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A educação das relações étnico-raciais e o ensino escolar no Ceará

 

Cartaz criado pelo CONSED para celebrar os 20 anos da criação da Lei n° 10.639/2003. (FOTO | Divulgação). 


Por César Pereira, Colunista

No ano de 2008, três anos após a criação da Lei n° 10.639/2003 esta passaria por modificações importantes, pois a sua abrangência seria ampliada com a introdução da obrigatoriedade de estudar a História e Cultura Indígena nas escolas.

No dia 11 de março de 2008, o Diário Oficial da União publicou a Lei n° 11.645 que modificava mais uma vez a LDBN/1996 que já havia sido modificada cinco anos antes com por meio da Lei n° 10.639/2003 que criou a necessidade de mudanças nas diretrizes e bases da educação nacional para se instituir nas escolas o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira.

Leiamos o texto da nova lei:

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o  O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o  O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o  Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2o  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília,  10  de  março  de 2008; 187o da Independência e 120o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad (Texto da Lei n° 11.6345/2008, Disponível em http://www.planalto.gov.br, acesso em 13 de junho de 2021).

O objetivo da nova lei não era substituir a de 09 de janeiro de 2003 que instituiu o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, seu principal objetivo como fica bem claro no corpo do texto é o de estender aos indígenas o direito de ter sua história e cultura igualmente abordadas no currículo escolar das instituições de ensino básico brasileiras.

No entanto ao fim do primeiro lustro da Lei n° 10.639/2003 não havia nenhum sinal de que a Secretaria de Educação do Estado do Ceará estivesse interessada em promover a sua efetivação, pois até o ano de 2007 as da ERER (Educação para as relações étnico-raciais) ainda eram desconhecidas como políticas antirracistas pelos docentes cearenses.

A Lei n° 10.639/2003 obtivera das autoridades cearenses em educação pouquíssima atenção institucional, os órgãos estaduais responsáveis pela estrutura e funcionamento da educação no estado pouco sabiam sobre políticas educacionais antirracistas. O papel da SEDUC até aquele momento se limitara a enviar orientações às CREDE’s/SEFOR, que por sua vez deveriam enviar orientações para as coordenadorias escolares a fim de incluir a ERER nos estudos das semanas pedagógicas de 2007 ou 2008.

Tais orientações eram vagas e chegaram às escolas apenas como sugestões de trabalho e não como projetos de estudos obrigatórios para serem desenvolvidos ao longo do ano letivo. Muitas escolas ignoraram as orientações, ignoraram principalmente porque desconheciam a Lei 10.639/2003 e a nova Lei 11.645/2008 era igualmente ignorada pelos educadores, gestores e coordenadores das escolas.

Outro fator que contribuiu para que entre os anos de 2008 a 2012 a ERER ficasse praticamente desconhecida das escolas cearenses foi à falta de preparo dos professores e coordenadores pedagógicos para desenvolver currículos e aulas voltadas para o ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena. Como praticamente não houve formações realizadas pelas secretarias municipais de educação e pela secretaria estadual de educação para compor bancos de formadores escolares sobre a ERER, o negro e o indígena continuaram a margem do cotidiano das salas de aula cearenses.

Apesar de o Movimento Negro atuar intensamente desde o ano de 2005 na busca de efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense, as ações desenvolvidas no período de 2005 a 2010 seriam pontuais. Tais ações não chegaram a atingir o corpo docente da rede de enino do estado e dos municípios o que ocasionou um enorme vácuo nas práticas de ERER na cultura escolar cearense por quase uma década após a sanção da lei em 09 de janeiro de 2003.

Ao final da primeira década do século XXI o negro continuava invisível nos currículos da escola cearense e nos materiais didáticos sobre a história do Ceará os relatos tradicionais onde a história dos afrocearenses aparece apenas limitada ao projeto de abolição no Ceará predominam.

O mesmo discurso que permeavam as produções didáticas de Batista Aragão nas décadas de 1980 e 1990 quando ao abordar a histórias dos pretos cearenses restringe-se sua participação na historiografia do Ceará ao breve capítulo sobre a abolição em 1884 e aos relatos sobre a suposta escassa mão-de-obra escravizada utilizada pelos proprietários de terra cearenses.

