o tráfico de escravizados se intensifica e vai gerando maiores lucros, cresce a necessidade do governo português organizar este comércio de seres humanos e isto só poderia ser feito controlando as feiras no continente africano que era onde se comercializava os trabalhadores escravizados.

Após a morte de Dom Sebastião na batalha de Alcácer Quibir em 1578, o Reino de Portugal passou a enfrentar uma séria crise política, pois o rei morto não deixou sucessores diretos ao trono, seu parente mais próximo era o tio Dom Henrique, um cardeal da Igreja Católica que assumiu o trono com sessenta e oito anos e morreria no começo de 1580 deixando os portugueses sob o comando da dinastia dos Habsburgos que governavam a Espanha onde reinava Filipe II.

A ascensão de Filipe II ao trono português sob o título de Filipe I não alteraria significativamente a administração das colônias portuguesas nem na América nem tampouco na África. A burguesia lusitana firmara acordo com o rei espanhol e seus representantes para que mantivesse os territórios ultramarinos como possessões de Portugal se comprometendo a não os reverter em províncias espanholas.

Portugal ficaria sob domínio espanhol de 1580 até 1640, foi neste período que se intensificaram os esforços dos colonizadores portugueses para conquistar e avassalar todo o território do Reino de Ndongo, área da África Austral ocupada por vários povos desde os séculos V e VI da era cristã e que hoje abriga principalmente o território da República de Angola.

O processo de formação do Reino de Ndongo ocorre ao longo de boa pare do século XVI, a centralização política do reino se dar em torno de lideranças religiosas e ancestrais conhecidas como ngola. Inicialmente ngola são pedaços de ferro esculpidos, insígnias de poder que permite quem as recebe estabelecer a comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Aos poucos uma das linhagens portadoras do ngola vai estabelecer alianças com outras linhagens e assim formarão uma vasta família com poderes religiosos e políticos. Estas linhagens escolherão um líder para comandá-las e assumir o governo sobre elas e sobre as terras nas quais viviam com seus servos, escravos e parentes cultivando o solo e criando animais.

O Ngola, título que recebia o rei sacerdote logo passou a atuar militarmente sobre outros povos do território banto. Formando um poderoso exército esse Ngola vai expandir suas conquistas para os lados dos rios Bengo, Kwango e Kuvo, áreas de solos férteis e ricas em minerais, assim o poder do Ngola cresce à medida que ele vai submetendo outros chefes de tribos, e outros reinos ao seu comando.

Com o estabelecimento de uma intrincada rede de linhagens que lhe garante a sustentação no trono o Ngola passa a se constituir como a mais importante autoridade na região e logo se tornará um problema para o projeto de colonização portuguesa. Mas à medida que este Ngola se impunha como autoridade política e militar aos diversos reinos e povos do território banto, também atraía sobre si uma série de inimigos, será com a ajuda desses inimigos que as autoridades coloniais irá mover a guerra contra o Ngola-Kiluanje a fim de impor a este uma vassalagem ao império colonial português.

O Ngola era considerado sagrada pelos seus súditos que acreditavam nos poderes deste para controlar a chuva, a cheia dos rios, a fertilidade do solo e as boas colheitas. Concentrando assim poder religioso, político e militar o Ngola se torna uma força para se impor tanto ao poderio colonial quanto ao domínio do Reino Congo.

O Reino Congo tinha sido um poderoso império Centro-africano entre os séculos XIV e XV, mas no século XVI entrou em colapso à medida que os povos que estavam sob controle do manicongo (o imperador) se rebelaram e foram se proclamando soberanos. Ainda na primeira metade do século XVI os ambundos, povo da região que hoje compreende o território da Angola e da República Centro-africana estavam politicamente submetidos ao Reino Congo, mas em 1556 sob a liderança do Ngola-Kiluanje (Rei dos Ambundos), venceram o manicongo na batalha de Ndande e alcançaram a soberania.

Ao longo da segunda metade do século XVI os ambundos governados pelo Ngola-Kiluanje vão expandir seus domínios sobre outras regiões da África central e Austral, várias províncias do Reino Congo serão submetidas e os chefes locais reduzidos a condição de vassalos do Ngola-Kiluanje irão aliar-se aos portugueses na esperança de se ver livres dessa vassalagem.

Foi desse modo que se formou o poderoso Reino de Ndongo no território que hoje conhecemos como sendo a República de Angola. Será este reino que procurará se impor contra o avanço português ao longo do século XVII, seus reis resistirão através de uma longa luta armada contra o assédio do dominador europeu que procurava controlar todo a região e assim explorar livremente o comércio de escravizados, como também dos produtos da terra: ouro, prata, ferro, marfim, madeira, peles, alimentos.

A economia do Reino de Ndongo era agrária, mas o comércio era igualmente muito importante para os povos que o compunham. Através de rotas de comércio terrestres e fluviais os ambundos mantinham uma intensa relação de trocas comerciais e culturais com outros povos do centro e do sul da África. A organização política e a segurança que as forças militares do Ngola proporcionavam garantiram um rápido crescimento populacional do Ndongo como também seu enriquecimento.

Além dos lucros auferidos pelo comércio e agricultura havia também os basculamentos (tributos) pagos ao Ngola pelos sobas (chefes locais) avassalados ao Reino de Ndongo. Assim quando os portugueses passaram a investir fortemente no projeto colonizador de Angola, as forças políticas e militares do Ndongo foram uma barreira de resistência a qual precisaram vencer para impor seu domínio sobre a região.

O primeiro donatário do território do Reino de Ndongo e Angola foi Paulo Dias de Novais que recebeu carta de doação da terra das mãos do rei Dom Sebastião. Deveria tomar posse das terras, vencer os resistentes, converter os sobas em vassalos e manter o Ngola-Kiluanje sob seu controle. A ação dos colonizadores para controlar a região deveria partir do litoral para o interior seguindo o curso do Rio Kwanza.

Seguindo o plano traçado pelo governo lusitano os colonizadores construíram uma fortaleza-prisão na área da baía de Loanda a qual deram o nome de Presídio de São Paulo de Loanda, esta construção serviria durante séculos como ponto estratégico de onde eram planejadas as ações de colonização do território angolano.

Nas décadas de 1580 a 1610 a ação colonizadora foi se impondo lentamente, pois a resistência do Ngola-Kiluanje impedia grandes avanços do projeto de colonização. Para facilitar a penetração do poderio lusitano os sucessivos governadores de Angola concentravam suas ações de dominação sobre os sobas vassalos de Ndongo.

Aproveitando-se do descontentamento destes sobas com relação ao seu soberano, as autoridades portuguesas acabavam submetendo estes sobas prometendo-lhes proteção militar contra o exército do senhor de Ndongo, em troca dessa proteção os sobas remetiam aos portugueses cerca de cem escravizados por ano.

Na prática o que acontecia aos sobas sublevados contra o Ngola-Kiluanje era passa da condição de vassalos de Ndongo para a situação de vassalos do Reino de Portugal. Ao perder sua autoridade para o colonizador os sobas se submetiam também a obrigação de remeter escravizados para os acampamentos portugueses, logo as feiras que se instalavam por boa parte do território angolano se tornariam frementes mercados de escravizados e o comércio de seres humanos cresceria a tal ponto que já na década de 1630 a moeda mais valiosa nestas feiras eram homens e mulheres jovens escravizados.

Durante a década de 1610 intensificou-se a “Guerra Preta”, conflito entre os vários grupos em disputa pela hegemonia política sobre as terras dos vales do Rio Kwanza e Kuvo. Os sobas submetidos ao controle dos portugueses se viram obrigados a ofertar ao colonizador soldados para lutares contra o Ngola-Kiluanje, também se tornou obrigação desses sobas dar proteção aos presídios e fortalezas erguidos pelos portugueses.

O engajamento de soldados negros no exército colonizador era tão grande que aos lusitanos cabia tão somente o trabalho de comandar os exércitos de negros combatentes. Essas “Guerras Pretas” foram fundamentais para os portugueses efetivarem seu projeto de dominação territorial, pois a a medida que iam submetendo os sobas conseguiam arregimentar mais soldados negros que conheciam muito bem o território onde se deslocavam para combater o Ngola-Kiluanje.

Na década de 1620 os embates dos colonizadores contra o Reino de Ndongo se intensificará com a incorporação dos jagas (povo guerreiro e de mercenários da África central) primeiro aos exércitos coloniais e posteriormente ao exército de Ndongo.

Os jagas eram uma força militar importante na região, pois formava uma sociedade guerreira, homens e mulheres adestrados nas armas. Sua organização política era matrilinear, isto é baseada na autoridade de uma rainha-mãe e guerreira que encarnava as potências ancestrais e sobrenaturais. Inicialmente os jagas foram aliciados pelos sobas avassalados dos portugueses e passaram a combater ao lado do colonizador, mas algum tempo depois viram na liderança de Nzinga Mbandi a representação de sua grande rainha guerreira e se aliaram aos Ambundos contra o colonizador.

A ação política de Nzinga Mbandi começa de fato em 1622, quando seu irmão Ngola Mbandi a envia com uma embaixada para negociar a paz com os portugueses em Luanda. Neste momento Nzinga Mbandi era uma princesa do Reino de Ndongo governado pelo seu irmão Ngola Mbandi que assumira o trono em 1617.

Mesmo antes do reinado de Ngola Mbandi o Reino de Ndongo já se via fortemente ameaçado pelo poderio militar dos lusitanos fortalecidos com a aliança dos jagas. Em 1619 o exército jaga liderado pelo chefe Jaga Cassange entrou na capital do Reino de Ndongo obrigou Ngola Mbandi a fugir para a Ilha de Kindonga e assim assumiu na prática o controle sobre o reino.

No entanto Jaga Cassange recusou-se a entregar o controle do Reino de Ndongo a Luiz Mendes de Vasconcelos governador português de Angola e declarou-se inimigo dos lusitanos. Aproveitando-se desta cisão na aliança de seus inimigos Ngola Mbandi decidiu aceitar a proposta de paz com os portugueses que o haviam procurado para formar uma coalizão contra Jaga Cassange.

Para conseguir firmar aliança com o Reino de Portugal a embaixada presidida por Nzinga Mbandi deveria convencer o novo governador de Angola de que Ngola Mbandi garantiria a restituição aos portugueses das fortalezas tomadas pelos jagas, além disso o Ngola teria que garantir a segurança das feiras e o livre trânsito dos colonizadores pelo território de Ndongo.