Um exemplo de material tradicional sobre a história do Ceará e que mantém o negro e o indígena invisibilizados na história do nosso estado é o manual didático Ceará, história para a construção da cidadania de Marlene Corrêa, editora FTD, primeira edição publicada em 2004, livro aprovado pelo PNLD/2004 e posteriormente muito utilizado no ensino de História Regional no ensino fundamental das escolas cearenses.

O livro foi amplamente aceito e suas sucessivas edições e reedições mostram que ele se tornou uma referência didática para os professores de História no Ceará durante uma década. O livro possui uma estrutura tradicional dividida da seguinte forma: Introdução; Vivendo e aprendendo; 1. O estudo da História; 2. O Ceará colonial; 3. No tempo dos imperadores; 4. O Ceará republicano; 5. Nossa cultura, nossas tradições. O indígena aparece no capítulo 2 e desaparece nos seguintes, o negro aparece nas páginas finais do capítulo 3 e não é mais citado no livro.

A representação do negro que a autora faz é estereotipada na figura do escravo que se submete a escravidão e aguarda pacientemente a redenção através das mãos dos abolicionistas brancos, o único negro citado no livro como personalidade história é Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar que é nomeado esporadicamente quando da greve dos jangadeiros de 1881.

Narrativa estereotipada, tais narrativas ao serem usadas pelo professor através manual didático no espaço das salas de aula em nada contribui para promover uma educação antirracista e nem tampouco incluir o negro e o indígena no cotidiano do ensino de história das salas de aula das escolas públicas do Ceará.

Assim mesmo após as DCN’s/2004 a educação cearense continuava a margem de um projeto efetivo de ERER e mesmo com a atuação do Movimento Negro a resistência daqueles que procuravam sustentar a crença de que no Ceará não havia negro e que não havendo negro era desnecessário uma lei cujo objetivo era promover uma educação antirracista continuava sendo eficaz e travando a efetivação da Lei n° 10.639/2003 no estado.

Sem nenhum preparo para abordar questões étnico-raciais os professores continuavam dando aulas a partir da perspectiva de uma história exclusiva da branquitude. Mesmo os conflitos escolares, isto é, os episódios de flagrantes práticas racistas no cotidiano escolar eram tratados apenas como indisciplina escolar.

Pois segundo Munanga:

(...) alguns professores por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala de aula como um momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz a nossa cultura e na nossa identidade nacional. (MUNANGA, 2001, p. 7-8).                                                          

Assim, de acordo com Munanga, é praticamente impossível promover uma educação antirracista se não há uma formação de professores que atuem na sala de aula como promotores de um ensino que construa uma mentalidade antirracista nos estudantes. Professores sem formação apenas repetirão os discursos segregacionistas da mídia e dos livros didáticos escritos pela branquitude.

O descaso da SEDUC-CE com a efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense, a precariedade dos materiais didáticos disponíveis e o despreparo dos professores e gestores das escolas para atuar de forma direcionada sobre a questão ERER Se tornarão ao logo das décadas de 2000 e 2010 empecilhos significativos que impedirão a introdução de uma prática de educação antirracista nas escolas cearense.

Em 2008 a historiadora Simone Souza reuniu vários outros historiadores cearenses para um projeto de fôlego editado pela Fundação Demócrito Rocha. Esse grupo de novos historiadores cearenses produziu o livro Uma Nova História do Ceará, nesse importante trabalho há um capítulo do historiador Eurípedes Funes intitulado Negros no Ceará, (Página 103 a 134). Ocorre nesse livro uma importante mudança de perspectiva com relação à presença do negro na história do Ceará, pois já não vemos mais a narrativa do negro passivo, da escravidão sem traumas, do branco escravocrata amigo do negro, do negro escravizado tratado como pessoa da família, narrativa que prevalecera na historiografia cearense do século XX.

Infelizmente o livro não chegou às escolas cearenses, não chegou aos professores da rede pública cearense e sua leitura ficou praticamente restrita aos professores universitários e aos interessados na história do Ceará. Mesmo assim as mudanças de perspectiva com relação à história do negro em nosso estado se intensificavam e vários pesquisadores instigados pela possiblidade de propor uma nova abordagem da questão da escravidão, da abolição e pós-abolição no Ceará, bem como da participação decisiva e o protagonismo evidente dos afro-cearenses na cultura e na história do estado começaram todo um processo de reescrita dessa história.

Ao longo da década de 2010 presenciaremos o aumento das pesquisas sobre a história do negro no Ceará. Em 2010 haveria um ganho importante para a população Cearense e em especial a população negra, seria instalada em Redenção, município da Zona Norte do estado à sede da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira).

A escolha de Redenção foi proposital, pois segundo uma tradição historiográfica do Ceará teria sido a primeira cidade do estado a abolir o trabalho escravo em 01 de janeiro de 1883. A partir desse momento começará a ocorrer um importante intercâmbio cultural e epistêmico entre o Movimento Negro Cearense, Movimento Negro Brasileiro e principalmente com os países africanos, pois vários estudantes das nações lusófonas da África vêm estudar no Ceará.

O número de pesquisadores sobre o negro, sua história e cultura no Ceará cresce em decorrência não somente dos estudos realizados na UNILAB, pois vários pesquisadores da Universidade Regional do Cariri (URCA) passam a dedicar sua atenção e pesquisas ao estudo da escravidão no sul do estado, dedicam também suas pesquisas ao estudo do protagonismo negro na cultura caririense.

A atenção das universidades volta-se também para a efetivação da Lei n° 10.639/2003 nas escolas cearenses. Durante a década de 2010 a SEDUC-CE e as secretarias municipais de educação serão cobradas para realizarem seminários, fóruns e formações pedagógicas voltadas para as ERER.

Incluir a História e a Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nos currículos das escolas do Ceará exige necessariamente uma reescrita da história do Ceará, pois a crença geral é a de que no estado quase ou não existem negros e nem tampouco índios. Logo a pergunta que os professores se fazem é esta – por que ensinar sobre um conteúdo que não interessa aos cearenses?

O absurdo dessa crença está no fato de ela haver se incrustado de tal modo na mentalidade cearense que vigora a falta percepção de uma população cearense amplamente miscigenada onde brancos, negros, pardos, índios, vivem harmonicamente, numa sociedade com pleno equilíbrio étnico, cujo alicerce é a aceitação mútua e a plena participação de todos os cearenses na estrutura social, econômica e política do estado.

Não há racismo no Ceará porque não há negro no Ceará, essa é a crença geral. Foi esse tipo de pensamento que sempre buscou travar as lutas negras em nosso estado, foi esse tipo de ideologia racista que procurou insistentemente impedir a efetivação da Lei n° 10.639/2003 nas escolas cearenses.

Procurando manter uma celebração do projeto de abolição da escravidão forjado pela branquitude a intelectualidade cearense invisibilizou o negro da história do estado, criou uma versão onde a população afro-cearense nunca está presente, uma história que ensina sobre negros passivos diante da escravidão, sobre intelectuais brancos que se revoltam contra a escravidão que envergonhava o Brasil perante as nações civilizadas, uma história que inventa heróis brancos para serem cultuado nas salas de aula.

A ausência do negro, sua história e cultura no cotidiano das salas de aula cearenses atravessou a primeira década do século XXI e foi pela década de 2010 adentro. Somente em meados dessa segunda década do século e devido às pressões do Movimento Negro, dos professores egressos das licenciaturas que a partir de 2008 passaram a ter na grade curricular de seus cursos a disciplina de História e Cultura Africana e Afro-brasileira e Didática do Ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, tudo isto foi importante para impulsionar o caminho para a efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense.

É neste momento que se desenvolve um mal-entendido sobre educação para as relações-étnico raciais nas escolas cearenses. Tal mal-entendido está no fato de que gestores e professores passam a comemorar o dia 20 de novembro, dia da consciência negra como sendo uma prática pedagógica inclusiva na escola. O dia 20 de novembro passa a ser estereotipado como o dia do negro e de sua cultura exótica.