O que os portugueses desejavam era um completo avassalamento de Ngola Mbandi a autoridade portuguesa. Mas a princesa Nzinga Mbandi não se disporá a aceitar as condições de paz humilhantes oferecidas pelo governador e é neste momento que a sua personalidade guerreira e sua inteligência política começa a se sobressair.

Nzinga Mbandi nasceu em 1582, era fila do Ngola-Kiluanje e uma de suas muitas concubinas. Foi criada na corte como uma princesa apta a fazer aumentar a linhagem do Ngola, isto é, de acordo com as leis dos ambundos, Nzinga deveria assumir posição de fundamental importância junto a seu pai na manutenção e expansão das linhagens reais.

Como princesa escolhida para expandir a linhagem do Ngola ela foi adestrada nas artes da guerra, recebeu também excelente instrução política e teve o privilégio de receber os conhecimentos do seu pai. Quando este veio a falecer em 1616 assistiu a sangrenta ascensão de seu irmão Ngola Mbandi ao trono do Ndongo.

Na sua luta pelo poder Ngola Mbandi matou o próprio sobrinho herdeiro natural do trono, exilou as irmãs e mandou executar todos aqueles que se opunham ao seu poder. Nzinga Mbandi e suas irmãs só puderam retornar do exílio quando o rei Ngola Mbandi percebeu que não ofereciam nenhum perigo a sua autoridade e principalmente quando compreendeu que precisava delas para negociar a paz com os portugueses e assim ser restituído ao trono de Ndongo.

Nzinga Mbandi chegou em Luanda para encontrar-se com o governador português acompanhada de grande séquito e foi recebida com cordialidade pelos lusitanos. Para mostrar disposição em negociar aceitou o batismo e recebeu na pia batismal o nome de Ana de Sousa. Mas logo ela percebeu que o governador João Correia de Souza que assumira o governo em 1621 não tinha intensão alguma de tratá-la como uma princesa e como sua igual.

Logo também compreendeu que os portugueses estavam ali para exercer completo controle sobre o povo e o território, assumir também o controle sobre as feiras e rotas de comércio. Desse modo, estabeleceu apenas acordos frouxos e sem nenhum compromisso militar ou político consistente com o governador e voltou a Kindonga. Sem nenhuma perspectiva de recuperar seu trono ou derrotar os jagas e sem apoio formal dos portugueses Ngola Mbandi suicidou-se em 1624, deixando o trono para seu filho ainda criança.

É neste momento que Nzinga Mbandi se faz a rainha de Ndongo. Imediatamente a morte do irmão ordena a execução dos seus aliados e principalmente do herdeiro do trono. Tendo eliminado a linhagem do antigo Ngola ela propõe então sua própria linhagem como autoridade política sobre os ambundos.

Nzinga Mbandi toma para si todas as insígnias de poder e é reconhecida como a legítima sucessora de Ngola-Kiluanje seu pai. Vai se tronar assim a rainha de Ndongo, um reino dominado pelos jagas e um território em colapso devido a dissolução do poder do Ngola sobre os sobas que estão em grande maioria sublevados. Além dos problemas de ordem interna Nzinga Mbandi precisará vencer a ameaça dos portugueses que a veem não como uma aliada, mas uma poderosa inimiga.

Logo após a ascensão de Nzinga Mbandi ao trono do Reino de Ndongo as autoridades portuguesas e os traficantes de seres humanos escravizados começam a preocupar-se com o rápido aumento das deserções dos soldados que formavam o grosso do exército colonial lusitano em Angola, com as fugas de escravizados, todos buscando proteção no território controlado por Nzinga ou se incorporando ao seu exército antilusitano.

Além das fugas dos escravizados que se refugiavam sob a proteção da rainha Nzinga Mbandi e dos soldados que se convertiam em guerreiras da rainha de Ndongo, os sobas antes avassalados ao governo português se rebelavam e se bandeavam para os lados de Nzinga. Rapidamente as autoridades coloniais perceberam a deterioração do seu domínio sobre Angola e o fortalecimento do poder da rainha que se impunha como a maior força política e militar dos ambundos.

Procurando enfraquecer a autoridade de Nzinga Mbandi o governador Fernão de Souza determinou a destituição da rainha do trono de Ndongo. Impossibilitado de vencer Nzinga pelas armas, pois estava com suas forças militares reduzidas o governador optou por desfechar um golpe político contra a rainha. Em 1626 anunciou publicamente que o governo português já não considerava Nzinga sua aliada e decretou-a destituída do trono de Ndongo e substituída pelo rei Are-Kiluanje.

O aparecimento de um novo pretendente ao trono de Ndongo representava para Nzinga Mbandi a necessidade de continuação das “Guerras Pretas”, pois para ela ficava evidente que o governo português pretendia continuar lançando as lideranças políticas de Dongo umas contra as outras para enfraquecê-las e desse modo alcançar o avassalamento completo do povo ambundo.

Ainda procurando evitar a continuidade das “Guerras Pretas” Nzinga enviou emissários aos representantes do governo português em Luanda para selar um acordo de paz e evitar a chegada de Are-Kiluanje ao trono, pois de acordo com as leis do parentesco que regiam a política sucessória de Ndongo este não passava de um soba vassalo seu. A via diplomática para a solução do impasse proposta por Nzinga fracassou, pois o governador-geral já havia declarado a rainha de Ndongo como inimiga de Portugal.

Temendo ver sua autoridade se esvaziar Nzinga Mbandi decide partir para o confronto direto com os inimigos. Determina então a prisão de Are-Kiluanje e seu avassalamento forçado, desse modo a comitiva de Are-Kiluanje que viajava desde a fortaleza de Ambaca foi atacada e apesar do rei-vassalo dos lusitanos ter escapado os aliados de Nzinga conseguiram matar três portugueses e conduzir outros seis a prisão.

Imediatamente o governador-geral Fernão de Souza deu ordens ao Bento Banha Cardoso para recrudescer a guerra contra Nzinga Mbandi e impor a autoridade portuguesa em todo território angolano. Tem início uma sangrenta guerra de perseguição lusitana contra a rainha Nzinga, esta é atacada em seu território nas ilhas do Rio Kwanza, mas consegue escapar e se refugia em Libolo, território dos Jagas.

A chegada de Nzinga Mbandi o kilombo dos jagas foi importante tanto para a rainha quanto para este povo, pois ela com sua grande capacidade de mobilização militar e sua inteligência política conseguiu rapidamente reunir os guerreiros jagas sob sua liderança e foi escolhida pelo Jaga Caza como Tembanza, rainha jaga, isto é, uma autoridade política, religiosa e guerreira dos jagas.

A partir desse momento, Nzinga Mbandi conseguirá unificar os jagas em torno de um inimigo comum, os portugueses, e este povo que até então havia agido como mercenários de guerra aliando-se a quem lhe oferecesse maiores ganhos passará a lutar ao lado de Nzinga contra a colonização de Angola.

O poder bélico de Nzinga Mbandi tornou-se o mais temido pelos portugueses na África, pois os guerreiros jagas agora sob sua liderança eram os melhores combatentes do território banto e foi com esta nova força militar que a rainha e seu general Jaga Caza avançaram por todo o território de Ndongo conquistando novos aliados e submetendo os resistentes.

Com o fortalecimento da liderança de Nzinga Mbandi e o esvaziamento da autoridade do rei-fantoche Ari-Kiluanje as rotas de comércio portuguesas em terra e nos rios foram interrompidas, as feiras foram dissolvidas, o tráfico de escravizados do interior de Angola e de outras áreas da África central para o porto de Luanda foi drasticamente interrompido. A fuga de escravizados buscando a proteção de Nzinga tornou-se um transtorno para os portugueses que viram seu lucrativo comércio de seres humanos prejudicados pela ação guerreira de Nzinga Mbandi e seus aliados.

Em 1629 o governo de Portugal determinou a destruição imediata do kilombo de Nzinga Mbandi e a consolidação do poder Ngola Kiluanje o sucessor de Are-Kiluanje como o novo rei de Ndongo. O ataque ao kilombo onde Nzinga se encontrava não surtiu o efeito que os portugueses esperavam, pois, a rainha conseguiu escapar e abrigar-se junto ao Jaga Cassanje na região do Songo.

Jaga Cassanje era um velho inimigo dos portugueses, vinha dificultando seu domínio sobre a férteis áreas dos vales dos rios Kwanza e Kuvo desde os fins da década de 1610, agora sua aliança com Nzinga Mbandi poria definitivamente em cheque as pretensões colonialistas lusitanas sobre Angola.

Nzinga Mbandi soube manipular com destreza política a inimizade do Jaga Cassanje contra os portugueses e trouxe-o para seu lado, impondo assim duro golpe as ambições políticas e econômicas lusitanas no território de Ndongo. A década de 1630 representou então a consolidação do poder político de Nzinga sobre todo o Ndongo. Fortalecida com a aliança com jagas e sob a liderança de muitos sobas seu poder aumentou e assim se impôs como uma força política e militar contra os colonizadores.

Foi assim que em 1630, Nzinga Mbandi conseguiu conquistar o Reino de Matamba e assumiu os títulos da linhagem desta sociedade, fazendo-se imediatamente a rainha que concentrava em suas mãos poderes sobre todos os sobas e sobre todas as terras da África central.

Para consolidar sua autoridade ainda mais, Nzinga Mbandi ordenou a formação de uma grande confederação sob seu comando político. Esta confederação tinha como principal objetivo minar toda e qualquer presença lusa em Angola.

As autoridades portuguesas viram ao longo da década de 1630 e 1640 seus domínios coloniais passarem rapidamente para as mãos de Nzinga Mbandi. As rotas do comércio de seres humanos e das drogas do sertão foram interrompidas, as feiras onde o comércio dos escravizados e outros produtos foram dissolvidas e seu controle sobre o território angolano se restringiu aos arredores de Luanda.

Imediatamente os colonizadores iniciaram toda uma campanha difamatória contra Nzinga Mbandi. O catecismo ensinado nas igrejas passou a veicular a imagem da rainha como praticante do canibalismo, cria-se a imagem de Nzinga como uma prostituta que em mantém em sua corte um harém masculino com centenas de homens para satisfazê-la sexualmente.

As imagens de Nzinga Mbandi passam então a representar uma mulher que assume o papel masculino, atributos guerreiros interditos às mulheres e agindo como tal, ela se equipara não aos homens, mas subverte a ordem de Deus, as leis divinas, de tal modo que os portugueses passam a associá-la as imagens demoníacas.