Essa prática pedagógica que consiste em escolher o dia 20 de novembro para realizar algumas atividades escolares sobre a questão da escravidão no Brasil, geralmente atividades sobre a abolição da escravidão, composta de eventos ou aulas sobre o Quilombo dos Palmares, a capoeira, as danças folclóricas, as comidas baianas. Mas depois de passado o dia 20 de novembro a história do negro volta a cair no esquecimento para ser lembrada de forma apenas pontual e sempre voltada para a questão da escravidão ao longo do ano letivo;

Adotar ações pontuais ligadas exclusivamente ao dia 20 de novembro como sendo uma forma de cumprir a Lei 10.639/2003 é um engano e um autoengano a qual os professores e as escolas em geral se impõem. A lei como vimos instrui os docentes e autoridades em educação sobre a necessidade de que a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira devem fazer parte do currículo escolar e principalmente estarem devidamente distribuídas ao longo do ano letivo no ensino das disciplinas escolares. Nenhuma ação pontual satisfaz a lei e não a torna eficaz no seu maior objetivo que é o de criar uma prática de educação antirracista nas escolas brasileiras.

A programação dessas ações pontuais desenvolvidas nas escolas não somente do Ceará, mas da maioria das escolas brasileiras, restritas ao dia 20 de novembro ou a semana em que está inserida a data, é uma programação de carácter meramente expositivo e quase sempre apenas repete os estereótipos do senso comum sobre o negro na sociedade brasileira escravocrata do século XIX ou os estereótipos da sexualização dos corpos negros, principalmente do corpo da mulher negra.

Na rede social Youtube é possível encontrar registros dessas comemorações alusivas ao dia 20 de novembro nas escolas. Analisamos cinco desses vídeos para refletir sobre os procedimentos pedagógicos adotados nas escolas com relação à questão das ERER e como professores e gestores escolares interpretaram a necessidade de trabalhar a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira restringindo a efetivação da Lei n° 10.639/2003 e as DCN’s/2004 aos eventos esporádicos em uma semana de novembro.

No vídeo intitulado Thiago participando da coreografia da C.E. Prefeito Luiz Guimarães - Consciência Negra (escravos), publicado no endereço https://www.youtube.com/watch?v=NLHivoDNn1E, fotos capturadas abaixo nas figuras 4 e 5 adolescentes fantasiados de escravos encenam uma coreografia da escravidão. Vestidos com calças brancas de algodão, meninos negros fazem mímicas de negros acorrentados que de repente quebram os grilhões da escravidão enquanto uma banda marcial toca músicas para que eles desfilem seminus no centro da cidade logo atrás de meninos brancos vestidos de colonizadores.

Para a mentalidade da branquitude o negro não tem história além da história da escravidão narrada nos livros didáticos aos próprios estudantes negros, ela é responsável pela mentalidade que ver nos pretos apenas coadjuvantes de uma História predominantemente branca. Conforme podemos observar na Figura 3 ensinamos nas escolas que o preto só aparece como trabalhador escravizado na história nacional. Conforme (MUNANGA, 2008), a elite que sustenta esse tipo de ensino de história impõe a ideologia de que o Brasil não é branco, nem tampouco negro, o país é miscigenado e o negro e o índio contribuíram para a formação dessa nação. É ainda segundo (MUNANGA, 2008) o discurso racista que atribuí ao banco o protagonismo na nossa História e ainda uma vez mais afirma que negros e indígenas tiveram papel político relevante nela. A ideia de um Brasil miscigenado mais uma vez tranquiliza a consciência racista da nossa elite e da nossa intelectualidade branca, pois garante algum lugar do escravo passivo para o negro na História e permite a crença de que o problema do país não é racial, mas unicamente social. Observemos as Figuras 4 e 5 que mostra a exposição pública de estudantes fantasiados de escravos e indaguemos: se não há racismo no Brasil, então por que as narrativas da branquitude sobre a história do negro no país se restringe a escravidão?

Segundo Prescyla de Fátima Vieira Venâncio:

Quando falamos em representatividade negra percebermos o quanto atualmente se vem falando sobre o tema, más muitas pessoas desconhecem o real significado e o efeito que trás na construção da identidade negra. Infelizmente a história da escravatura é abordada de forma a minimizar o impacto que a escravidão causou no negro “escravo”, no negro “escravo liberto” e o impacto que causa no negro “descendente de escravos”. (Representatividade como construção de identidade, Disponível em: https://www.geledes.org.br/representatividade-como-construcao-da-identidade/, acesso em 22 de jul. de 2021).

Atuando como mostra a Figura 4, a escola fortalece a imagem da escravidão ligada ao negro em vez de propor um amplo debate sobre essa parte nefanda da história do Brasil. As Figuras 4 e 5 mostram que não há nenhuma disposição de reflexão a intensão do desfile foi apenas mostrar o negro como escravo. A comunidade escolar não tendo compreendido o objetivo proposto pela Lei n° 10.639/2003, apenas reproduziu o discurso corrente de que a história do negro no Brasil se restringe basicamente aos anos de escravidão e as suas contribuições (na linguagem racista) com algumas danças e costumes para a cultura brasileira.

Figura 4. Desfile cívico-escolar C.E. Prefeito Luiz Guimarães.  (FONTE | Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=NLHivoDNn1E, acesso em 13 de julho de 2021).

A imagem reproduz com evidência notória todos os estereótipos sobre o negro no Brasil. Através desse vídeo vemos que a associação entre negros e escravidão ainda prevalece, isto é, para os professores das escolas brasileiras, falar do negro é naturalmente falar sobre os escravos e o sofrimento da escravidão. Não há um posicionamento crítico ou reflexivo. A opção da escola em questão foi expor em via pública crianças e adolescentes fantasiados de escravos para abordar a história do negro.

Ao fazer essa exposição pública de seus estudantes vestidos como negros escravizados estereotipados o corpo docente da escola sustentou e manteve a narrativa tradicional, expôs uma história fictícia sobre a população negra brasileira e em vez de aproveitar o evento para problematizar o racismo estrutural e a negação da razão negra, trabalhou no sentido oposto, favoreceu ainda mais o discurso racista e fortaleceu o racismo estrutural do qual a própria escola comunga como instituição inserida dentro de uma sociedade racista.

A exposição pública de crianças e adolescentes fantasiados de escravos em nada contribui para a reflexão sobre a escravidão e as lutas contra ela no Brasil, observemos na Figura 5 como o desfile cívico apenas reproduz os estereótipos sobre o negro brasileiro.

Figura 5. Estudantes do C.E. Prefeito Luiz Guimarães participando do Desfile Cívico de 13/09/2008. (FONTE | Foto do Youtube, capturada em 19 de abril de 2021).

Este desfile ocorreu no ano de 2008, data em que o vídeo foi publicado, portanto em plena a vigência da Lei n° 10.639/2003 e quatro anos após a construção do documento das DCN’s/2004. O desfile é uma remontagem dos estereótipos das telenovelas sobre a população negra e sua função é evidentemente fortalecer a ideologia racista brasileira que sempre representa o negro na história nacional como escravo, nunca como protagonista de uma história de lutas políticas, culturais e de transformação social e econômica do país. O menino que protagoniza o vídeo é um adolescente negro que juntamente com outros foram expostos na rua diante da população da cidade e do palanque das autoridades como representações de uma história branca numa sociedade racista.

Os vídeos Escola em Pacajus comemora o dia da Consciência negra publicado em https://www.youtube.com/watch?v=9aF3XftKbCc, como também o vídeo Dia da Consciência Negra na Escola no Município de Potengi disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=_2XLbLmZoyk, são ambos de 2015 e repetem os mesmos estereótipos, pois são ações pontuais que elegeram o dia 20 de novembro para festejar alguns traços da cultura negra e expor publicamente as narrativas tradicionais sobre a história do negro no Brasil e no Ceará.

Figura 6. Comemoração do Dia da Consciência negra em Escola Municipal de Pacajus. (FONTE | Foto capturada pelo autor https://www.youtube.com/watch?v=9aF3XftKbCc, acesso em 13 de julho de 2021).


No caso das escolas de Pacajus, Figura 6, município da região metropolitana de Fortaleza, a secretaria de educação da cidade optou por uma programação voltada principalmente para exposição de elementos da cultura afro-brasileira e africana. Na fala dos professores engajados no projeto há alusão à produção de máscaras africanas, oficina de pintura corporal, danças como zumba e funk, além disso, um dos professores entrevistados pela reportagem informa que cada turma teria ficado com um aspecto da história dos negros ou da cultura africana.

Quando prestamos atenção nas falas dos docentes entrevistados no vídeo compreendemos que eles apenas criaram uma exposição do que os alunos produziram durante a preparação para o Dia da Consciência Negra, isto é, não houve um trabalho durante o ano letivo de 2015 para criar uma consciência antirracista na escola, trata-se apenas de mais uma ação pontual que foi proposta pela secretaria municipal de educação para o dia 20 de novembro.