Rapidamente o nome Nzinga Mbandi passa a representar os atributos de alguém que se associa as potências malignas da natureza. A rainha vai ser classificada como bruxa associada ao demônio, comedora de gente, distribuidora da guerra e da peste, causadora de fome e sofrimento. Os portugueses procurarão por meio desta propaganda negativa da rainha Nzinga combater a visão de guerreira e líder política que age em defesa do Reino de Ndongo e da ancestralidade de seu povo.

Nas páginas dos relatos dos padres e escritores que viveram em Angola no período do reinado da rainha Nzinga sua representação aparece sempre como uma propaganda destacando aspectos negativos de sua personalidade e comportamento.

O objetivo destas gravuras é difundir para a época e para toda a posteridade uma visão amplamente negativa da rainha Nzinga Mbandi. OS pretos deveriam ver nela não uma liderança contra a dominação lusitana e contra o tráfico de seres humanos escravizados, mas uma mulher aliada ao demônio, sem a aura de heroísmo a rainha Nzinga não poderia ser elevada a símbolo de resistência e lutas pretas.


A imagem acima criada no século XVII e publicada em 1965 pela ditadura salazarista em Portugal procurava ainda no século XX, divulgar uma representação de Nzinga Mbandi como uma mulher que ao assumir a posição de liderança política em Angola age de forma autoritária, discricionária e de modo desumano.

Na imagem observamos o governador branco e o capitão-mor, ambos portugueses agindo como homens civilizados em posições mais elevadas, observe que Nzinga é representada na parte baixa da imagem sentada sobre o dorso de uma escrava, enquanto o governador ocupa uma cadeira alta que o equipava as montanhas que aparecem ao fundo.

Nesta outra imagem abaixo, Nzinga é representada fumando tabaco cercada de suas escravas e servida pelos homens do seu harém. Ao associar a imagem de Nzinga a um comportamento na época essencialmente masculino, o gravurista procura difundir entre o público a ideia de uma mulher que se nega a assumir atitudes condizentes com os papéis civilizados criados para as mulheres.

Fica bem evidente a tentativa de associar Nzinga Mbandi ao mundo demoníaco, aos valores negativos. Objetiva-se aqui subtrair dela seu estatuto de heroína nacional angolana, imagem esta que os grupos nacionalistas que lutavam contra dominação colonial portuguesa estavam criando para nela se inspirarem.

Figura 03. Nzinga fumando tabaco: In: CAVAZZI, João Giovanni Antônio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965.

Nas décadas de 1950 e 1970 tanto o MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola) quanto o FLNA (Frente de Libertação Nacional de Angola) irão invocar a luta e o exemplo de Nzinga Mbandi contra a dominação lusitana no século XVII para justificar suas lutas anticolonialistas. Após a independência de Angola em 1975, a história, a memórias, as lutas e a imagem de Nzinga Mbandi serão reabilitadas pelo governo da República de Angola e ela será alçada a posição de heroína nacional do povo angolano livre.

Figura 04. Estátua da rainha Nzinga, erguida em 2002. (FOTO | Reprodução | Internet).

 

REFERÊNCIAS

CARDONEGA, Antônio de Oliveira. História geral das guerras angolanas. (1681). 3 v. Lisboa, 1972;

CAVAZZI, Giovanni. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução, notas e índices pelo Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965;

FONSECA, Mariana Bracks: Nzinga Mbandi contra a colonização portuguesa de Angola, Temporalidades, Revista de História, disponível em: www.fafich.ufmg.br/temporalidades/revista.

A gangorra do poder e o mandonismo do latifúndio em Milagres-CE (1970 – 1980)

 

Milagres em 1965. (FOTO | Arquivo do autor).

Por César Pereira, Colunista

Até a década de 1970, a economia de Milagres estava alicerçada na agricultura e na criação de gado. Uma boa parte das terras cultivadas do município eram ocupadas pela cotonicultura, pois o mercado do algodão estava aquecido no Ceará, além disso, havia também uma importante produção de grãos, milho, feijão, arroz, que eram destinados ao consumo local e regional.

Havia outros cultivos com destaque na economia do município como a cana-de-açúcar que abastecia os engenhos de rapadura do Sertão do Cariri (microrregião onde se localiza Milagres e outros municípios da banda oriental da Chapada do Araripe), e a mandioca tubérculo utilizado na produção de farinha que compunha uma das bases da alimentação das famílias pobres da região.



A produção de rapadura é muito expressiva. Os engenhos locais obtiveram a apreciável quantia de 1 383 200 quilogramas dêsse produto que valeram mais de quatro milhões de cruzeiros, conforme apurou o Departamento Estadual de Estatística, entre 1955 e 1965. (Disponível em:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)



A mamona também era cultivada, e destinada a indústria de óleos tanto no Cariri como em outras regiões do estado. Existia também a produção de frutas que eram destinadas ao consumo da população local ou ao comércio nas feiras livres e mercados do Cariri, da Paraíba, Rio Grande do Norte ou Pernambuco.

De acordo com a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros publicadas pelo IBGE em 1966 Milagres era um:

Município essencialmente agrícola, a maior parte da renda municipal provém da agricultura, principalmente da cultura do algodão. Em 1955, a produção atingiu 16 milhões de cruzeiros, obtidos pelos produtos a seguir indicados: 68250 arrôbas de algodão (Cr$ 8190000,00); 16800 sacas - 60 kg - de feijão (:r$ 3 024 000,00); 18 200 toneladas de cana-de-açúcar (Cr$ 2 275 000,00); 5 120 sacas - 60 kg - de arroz (Cr$ 768 000,00); 5 280 sacas 60 kg- de milho (Cr$ 475 000,00); 1100 toneladas de mandioca-brava (Cr$ 330 000,00); 97 750 kg de mamona (Cr$ 293 250,00); 3 450 centos de manga ... (Cr$ 172 500,00); 3 450 centos de laranja ...(Cr$ 172 500,00); 656 sacas- 60 kg- de fava ...(Cr$ 118 080,00); 7 800 cachos de banana (78 000,00); 308 centos de côco-da-baía (Cr$ 36 960,00); 40 800 kg de Amendoim (Cr$ 48 800,00) (Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)

Ainda segundo esta mesma publicação, 42% da população economicamente ativa do município de 10 anos ou mais estava ocupada nas atividades da agricultura, isto é, eram trabalhadores rurais dependentes da terra e de seus produtos para garantir sua sobrevivência e de suas famílias.

O município possuía ainda alguns estabelecimentos industriais de pequeno porte, geralmente fábricas de tijolos, casas de farinha e engenhos de rapadura. Mas havia também uma indústria de beneficiamento de algodão, a COLINS, companhia algodoeira pertencente ao empresário Antenor Ferreira Lins, que fora prefeito de Milagres em duas ocasiões. Este empresário comprava a produção dos cotonicultores locais e de cidades vizinhas:



Os principais ramos industriais são o beneficiamento de algodão, fabricação de rapadura e farinha de mandioca. O estabelecimento mais importante é a Usina Kolins, de beneficiamento de algodão. A produção de tijolos, telhas e vasos de barro em geral, atinge anualmente, Cr$ 250 000,00. (Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)



A criação de gado concentrava-se principalmente nas propriedades dos mais ricos, pois estes detinham as melhores pastagens e nas terras ocupadas por suas propriedades estavam situadas as fontes de água perenes do município, como o Riacho dos Porcos o principal rio do Sertão do Cariri, rio este que irrigava as várzeas e é um dos mais importantes afluentes do Rio Salgado. Assim as melhores áreas de cultivo e pastagens estava nas mãos dos latifundiários, herdeiros das famílias tradicionais do município e que concentravam em suas mãos o poder político e econômico desde o século XIX.

A riqueza descrita acima era apenas aparente, estava concentrada nas mãos de uma minoria, a grande maioria do povo vivia na pobreza, era refém das relações trabalhistas semi servis que eram comuns em todo o Cariri cearense e na região Nordeste em geral. O lucro produção agrícola e as riquezas auferidas pela pecuária estavam nas mãos de um pequeno grupo de privilegiados que conseguiam acesso aos créditos rurais pagos pelo governo federal ou recebiam subsídios do governo estadual por meio de empréstimos no BEC (Banco do Estado do Ceará).

Nessa época a população de Milagres era de 18.669 pessoas segundo o censo do IBGE realizado em 1970, desses habitantes 79,5% residiam na zona rural, no entanto apesar de ter mais pessoas residindo no campo a distribuição das terras era enormemente desigual, pois de acordo com o censo agropecuário do mesmo ano havia em Milagres somente 1.521 proprietários rurais em posse de 220 km² das terras da área total do município que era de 678 km², o que significa que praticamente um terço dessas terras estava nas mãos de apenas 8,3% da população.

Eram esses proprietários que detinham as melhores terras, as várzeas, as serras, os vales, as fontes de água, as fazendas de gado, as plantações de algodão e cana-de açúcar que mandavam na política local, eram eles que se elegiam prefeitos e vereadores, eram eles que escolhiam quem deveria ocupar os cargos públicos dentro da administração municipal, eram esses homens que compunham a pequena elite local e assim controlavam os repasses do governo estadual e federal para o município.

Sem terras e residindo numa cidade com altíssima concentração de poderes e renda aos trabalhadores de Milagres restava apenas empregar-se nas propriedades dessa elite local para garantir sua sobrevivência. Formavam assim a grande massa de moradores de favor, trabalhadores alugados, meeiros, vaqueiros.

Nos recenseamentos demográficos das décadas de 1950 e 1970, a composição da população de Milagres é composta majoritariamente por pessoas negras. Segundo esses dados 63,7% dos habitantes do município se autodeclaram negros. No censo de 1980 a porcentagem de negros na população se elevou para 64,75%, esses homens e mulheres negros compunham as famílias de trabalhadores pobres, sem-terra, analfabetos, indivíduos vivendo na linha da miséria ou abaixo desta.

As condições econômicas desses camponeses pobres e desses trabalhadores negros de Milagres era precária. Formavam famílias que viviam com baixíssima renda, pois os salários pagos estavam bem abaixo daquilo que lhe seria necessário para uma vida econômica estável. Os trabalhadores rurais ganhavam diárias ou semanadas, apesar da Lei n° 5.889 de 08 de junho de 1973 determinar ao empregador rural a obrigações trabalhistas para com seus empregados rurais, os proprietários continuaram praticando as relações trabalhistas servis que vinha do início do século XX.

Isso acarretava graves problemas para os trabalhadores rurais e suas famílias. A fome era um desses problemas, pois como os salários eram baixos e a inflação alta esses trabalhadores não conseguiam suprir nem as necessidades básicas de suas casas, assim a desnutrição e a mortalidade infantil eram elevadas e o analfabetismo atingia 81% da população.

Quando a década de 1980 começou a ditadura civil-militar imposta ao país no dia 31 de março de 1964 agonizava, o presidente-ditador era João Batista de Figueiredo eleito pelo colégio eleitoral em 1979 ele assumira governo do Brasil prometendo redemocratizá-lo nem que fosse ‘prendendo e arrebentando’.

Naquele momento o país estava mergulhado numa crise econômica que começara em 1974 e que iria se agravar ao longo dos seis anos de mandato do último general presidente, essa crise atravessaria todo os anos de 1980 e adentraria o decênio seguinte.

Era uma crise hiperinflacionária que corroía os salários dos trabalhadores, provocava o aumento da pobreza, desemprego em massa e condenava milhões de famílias a miséria, principalmente nos municípios mais pobres do país onde seus efeitos eram agravados pela concentração de terras nas mãos dos latifundiários e pelas práticas políticas clientelistas.

A crise tinha raízes no modelo econômico adotado pela ditadura, modelo este que se sustentava no progressivo endividamento através da contratação de empréstimos aos bancos internacionais e a atração de investimentos estrangeiros por meio das multinacionais que se instalavam nos grandes centros urbanos atraídas pelo baixo custo da produção e a mão-de-obra barata garantidas pelo aparato repressor do regime militar.

O modelo mostrou-se extremamente concentrador de renda e milhões de trabalhadores foram jogados na miséria, tanto no campo quanto nas cidades. À medida que o governo investia vultosas somas de dinheiro nas grandes obras estruturantes e as capitais das regiões Sul e Sudeste recebiam a maior parte desses investimentos, as condições de vida das famílias dos trabalhadores pobres de todo o país se deteriorava, a miséria avançava no campo na periferia das áreas metropolitanas.

Nas duas décadas de vigência do regime militar no Brasil, Milagres era um dos municípios mais pobres do Ceará e nessa cidade a crise econômica se agravava ainda mais devido a concentração de terras nas mãos de uma minoria, onde o clientelismo transformava a administração pública municipal em propriedade do grupo mandante e de seus apadrinhados.

Segundo o sr. Francisco Ivan Rodrigues, 75 anos, funcionário público e trabalhador rural em Milagres nas décadas de 1960 e 1980, o clientelismo era uma prática comum nas sucessivas administrações municipais. Na entrevista n° 3, realizada em 11 de julho de 2023, ele afirma que ainda não mudou quase nada. Pois nos dias de hoje o prefeito que entra “bota pra fora” (demite) “empregados” (nomeados) do anterior.

O Sr. Francisco Ivan Rodrigues diz na entrevista que os prefeitos de Milagres nas décadas de 1970 e 1980 só empregavam no serviço público pessoas ligadas ao seu grupo político:

Só botava gente deles...fizeram um concurso uma vez e só passou quem o prefeito quis. Pode olhar que ainda tem gente deles aí, na limpeza em tudo. Já tão perto de se aposentar e nem trabalhar direito trabalharam... Naquele tempo era nomeação. No tempo do prefeito Gilvan Morais ele nomeava, mas quando entrava outro prefeito o empregado saía. Prefeitura não paga bem. Naquele tempo nem pagava direito. Outro prefeito que nomeou muito foi Edimilson Coelho, mas aí quando deixou a prefeitura quem ele colocou lá saiu. Era assim. Todo mundo já sabia. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de 2023).



Como podemos perceber o meio utilizado para se conservar no poder era empregar seus amigos, parentes, eleitores enquanto se estava no comando da prefeitura, quem estava por baixo perdia as oportunidades, mas aqueles que se mantivessem fiéis seriam recompensados e teriam acesso aos serviços públicos disponíveis no município.

Ter acesso aos bens e serviços municipais era difícil, pois eles se encontravam nas mãos dos grupos mandantes, aqueles que se apropriavam do poder no município e para nele se manter impediam que adversários ou pessoas que não se rendessem ao seu sistema clientelistas de apadrinhamentos tivessem acesso aos equipamentos públicos de saúde, educação e até mesmo infraestrutura de Milagres.

Esse modelo de administração pública clientelista, fisiológica, corrupta e autoritária era na prática uma representação local do modelo adotado pelo governo do estado do Ceará e garantido pelos generais de Brasília.

Durante os anos do regime militar o Ceará ficou sob o mando de três grupos oligárquicos liderados pelos coronéis do exército: Virgílio Távora, Adauto Bezerra e César Cals. O Acordo dos coronéis, firmado com o aval dos generais-presidentes favoreceu a manutenção do projeto de “modernização” conservadora iniciado na década de 1960.

A concentração de poderes nas mãos desses chefes políticos autoritários e defensores da tradição do mando oligárquico no Ceará vai favorecer principalmente a burguesia que via nesses coronéis os representantes e porta vozes de seus interesses econômicos e políticos. Ao investir na construção de grandes obras estruturantes nas cidades mais expressivas do estado e ao incentivar através de concessão de empréstimos a industrialização cearense, os coronéis mantiveram o apoio da classe média e dos setores conservadores.

A forte centralização política e o autoritarismo desses coronéis garantiam a aparência de hegemonia de uma única força política no estado. As divisões internas entre esses grupos de poder eram harmonizadas através das trocas de favores, assim, eles impediam grandes cisões internas que levassem a possibilidade de outros grupos emergentes ameaçarem seu mando.

Assim, para harmonizar seus interesses econômicos com a manutenção do poder esses grupos transformaram a máquina pública cearense num gabinete privado de negociações, pactos, acordos e reforço da sua liderança local, regional e estadual.

Nos municípios do interior do estado a preservação da ordem oligárquica era condição fundamental para a manutenção do poder desses coronéis e daqueles que queriam a conservação da estrutura econômica e política liberal conservadora em suas mãos. Para garantir que lideranças políticas não alinhadas com o projeto da ditadura nem tampouco com os grupos que lhe davam apoio nos estados e municípios os militares e sua base de sustentação lançaram mão de vários instrumentos repressivos e centralizadores de poder.

Um desses instrumentos foi a constituição de 1967, ela determinava que a existência de apenas dois partidos políticos, a ARENA, (Aliança Nacional Renovadora), o partido do governo, aquele que compunha sua base de sustentação e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que congregava a oposição consentida ao regime.

Na ARENA se alinhavam os mais diversos interesses, mas o principal interesse daqueles que se abrigavam no partido da ditadura era ficar o mais próximo possível daqueles que controlavam o poder tanto no estado quanto na federação. Desse modo, devido a interesses particulares conflitantes ou de interesses de grupos oligárquicos que ambicionavam o poder municipal para si, observa-se muitas vezes o fracionamento da ARENA em ARENA I e ARENA II.

Dentro do MDB, que era o partido da oposição consentida pela ditadura também não diferente. Esta agremiação política reunia dentro de si os mais diversos interesses políticos e econômicos. Nas cidades do interior cearense se abrigavam dentro desta legenda dissidentes das oligarquias no poder, grupos ou indivíduos que se sentiam traídos ou não devidamente assistidos em seus interesses particulares.

Isso acontecia principalmente quando no mesmo município o partido não conseguia equilibrar os interesses particulares dos diversos grupos de poder reunidos dentro da legenda. Na impossibilidade de se lançar como candidato da oposição consentida, ou não havendo nenhum interesse do político local de se afirmar ideologicamente contra as orientações políticas dos coronéis em Fortaleza e dos generais em Brasília ele se lançava como candidato adversário ao político local, mas jamais contrário ao coronel-governador ou ao general-presidente.

Também o MDB a exemplo da ARENA dividia-se em vários blocos, dependendo qual o interesse de poder estava por trás das filiações partidárias poderia subdividir-se em MDB I, MDB II, e assim por diante. Nas eleições de 1976 em Milagres por exemplo o Movimento Democrático Brasileiro apresentou três candidatos a sucessão do então prefeito Francisco Gilvan Morais, eleito em 1972 pela ARENA com 1452 votos.

A oposição fragmentada fortalecia a manutenção do poder nas mãos das elites tradicionais cearenses, mas estar dentro do MDB ou lançar-se candidato por este partido não era garantia de que o político seria contrário ao projeto político dos “coronéis” do Ceará.

Foi por meio desse sistema eleitoral pulverizado em diversos interesses particulares e oligárquicos que as eleições municipais realizadas em Milagres no ano de 1970 deram vitória absoluta a ARENA. Nessas eleições havia em Milagres 3.745 pessoas aptas a votar, (o voto estava restrito aos alfabetizados maiores de 18 anos) o que significa que 81% da população do município estava excluída do direito ao voto. Desses eleitores aptos ao voto compareceram às urnas 2.494, e abstiveram-se 1.251. Aqueles que foram votar deram vitória esmagadora a ARENA, único partido a apresentar candidatos a prefeito e vereador no município.

O prefeito de Milagres eleito em 15 de novembro de 1970 foi o farmacêutico Edmilson Coelho Pereira pelo partido ARENA, era membro das importantes famílias da cidade, prático em medicina, proprietário rural e de casa de comércio, representava os interesses oligárquicos do coronel Adauto Bezerra chefe político caririense e futuro governador do Ceará.

A vitória de Edmilson Coelho Pereira foi seguida pela eleição de outros seis vereadores, todos eles pertencentes a ARENA. Nas eleições municipais de 1976, a Aliança Nacional Renovadora repetiria em Milagres sua vitória, conseguindo eleger Elísio Leite Araújo prefeito municipal com 3.122 votos. O MDB dividido em três blocos de interesses lançou três candidatos e que foram derrotados pelas lideranças arenistas de Milagres (Francisco Gilvan Morais, Edmilson Coelho Pereira, candidato a vice-prefeito eleito e Elísio Leite Araújo, prefeito eleito). Todas essas forças políticas do município eram as legítimas representantes das continuidades oligárquicas em Milagres e no Ceará.

Ao longo da década de 1970 o comando político do município de Milagres ficou nas mãos dos latifundiários e aliados dos “coronéis” que governavam o Ceará. Tais lideranças políticas locais garantiam a manutenção do poder oligárquico no estado através das relações políticas clientelistas. Romper com o governo do estado seria um suicídio político, pois os repassem de recursos para os municípios estavam centralizados nas mãos do governo dos generais de Brasília e dos “coronéis” que sustentavam a ordem oligárquica e conservadora no estado do Ceará,

Na prática as eleições municipais significavam apenas a alternância de indivíduos com interesses políticos comuns a seu grupo oligárquico e vinculados aos projetos conservadores das forças hegemônicas no estado do Ceará ou na região do Cariri. Os interesses da população em geral não eram levados em conta, o que explica porque ainda nas últimas décadas do século XX os índices de analfabetismo fossem tão altos em Milagres.

As verbas repassadas para manter a máquina municipal funcionando escoava-se no sumidouro dos apadrinhamentos políticos. Eram centenas de afilhados dos prefeitos municipais, dos vereadores e de seus aliados. Esses afilhados recebiam os empregos destinados ao município pelo governo do estado, mas ao mesmo tempo dependendo do grau de proximidade e parentesco com os chefes políticos do município também levavam para dentro da administração municipal seus amigos e parentes.

Toda uma rede de clientelismos era construída para manter a ordem oligárquica. O controle sobre as melhores terras e a água do município garantia a hegemonia desses latifundiários e mantinha a população pobre na miséria e sob o mando deles.

Em 1974, a cidade de Milagres contava apenas com um posto de saúde, conhecido como posto de puericultura, este posto de atendimento e um hospital maternidade eram os únicos equipamentos de saúde para atender os trabalhadores pobres e suas famílias.

Essa carência de serviços básico ocasionava os altos índices de mortalidade infantil no município, pois segundo os dados do censo de 1980 era de 35,64% a quantidade de crianças que morriam antes de completar cinco anos de idade em Milagres.

Outro indicador da miséria e da completa falta de assistência por parte do município aos filhos dos lavradores e trabalhadores pobres em geral de Milagres aparece quando comparamos os números referentes a quantidade de mulheres que tiveram filhos ao longo da década de 1970 com quantidade de crianças que nasceram mortas no mesmo período.

Apenas dois oficiais práticos de farmácia e 1 dentista prestam assistência aos milagrenses. Há duas farmácias na sede municipal. Está em construção um prédio onde funcionará um posto médico. (Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)

Os dados informados pelo IBGE demonstram que das 5.988 mulheres em idade fértil de Milagres, 3.743 tiveram filhos entre 1971 e 1979, desses partos 1.941 foram de natimortos o que resulta em 51,85% de crianças nascidas mortas em uma década no município.

A causa de tamanha mortalidade infantil pode ser explicada pela falta total de acompanhamento da gestação da mulher, pois no município não havia nenhuma política voltada para a população em geral. As verbas destinadas para os cuidados da saúde do trabalhador e sua família restringiam-se ao pagamento dos honorários de um único médico que segundo o testemunho do sr. Francisco Ivan Rodrigues atendia esporadicamente no hospital municipal Nossa Senhora dos Milagres.

Somente na década de 1980 haverá pelo menos dois médicos residindo na cidade. Eram clínicos geral que realizavam consultas pagas, mas poderiam também consultar os doentes caso recebessem uma ordem (autorização) da prefeitura para atender ao paciente, outras vezes atuavam como médicos “filantropos” que na época das eleições cobravam dos seus pacientes os votos deles e de suas famílias.

Uma prática bastante comum era realizar o transporte do doente ou pessoa que quisesse uma consulta para as cidades próximas do Cariri, isto é, Barbalha, Juazeiro do Norte, Crato, cidades onde havia hospitais e onde os filhos e parentes médicos dos mandantes em Milagres estabeleciam suas clínicas.

O objetivo era fazer com que as pessoas ficassem reféns dos favores de quem ocupava o poder municipal, desse modo lançar e manter os trabalhadores e suas famílias na miséria funcionava como uma importante estratégia política para angariar votos e se conservar no poder em Milagres.

Essa e outras práticas políticas oligárquicas garantiu que os chefetes e chefes latifundiários se conservassem no poder ao longo de mais de um século no município de Milagres. Os prefeitos eleitos ao longo do século XX pertenciam aos grupos políticos oligárquicos tradicionais do Sertão do Cariri. Homens ligados por laços de parentesco entre si, por laços de interesses políticos e econômicos comuns.

Os números da pobreza em Milagres demonstram o quanto a elite local oprimia os trabalhadores mantendo-os sujeitos aos mais baixos estratos da sociedade. Tanto a população que vivia no campo quanto aquela que se instalara na sede municipal vivia completamente desassistida pelo governo.

O Anuário Estatístico do Ceará publicado em 1972 descreve o município de Milagres como possuindo 1 médico, 2 farmácias, 1 hospital maternidade, 1 unidade de saúde pertencente ao governo estado, sem abastecimento de água, com uma arrecadação de Cr$ 364.332,48, economia agrária, pois tinha bons solos para o plantio de cultivos diversos.

Sem dúvida um dos principais fatores que desencadeava a miséria do trabalhador e suas famílias em Milagres era a concentração de terras nas mãos de um pequeno grupo de latifundiários. Sendo um município essencialmente agrário, com mais de 80% da sua população vivendo na zona rural, a sobrevivência daqueles que não tinham a terra se tornava difícil.

Enquanto a elite latifundiária se revezava no poder, controlava a política local por meio do clientelismo e usava a máquina pública do município para concentrar mais ainda as riquezas em suas mãos, os lavradores milagrenses viviam como podiam.

Se empregavam nas terras desses latifundiários, aprendiam a negociar com eles a sobrevivência e de suas famílias. Nessas negociações o voto será um instrumento importante, principalmente a partir das eleições de 1982 quando a volta do pluripartidarismo colocará os interesses da elite local e estadual em blocos de disputas eleitorais diversos.

REFERÊNCIAS

IBGE: Enciclopédia dos municípios brasileiros, disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br

________Censo demográfico de 1970 e 1980, disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br

IPECE: Anuário estatístico do Ceará de 1972, disponível em: http://memoria.org.br/pub/meb000000421/anuario1972ce/anuario1972ce.pdf

TRE-CE: Ata do resultado das eleições de 1970, disponível em: https://www.tre-ce.jus.br/eleicao/resultados

________Resultado oficial das eleições anteriores a 1992, disponível em: https://www.tre-ce.jus.br/eleicao/resultados


O baião lírico e o baião dialógico de Jonas de Andrade, o Bilinguim

 

Imagem 1. Jonas de Andrade, o Bilinguim. (FOTO | Reprodução | Internet).

 

“No meu jardim tem uma rosa
Tem uma rosa no meu jardim
No meu jardim tem muitas flores
Foi meu bem que plantou pra mim.”

(Trio Nortista)

 

Por César Pereira, Colunista

Quando Jonas de Andrade, o Bilinguim, nasceu no dia 29 de dezembro de 1941, Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, começava a sua carreira artística no Rio de Janeiro. No dia 05 do mês de março desse ano o futuro Reio do Baião atuou pela primeira vez num estúdio apoiando a execução da canção “A viagem de Genésio” da dupla Genésio e Januário e no dia 14 de março gravaria suas primeiras músicas: “Véspera de São João” e “Numa Serenata”.

Começava então a caminhada do grande artista do sertão nordestino que seria o precursor de muitos outros. O caminho aberto pelo músico negro Luiz Gonzaga no começo da década de 1940, seria igualmente trilhado por Jonas de Andrade e seu Trio Nortista vinte e cinco anos após o Gonzagão principiar a sua travessia.

Mas a trajetória de sucesso de Luiz Gonzaga não foi linear e nem tampouco imediata. Antes de alçar-se ao título de Rei do Baião, este artista precisou enfrentar o preconceito contra sua arte e contra a sua origem nordestina e negra. Muitas vezes foi relegado ao ostracismo e sujeitado a ocupar apenas determinados espaços, horários e palcos da cena cultural brasileira.

Em 1972, Luiz Gonzaga estreou no Teatro Tereza Rachel na cidade do Rio de Janeiro o espetáculo “Luiz Gonzaga volta pra curtir.” O evento marcou a carreira do Rei do Baião, pois era a primeira vez que sua arte ocupava um palco criado para abrigar os artistas das vanguardas da cultura brasileira das décadas de 1960 e 1970.

No Teatro Tereza Rachel apesentavam-se os principais nomes da Tropicália como Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, os grandes nomes da Bossa Nova, os mais insignes sambistas do Rio de Janeiro, mas também a nova geração de músicos e artistas brasileiros que despontavam no cenário artístico nacional no início da década de 1970.

O palco da casa de espetáculos Tereza Rachel era o local onde se apresentavam os artistas que a classe média e os universitários consumiam naquele período. Luiz Gonzaga já era um artista com mais de trinta anos de carreira quando em março de 1972 estreou seu espetáculo no Teatro Tereza Rachel. Ele já um era um artista conhecido desde a década de 1940, pois o baião, (termo cunhado pelo próprio Luiz Gonzaga para se referir a sua estética musical), fazia sucesso entre o público que consumia a música nordestina.

Esses consumidores eram principalmente nordestinos que no período que se estende de 1940 a 1970, vão migrar para a região Sudeste do Brasil e depois para o planalto central fugindo da falta de perspectivas econômicas para si e suas famílias, isto é, da miséria endêmica que acometia os nove estados da região Nordeste.

O próprio Luiz Gonzaga é um desses migrantes que partiu do sertão, mais especificamente do Cariri, (sul do Ceará) em busca de melhores condições de sobrevivência nos grandes centros urbanos do Brasil. O rápido desenvolvimento econômico e a industrialização do Rio de Janeiro e São Paulo atrairia milhões de nordestinos que partiam do sertão a procura de meios de sobrevivência que os livrasse da vida miserável a qual viviam relegados devido a concentração de terras nas mãos dos latifúndios no interior do país.

Foi entre estes migrantes nordestinos que Luiz Gonzaga encontrou seus primeiros admiradores e foi principalmente entre eles que fez sucesso ao longo das décadas de 1940 e 1950. Quando a música do Rei do Baião começou a ocupar as rádios na região Sudeste e a indústria fonográfica percebeu que existia um público para consumir aquele tipo de arte, Luiz Gonzaga conquista também um lugar nas gravadoras e assim se faz conhecido também no Nordeste, a região de onde havia migrado fugindo da miséria.

A partir das décadas de 1950 e 1960, com a consolidação do modelo econômico desenvolvimentista no Brasil haverá uma expansão de 400% da indústria fonográfica. As estações de rádio que antes estavam restritas aos grandes centros urbanos do país e a algumas capitais dos estados se expandem para as cidades médias do interior do Brasil.

Os serviços radiofrequência modulada (Rádio AM), expandiram-se por todo o território nacional, atingindo 100% de cobertura nos meados da década de 1950. Assim, emissoras de rádio como a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a Super Rádio Tupi, a Rádio Globo e a Rádio Record podiam ser sintonizadas praticamente em todos os lugares do Brasil.

Essa difusão da radiofonia permitiu que a música de Luiz Gonzaga chegasse ao sertão, e com isto aumentou a sua fama e cresceu o seu público consumidor. Luiz Gonzaga passou então a se apresentar em espetáculos públicos pelas cidades do interior do Brasil, principalmente do Nordeste nas décadas seguintes. Seu baião se propagaria pelas festas do sertão nordestino e mesmo nas capitais dos estados dessa região.

O barateamento dos aparelhos de rádio e dos toca-discos permitiu aos trabalhadores que possuíam uma renda comprarem esses produtos e desse modo ajudaram a alavancar as vendas dos discos dos artistas ligados a música nordestina especialmente nas décadas de 1970 a 1980.

No entanto, apesar do sucesso do Rei do Baião, sua arte nunca pode ocupar os palcos dos teatros frequentados pela classe média e a elite do país. O baião ficou restritos as festas do interior do Nordeste, comícios, festejos juninos, era visto como música folclórica, sub arte para consumo dos migrantes nordestinos. Assim, a presença de Luiz Gonzaga ocupando o espaço do Teatro Tereza Rachel foi um momento marcante para o baião e seus adeptos. Na sua edição de 12 de março de 1970, o jornal Correio da Manhã assim se pronuncia sobre o espetáculo Luiz Gonzaga Volta Pra Curtir:

Luiz Gonzaga Volta pra Curtir em cartaz no Teatro Tereza Raquel é a concretização de um trabalho de valorização da cultura musical de origens nordestina que vem sendo feita há vários anos por diversas manifestações artísticas (entre a quais o cinema de Glauber Rocha e, principalmente, através dos “baianos” Caetano Veloso e Gilberto Gil, como seus representantes mais famosos). Por esta razão e pelo próprio trabalho do “Rei do Baião” o espetáculo reveste-se de inúmeras significações culturais.

Para uns, a presença de Luiz Gonzaga e sua gente é a descoberta de um dos mais importantes atores de uma cultura realmente popular, não só pela origem de seus elementos constituintes, (ritmo, instrumentos, temas), mas também pelo público a quem basicamente se destina. Para outros, é a oportunidade de ouvir sem problemas preconceituais uma música profundamente enraizada em suas experiências e agora até valorizada intelecto e culturalmente. (Disponível em: https://caetanoendetalle.blogspot.com/2018/11/1972-luiz-gonzaga.html, acesso em 02/07/2023)

 

Como podemos perceber o jornal reconhece o valor cultural da música de Luiz Gonzaga, mas deixa bem claro que até aquele momento o baião foi apenas um estilo musical ouvido pelo ‘povo’, isto é, o artista enquanto não ganhou o direito de se apresentar num teatro frequentado pela intelectualidade e por consumidores da classe média não possuía relevância nem do ponto de vista intelectual ou cultural, pois quem o ouvia era exclusivamente o público para quem a música se dirigia, por meio dos temas abordados e dos instrumentos utilizados nos arranjos.

Mesmo reconhecendo a importância cultural de Luiz Gonzaga e do baião para a cultura musical, o jornal não deixa de sugerir o caráter exótico da arte do “Rei do Baião”. Essa arte precisa, segundo o articulista, ser vista e ouvida porque afinal de contas ela é parte de uma divulgação da cultura nordestina pelos meios intelectuais da Região Sudeste.

Desse modo, percebemos que Luiz Gonzaga foi um artista desbravador. Um homem negro que levou do Cariri cearense para os auditórios das rádios do Rio de Janeiro e São Paulo, para dentro da indústria fonográfica e finalmente para os palcos dos teatros da elite o baião, o forró, a sanfona, o triângulo, a zabumba, o gibão, o chapéu-de-couro, o côco, o xaxado, a embolada, a seca, os retirantes, as festas de São João.

Sem dúvida, esse artista negro foi e continua sendo um dos maiores instrumentistas e músicos brasileiros do século XX. Luiz Gonzaga abrirá os caminhos para que outros artistas nordestinos passem a sonhar em ocupar os espaços da arte restritos a música e a arte feita apenas na Região Sudeste.

Muitos foram os artistas do Nordeste do Brasil que seguiram os passos do Rei do Baião: Marinês, Zequinha Gonzaga, Dominguinhos, João do Vale, Jonas de Andrade.

João Pereira de Andrade tal como como seu mestre Luiz Gonzaga também precisou migrar do Cariri para o sudeste do Brasil. Antes de deixar o sul do Ceará em busca de uma vida melhor em São Paulo viveu primeiramente como agricultor na zona rural do município de Milagres, cidade localizada a 495 km da capital, Fortaleza.

Bilinguim, como era conhecido entre os mais íntimos, veio ao mundo nos fins do ano de 1941, o mês era dezembro, seus pais eram trabalhadores rurais na Sítio Junco, área rural localizada na cidade de Milagres. Na década de 1940, este município do sertão do Cariri, possuía uma população de 21.075 habitantes dos quais apenas 3.225 viviam na zona urbana, isto quer dizer que a maior parte da população de Milagres era composta de trabalhadores rurais, isto é, pessoas que dependiam exclusivamente da terra e dos produtos dela para garantir sua sobrevivência.

Os pais de Bilinguim eram, portanto, trabalhadores da agricultura, viviam de prestar serviços aos latifundiários locais, foi para um desses latifundiários que José Pereira de Andrade trabalhou como vaqueiro e trabalhador alugado antes de imigrar do Ceará para São Paulo nos meados da década de 1960.

A economia de Milagres desde o século XIX, data da fundação do município, tinha como principais bases a agricultura e a criação de gado. Na agricultura destacava-se a produção de algodão, mandioca e cana-de-açúcar. O município de Milagres possuía as melhores áreas agricultáveis do sertão do Cariri, além disso a abundância de fontes de água e a existência do Riacho dos Porcos um dos rios que formam a bacia do Rio Salgado permitia o cultivo de cereais e uma ótima produtividade para os proprietários locais.

No entanto, apesar dessa riqueza do solo e da abundância de água, a concentração de terras nas mãos das poucas famílias abastadas da região inviabilizava uma vida material estável para os trabalhadores locais. Esses trabalhadores viviam sujeitos a morarem de favor nas terras dos latifundiários e se sujeitavam a prestar serviços a estes proprietários para não serem despejados da terra.

Conforme Maria de Lourdes Gonçalves Guimarães (2019):

 

Compreendemos enfim, ‘o morador de favor’, como aquele indivíduo que com sua família de tempos em tempos, tende a vagar de propriedade em propriedade em busca de ‘recursos produtivos’ e especificamente de um pouso, ‘a casa do morador’ mesmo consciente de poder ser esta, temporária. É um desapropriado da terra. Sendo assim, nessa condição, de morador de favor (de condição ou foreiro), passa a dispor de forma controlada desses recursos, a terra e muitas vezes, os próprios instrumentos de trabalho, como a enxada, a foice, o machado etc., que podem pertencer também ao proprietário. É estabelecido um contrato mesmo implícito, cujas cláusulas são do conhecimento de ambos, e mantido até que essa relação desigual garanta ainda que de forma precária, a própria sobrevivência e a da família do morador, que como um círculo que se reproduz e passa depois a constituir outros núcleos familiares de moradores submetidos à condição original, compreendido muitas vezes como se isso fosse natural. É de favor, por quê, independentemente de qualquer coisa, a manutenção dessa relação depende sempre da benevolência do proprietário. (GUIMARÃES, 2019, p.29).

 

Essa era condição dos milhares de trabalhadores rurais de Milagres desde o século XIX. Conforme a mesma autora que estudou as relações de trabalhado no município, estes moradores de favor ficavam sujeitos economicamente e politicamente aos donos das terras. Ser um morador de favor significava submeter-se aos acordos políticos dos latifundiários com seus aliados no estado do Ceará ou mesmo em nível federal.

O morador de favor não possuía direitos sobre a terra, nem tampouco liberdade de opinião política, para garantir sua sobrevivência e a da sua família trocava ou vendia sua força de trabalho pela permanência na terra de alguém morando provisoriamente, ou em caráter relativamente definitivo, até que um dia o dono da terra se descontentasse com o seu serviço ou passe a nutrir antipatia pelo trabalhador ou alguém de sua família.

Essa também era a condição da família de Bilinguim quando este veio ao mundo em 1941 e sob esta condição que ele crescerá e a se sujeitará enquanto viver em Milagres. Mais tarde essa condição de trabalhador rural que apenas possui sua força de trabalho para vender, trocar ou alugar repercutirá em sua arte.

Como um município de economia agrária e com alta concentração de terras nas mãos dos latifundiários locais, os índices de pobreza e miséria em Milagres sempre foram altíssimos. Nas décadas de 1940 e 1950, quando Bilinguim viveu sua infância e juventude, somava-se a esta pobreza da classe trabalhadora rural o analfabetismo atingia 85,8% dos habitantes do município.

Até princípios da década de 1960 só existia em Milagres duas escolas, uma delas era privada, pertencente a Congregação das Irmãs de Santa Tereza, depois assumida pela Irmãs Filhas de Santana que a transformou em Patronato e Escola Normal Dona Zefinha Gomes, (igualmente privada); a outra era uma escola pública que não chegava a suprir toda a demanda da população por educação, uma vez que 58% dos habitantes de Milagres eram jovens entre 6 e 17anos.

Bilinguim teve o privilégio de aprender a ler e escrever, coisa rara para um filho de trabalhadores rurais no Ceará da década de 1950 e 1960. Frequentou as aulas da escola pública que havia e logo aprendeu o suficiente para ler na cartilha e escrever cartas, não avançou além da 4ª série do ensino primário, mas como sempre fora um menino de rara inteligência soube usufruir do pouco que aprendera na escola para desenvolver outros saberes e assim enriquecer sua arte.

João Pereira de Andrade como foi batizado na igreja de Nossa Senhora dos Milagres pelo padre Joaquim Alves em 20 de janeiro de 1942, começou a trabalhar muito cedo ajudando o pai na lavoura. Era um menino negro que vivia atrás do pai, este era vaqueiro do proprietário das terras do Sítio Junco onde a família de Bilinguim vivia, além de vaqueiro o pai de João Pereira de Andrade cuidava da lavoura e trabalhava alugado.

A vida dos trabalhadores rurais do interior do Nordeste brasileiro se organiza em torno do trato com a terra e daquilo que nela se planta. No Vale do Cariri, sul do estado do Ceará, os principais cultivos eram milho, feijão, mandioca.

O trabalho na terra se dava ao longo do ano. Começava com o desmatamento de uma área de serra ou morro que se pretendia cultivar, pois geralmente as várzeas do vale estavam cultivadas com cana-de-açúcar para serem moídas nos engenhos de rapadura, que no período em que viveu Bilinguim eram particularmente numerosos em Milagres.

Esperando que o ano seguinte seria de boas chuvas, os trabalhadores rurais desbastavam uma área de mata, depois limpavam essa terra desmatada utilizando a técnica da coivara. Após as primeiras chuvas em fevereiro ou março plantavam milho, feijão, jerimum, favas, melancia. Se as chuvas fossem boas poderiam colher as primeiras safras de feijão ainda em abril, no caso de chover ao longo do mês de março e abril teriam oportunidades de plantar cerais para colher no mês de junho.

Junho representava o principal mês da colheita. Era a época de se colher o milho, o feijão, a fava, o arroz. Era um mês de boa fartura, o tempo das festas juninas era celebrado como o período de maior abundância de alimentos para esses trabalhadores, o mês em que se alegravam nos bailes em torno das fogueiras dos seus santos prediletos.

Essas festas, essa fartura, esses bailes, as músicas e danças presentes nas festividades coletivas de junho será rememorada no baião de Luiz Gonzaga e no baião do Jonas de Andrade e do seu Trio Nortista. A vida desses trabalhadores se alegrava quando havia essa relativa fartura, mesmo sabendo que teriam de entregar uma parte do que fora produzido por eles aos donos da terra, ainda assim viam motivos para festejar as boas colheitas, resultado de quando ocorriam boas chuvas nos três primeiros meses do ano.

Inspirado nas bandas cabaçais, nos pifeiros, nos zabumbeiros, nos sanfoneiros que via e ouvia tocar nos bailes do sertão Bilinguim vai acalentar o sonho de ser ele também um artista. A música negra praticada no sertão, no Vale do Cariri cearense será uma das grandes influências sobre a arte de Jonas de Andrade, o nome artístico que mais tarde Bilinguim adotará para assinar seus LP’s.

Ao ouvirmos suas músicas é possível acompanhar além da sanfona, instrumento que adotou para si inspirado no seu mestre, o desbravador Luiz Gonzaga, a brilhante música dos pífanos presente nas suas mais belas canções, a batida forte e intensa da zabumba e o compasso do triângulo marcando magistralmente a raízes ancestrais de sua música.

Pertencente a uma família de trabalhadores rurais negros, Bilinguim se fará um artista negro, tal qual o seu mestre Luiz Gonzaga. No começo dos anos de 1960, ele, o irmão e mais um primo criaram o primeiro grupo de forró, o Trio Graúnas do Cariri que se apresentava nas festas e bailes locais.

Cantando músicas de Luiz Gonzaga o Trio Graúnas do Cariri animava os folguedos e festas em Milagres e municípios próximos. Em 1966, Bilinguim imigrou para São Paulo e lá teve oportunidade de conhecer Luiz Gonzaga e Dominguinhos, foi assim que aconselhado pelo mestre Rei do Baião e pelo instrumentista Dominguinhos que para o seu conjunto musical o nome de Trio Nortista.

Em 1971, o Trio Nortista lançará seu primeiro disco, já com o nove nome, “Encontrei tu.” Desse disco faz parte o baião “Jardim colorido”:

No meu jardim tem uma rosa
Tem uma rosa no meu jardim
No meu jardim tem muitas flores
Foi meu bem que plantou pra mim

Lá tem rosa e açucena
Tem cravo branco e até jasmim
Mas a rosa é a mais linda
É a rainha do jardim

Jardim assim é bom
Jardim cheio de flor
Jardim colorido
Jardim do meu amor.

A letra é de Zé Lagoa, o compositor pernambucano de Macaparana, cujo nome verdadeiro era Rosil Cavalcanti e que foi letrista também de Luiz Gonzaga e Jakson do Pandeiro. A música é de Jonas de Andrade e dos companheiros do Trio Nortista, seu irmão e seu primo.

A música é um baião, e nela ouvimos as influências estéticas e culturais de Jonas de Andrade. Sendo sua maior influência artística o mestre Luiz Gonzaga vamos encontrar ao longo da discografia de Bilinguim uma série de intertextualidades da música dele e do Trio Nortista com a do Rei do Baião.

O baião é um ritmo musical africado com origem no lundu que chegou ao Brasil com a diáspora africana, isto é, homens e mulheres negros traficados para o Brasil trouxeram o ritmo e os instrumentos musicais nele empregados para o nosso país.

Neste texto chamamos de baião lírico as músicas de Jonas de Andrade com o Trio Nortista cujas letras façam referência ao bucolismo sertanejo, ao amor, aos bailes de São João, aos costumes do sertão, ao cotidiano do homem nordestino. Nesse baião lírico predominam os arranjos poéticos do pífano acompanhando a sanfona e com o triângulo marcando o compasso da música e a zabumba percutindo.

Observemos como os músicos do Trio Nortista desenvolvem os arranjos para a letra de Zé Lagoa:


Imagem 2. (FOTO | Criação do autor).


A música principia com um allegro assai, (muito rápido), marcado por cinco notas acima da primeira e da segunda pauta, o compasso é de quatro batidas nas duas claves e os instrumentos executam as notas com brio para que o baião se revele imediatamente como uma música dançante, antes de ouvirmos a voz do intérprete da canção que é o próprio Jonas de Andrade, ouvimos os músicos do Trio Nortista atacarem um côco.

O côco é um dos ritmos musicais que entrará ainda com Luiz Gonzaga na composição do baião. Sua instrumentação é feita com zabumba, triângulo, pandeiro e ganzá. Tais instrumentos serão muito explorados por Jonas de Andrade e seu Trio Nortista nas suas composições. O bater do pé no chão também é um hábito típico dos que cantam e dançam o côco, tal hábito também é perceptível na execução da música Jardim Colorido.

Ao principiar a música com um coco, ouvimos os instrumentos característicos do baião de Gonzagão, isto é, o Trio Nortista manteve aqui os elementos tradicionais da música nordestina, misturando o côco e o xote compôs seu baião lírico.  Ao longo da música o xote é sustentado pelas notas executadas pela sanfona, a zabumba, o triângulo e o gonguê, são estes instrumentos que criam os arranjos magistrais para a canção de Zé Lagoa.

O baião lírico, música cujos temas são as paisagens e costumes do Nordeste, o amor pela cabocla, a morena, a preta sertaneja, os sentimentos de nostalgia pela terra, o povo, os hábitos do passado, será recorrente na discografia de Jonas de Andrade e do Trio Nortista.

Ao longo da carreira artística de Jonas de Andrade foram gravados treze discos, doze ele gravou como o Trio Nortista, o último trabalho gravado dez anos (1994) depois que o trio se desfez, aparece apenas identificado apenas por Bilinguim. Em todos esses álbuns podemos ouvir a presença dos temas do baião lírico.

No primeiro disco “Encontrei tu” de 1971 temos as seguintes músicas cujos temas líricos se sobressaem: Encontrei tu, O cheiro da menininha, Sanfona triste, Não vou chorar, Ingratidão. No álbum de 1972, “Cantinho do amor” a quase totalidade das doze canções que estão no disco falam do amor e de temas nostálgicos. Destaque-se a canção Marieta, um baião lírico que se desenvolve por meio da sanfona, do triângulo, pífanos e ganzá. Já a música Ceará de Iracema é um xote nostálgico que ecoa as saudades do compositor do estado Natal.

O disco “Canta Jonas de Andrade” de 1973 profusamente os temas nostálgicos: as festas de São João, as paisagens do Norte, os tipos do sertão, a fé e a religiosidade do Cariri, principalmente Juazeiro do Norte. Na música Noite de São João, Trio Nortista executa um baião que descreve a fartura do mês de junho no Nordeste: na letra da canção ouvimos falar de milho assado, batata, quentão, feijão, ouvimos falar também da alegria do povo sertanejo pelo bom ano, provavelmente por causa do bom inverno.

Em 1975, Jonas de Andrade e o Trio Nortista gravaram o álbum “Cuidado com a língua” é neste álbum que se encontra o seu maior sucesso a música A velha debaixo da cama. No disco o Trio Nortista desenvolve um outro estilo de baião, estilo este que chamaremos de baião dialógico.

O baião dialógico caracteriza-se pelo evidente intensão de estabelecer um diálogo entre o intérprete da música e o ouvinte, isto é, a letra da canção desenvolverá com aqueles que a escutam uma intencionalidade evidente de se propor um diálogo para que a mensagem se complete.

Nas faixas do álbum “Cuidado com a língua” e “Cipó cheiroso”, ambos de 1975 percebe-se um intenso dialogismo, isto é, os temas procuram transmitir aos ouvidos mensagens que eles terão que completar de acordo com suas vivências pessoais e culturais.

Segundo o linguista Fiorin, um dos mais importantes estudiosos da obra de Mikhail Bakhtin “o dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dos enunciados” (2008, p.19), isto é, em um enunciado “estão presentes ecos e lembranças de outros enunciados, que com ele conta, com ele refuta, confirma, completa, pressupõe e assim por diante”. (p.21).

O dialogismo é fundamento da língua e sua presença se faz sentir em todos os enunciados, isto significa que este dialogismo não está ausente do que chamamos “Baião lírico”, mas por questões reflexivas preferimos salientar sua presença com mais intensidade na modalidade “forró safado” que é um tipo de música cujas letras transparece a intensão de comunicar ao ouvinte uma mensagem de duplo sentido, uma mensagem com evocações e sugestões eróticas.

No “Baião dialógico” o compositor utilizará recursos linguísticos para auxiliar no entendimento da mensagem subliminar proposta pela canção. Encontraremos neste tipo de música o humor, a ironia, a sátira, a cacofonia, as onomatopeias, os cacófatos, todos esses recursos serão utilizados para disseminar a polifonia ao longo da música.

O filósofo russo Bakhtin define o dialogismo como:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. (Apud FIORIN, 2008, p. 18)

Isto que dizer que numa situação comunicacional dialógica o emissor espera sempre pela resposta do receptor, evidentemente que esta é a característica essencial de todo processo comunicativo e o “Baião dialógico” cultivado pelo Trio Nortista nos dois álbuns de 1975, traz como principais motivos condutores essa intencionalidade comunicativa dialógica.

O “forró safado” já era cultivado por Luiz Gonzaga e outros intérpretes e compositores de baião nas décadas de 1950 e 1960. Um exemplo desse tipo de música são as canções ‘Derramaro o gai” (Derramaram o gás), “Xote das meninas,” “Forró desarmado,”. A cantora paraibana Marinês gravou várias músicas no estilo “forró safado”: Estaca nova, Língua do povo, Mulé de um, Negócio grande.

Todas estas músicas pressupõem uma situação comunicativa onde o ouvinte terá que completar a mensagem eximindo o intérprete ou compositor de tê-la dito completa, isto é, a responsabilidade de entender a mensagem de maneira erótica recairá sobre o ouvinte, uma vez que o compositor nunca disse nada diretamente. 

A intencionalidade dialógica pode ser observada na canção “O chevette da menina”:

Coitadinha da Ivete
Facilitou, estragaram seu Chevette
Mas coitadinho da Ivete
Em menos de uma semana estragaram seu Chevette.

Tá com a roda amassada
E a buzina tá quebrada
A carcaça da empenada
Arrancaram a instalação

Tá esquentando a bobina
Tá vazando gasolina
Olhe no chevette da menina
Essa semana todo mundo pôs a mão.

(Trio Nortista)

Temos aí uma clara mensagem de duplo sentido, aí estão em jogo os valores morais da sociedade a qual pertencem os envolvidos nas relações dialógicas. Neste baião da década de 1980 o autor da letra e o compositor da música brincam com a polissemia criando significados novos para as palavras: chevette, roda, buzina, carcaça, instalação, bobina, gasolina, atribuindo a elas uma conotação sexual, prática comum neste tipo de baião.

É uma canção de duplo sentido, portanto. De acordo com Preti o duplo sentido aguça a curiosidade e contribui para:

estabelecer um elo muito direto entre autor e leitor, comprometidos na significação dos vocábulos, dentro de uma tácita e tolerante aceitação da obscenidade disfarçada. (p. 103) Para a compreensão das possíveis intenções do falante em manifestar determinado significado “oculto” é necessário que entre ele e o destinatário haja pressupostos comuns a propósito do conteúdo do enunciado. (PRETI, 1992, p. 107).


O disco “Minha bodega” de 1983 é particularmente rico em músicas no estilo “Baião dialógico,” a canção que dar nome ao álbum de autoria do compositor Alcymar Monteiro possui no refrão os seguintes versos capciosos:


Se você quer tomar um mé
Mé temos, mé temos,
Beba logo essa mé

Observe a cacofonia intencional entre as palavras (forma oral e não culta da palavra mel) e o presente do indicativo do verbo ter (temos). Propositalmente a cacofonia procura dar aos versos uma conotação sexual, pois no interior do Nordeste (meter, meteção, meto, metemos), têm sentido erótico significando o ato sexual, a penetração fálica em outro órgão genital.

A primeira vista esse tipo de música pode parecer grosseira ou imprópria, mas ao analisarmos sua construção linguística e etnográfica percebemos que estas peças são produzidas dentro de um processo de resistência moral e cultural das classes mais baixas contra as imposições moralistas e moralizante do poder constituído, seja esse poder político ou religioso.

A vida em sociedade é tensa e conflituosa e tais tensões e conflitos emergem nas mais diferentes formas de expressão artísticas, nos gestos, na língua, no vestuário. Desse modo, podemos concluir que o “Baião dialógico” de Jonas de Andrade e seu Trio Nortista é uma tática de resistência contra as forças impositivas da moral e da censura que nas décadas de 1970 e 1980 fundamentavam a sociedade brasileira.

As canções de duplo sentido e de conteúdo erótico já eram cantadas na Idade Média europeia, e há relatos de sua presença nos teatros da Grécia Antiga e Roma Antiga. Eram cantadas também no Brasil do século XIX e começo do XX através das letras dos maxixes, das polcas e modinhas. Seu estilo é humorístico e satírico, objetiva quase sempre a expor de forma jocosa um valor moral ou inverter este valor.

O maior sucesso do Trio Nortista é o “Baião dialógico” A velha debaixo da cama. A letra da canção é de Geraldo Nunes, mas foi Jonas de Andrade e o Trio Nortista que criaram a música que acompanha a letra. A velha debaixo da cama é uma espécie de fábula sem moral no final, o compositor cria um encadeamento de frases onde se conta a seguinte história:

A véia debaixo da cama
A véia criava um rato
Na noite que se danava

O rato chiava
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um gato
Na noite que se danava

O rato chiava, o gato miava
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um cachorro
Na noite que se danava

O rato chiava, o gato miava
O cachorro latia
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um macaco
Na noite que se danava

O rato chiava, o gato miava
O cachorro latia, o macaco pulava
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um porco
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava
O cachorro latia, o macaco pulava
O porco fuçava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um bode
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia, o
Macaco pulava,
O porco fuçava, o bode berrava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um jumento
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia, o
Macaco pulava,
O porco fuçava, o bode berrava, jumento rinchava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um leão
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia, o
Macaco pulava,
O porco fuçava, o bode berrava, jumento rinchava,
Leão
Esturrava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criou uma cobra
A cobra mordeu o rato, mordeu o gato, mordeu o
Cachorro, mordeu
O macaco, mordeu o porco, mordeu o bode, mordeu o
Jumento,
Mordeu o leão...
"Mordeu a véia!!!... A véia!!!
- E o que que houve com a véia cumpadre?
- A cobra mordeu a véia, e a véia morreu... E é só
Isso... Que
Fica pior pra mim... Tchau gente! Fui!!!

Esta é a letra escrita por Geraldo Nunes, um conto cujos personagens vão se entrelaçando até o desfecho cômico. O estilo adotado é um texto cumulativo, a cada estrofe ou verso se acrescenta novos personagens e novas situações, para chegar-se à conclusão foi preciso trazer para o conto o personagem da serpente, símbolo da traição e do pecado tanto na cultura erudita quanto popular.

A serpente também possui significado fálico, como também vários dos animais enumerados na letra têm atributos masculinos, isto é, a ideia central da canção, posto que aparentemente infantil e ingênua é ainda intencionalmente erótica e conotativamente sexual.

Para acompanhar a letra de A velha debaixo da cama, Jonas de Andrade e o Trio Nortista criaram esta música:


Imagem 3. (FOTO | Criação do autor).


Observemos que a distribuição das notas nas pautas da partitura obedece ao ritmo frenético da música. Logo na abertura os instrumentos imitam uma grande gargalhada que será o leitmotiv que ouviremos pontuando a música, dessa forma sempre que o personagem a Velha introduzir um novo animal debaixo da cama ouviremos essa gargalhada criada pelos instrumentos.

O frenesi da música é magistralmente produzido por meio da instrumentação utilizada por Jonas de Andrade o Trio Nortista que é sanfona, ganzá, pandeiro, triângulo, zabumba, pífanos. O tom humorístico da letra da canção criada por Geraldo Nunes é mantido pela música de Bilinguim.

A Velha debaixo da cama, é um “Baião dialógico”, pois espera que o ouvinte complete a mensagem com suas vivências cotidianas. A música do Trio Nortista se comunica com o ouvinte por meio das notas mais altas na escala:


Imagem 4. (FOTO  | Criação do autor).

A voz de Jonas de Andrade que ouvimos após vinte segundos de abertura nos surpreende por ser a voz dos contadores de história, a voz dos cantadores do Nordeste, não é uma voz grave, não se impõe pelo virtuosismo vocal, destaca-se do meio dos instrumentos por ser crua, voz de vaqueiro aboiador.

Em 1994, o Trio Nortista e Jonas de Andrade gravou seu último dico juntos. O nome do álbum, Doutor cadê o trem, era composto por canções nostálgicas, como a que dar título ao disco, é uma música com letra do próprio Jonas de Andrade onde se pergunta insistentemente ao governador do estado do Ceará ou ao ministro dos transportes cadê o trem de ferro que fazia a viagem do Crato, cidade o Cariri cearense até a capital Fortaleza.

No disco também há o belo baião “Progresso com maldade” onde se questiona a modernização das cidades do sertão nordestino, questiona-se se este progresso é realmente bom para o povo sertanejo e a terra caririense.

Ainda em 1994, Jonas de Andrade gravou seu último LP, O Bilinguim, foi seu último trabalho. Em agosto deste ano visitou sua cidade natal, Milagres, chegou a compor uma música em homenagem ao seu torrão e em março de 1995 faleceu na cidade do Crato, onde fixara residência desde que retornara de São Paulo.

A música nordestina, a música brasileira foi enriquecida pela arte de Jonas de Andrade e o Trio Nortista ao longo das três décadas em que atuaram com seus “Baião lírico” e com seu  “Baião dialógico”, seguindo a trilha aberta por Luiz Gonzaga um dos grandes artistas negros do Brasil no século XX, Jonas de Andrade, ele também um homem negro, um nordestino imigrante, um trabalhador, um artista preto procurou fazer-se como uma voz de resistência cultural num Brasil dominado pelos valores moralistas e moralizantes, pela censura, pelo autoritarismo, pelo preconceito contra a arte e a música que não eram feitas pelos brancos, a arte e a música que não se prestavam a ser consumida pela elite e a classe média alinhada com os valores burgueses cosmopolitas.


Imagem 5. Trio Nortista, Jonas de Andrade no centro ladeado pelos seus companheiros Dandinho e Tiziu. (FOTO | Reprodução | Internet).


REFREÊNCIAS

Todas as letras das músicas de Jonas de Andrade e o Trio Nortista foram transcritas do endereço: https://www.letras.mus.br/trio-nortista/discografia/.

Correio da Manhã. Edição de 12 de março de 1972. Disponível em: https://caetanoendetalle.blogspot.com/2018/11/1972-luiz-gonzaga.html, acesso em 02/07/2023.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

GUIMARÃES: Maria de Lourdes Gonçalves. Os moradores de favor nos sertões, sujeitos da história: reflexões para o ensino, disponível em: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/552890

PRETI, Dino. A linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984 (2. ed. LPB, 2010).