E como observamos na figura 6, houve um equívoco na oficina de pintura corporal, pois as pinturas não reproduzem as pinturas corporais africanas, os adolescentes foram pintados com máscaras do cinema, no caso do estudante entrevistado que aparece no vídeo, ele diz que escolheu uma máscara de zumbi, provavelmente confundiu o líder quilombola Zambi dos Palmares com um personagem dos filmes de terror e ficção.

No município de Potengi localizado no sul do Estado do Ceará a Escola Antônio de Figueiredo Taveira escolheu uma programação também voltada mais para a arte do que para a história. No vídeo vemos os pré-adolescentes vestidos casualmente coreografando uma dança do ritmo baiano conhecido como axé. As meninas vestem-se com shorts curtos e elas dançam sensualmente para os meninos que as acompanham também com bermudas, a coreografia sugere uma sensualidade dos meninos e meninas negras que participam da dança.

Observamos que o espaço onde ocorre a coreografia está tematizado com cartazes sobre a história da escravidão e há toalhas com estampas africanas sobre as mesas. Mas apesar do esforço dos professores podemos compreender pela coreografia que mais uma vez houve um equívoco no entendimento sobre a efetivação da Lei 10.639/2003 e como aplicar as DCN’s/2004 no cotidiano da sala de aula.

Pelos materiais publicados nas redes sociais entre 2008 a 2019 que nós analisamos pudemos observar o despreparo dos professores e das escolas para trabalhar com as ERER. A falta de formações de professores promovida pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará e pelas secretarias municipais de educação inviabiliza a introdução do negro, da sua história e de sua cultura nos currículos das escolas cearenses. É importante destacar que Potengi é um município cearense que possui uma comunidade quilombola e um patrimônio histórico e cultural afro-brasileiro reconhecido institucionalmente pela SECULT (Secretaria de Cultura do Estado do Ceará), a saber, o Reisado e os Ferreiros de Potengi. As Figuras 7 e 8 mostradas abaixo mostram as escolhas feitas pela escola para comemorar o dia da Consciência Negra. São estudantes pré-adolescentes reproduzindo uma dança do carnaval baiano, mais especificamente o que eles fazem é reproduzir os passos criados pelo cantor Léo Santana e seus bailarinos de axé music.

Figura 7. Adolescentes de Escola de Potengi- CE coreografam dança baiana em 2015. (FONTE | Foto capturada pelo autor em 19 de abril de 2021). 

 

Observemos que na Figura 7 adolescentes fantasiados de escravos e índios e aparecem ao lado dos colegas que coreografam a suposta dança afro. Vemos que o equívoco da escola ao trabalhar os pontos da Lei 10.639/2003 foram muitos. Tal como já ocorrera nas encenações mostardas nas figuras 5 e 6 aqui as contradições e interpretações erradas sobre a cultura afro-brasileira ainda predomina. Isto acontece por causa da pouca preparação dada aos professores para trabalhar com educação antirracista nas redes estaduais, municipais e privadas.

Figura 8. Adolescentes de Escola de Potengi- CE coreografam dança afro em 2015. (FONTE | Foto capturada pelo autor em 19 de abril de 2021).

Até o ano de 2015 as formações de professores em ERER no Ceará foram escassas. Mesmo diante da necessidade de promover um amplo debate sobre a reorganização curricular e a criação de um projeto de educação antirracista na rede de ensino do Estado do Ceará e mesmo perante a obrigação de fomentar a adoção de projetos municipais de educação étnico-racial os envolvidos na criação de ações que dessem aos professores da rede estadual e municipal condições de abordar a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira a partir de uma perspectiva crítica e reflexiva permaneceram à margem de um compromisso profundamente engajado na efetivação da Lei n° 10.639/2003 no Ceará.

Sem preparação quase nenhuma para cumprir as diretrizes para uma educação antirracista estabelecida em 2004, os professores cearenses não têm como incluir uma prática efetiva de ensino antirracista nas suas aulas e as escolas não compreendem como criar um currículo antirracista. Diante dessas falhas das autoridades de educação do Estado do Ceará as ações pontuais se multiplicaram dentro das escolas e a ausência de uma proposta clara de educação antirracista no Ceará atravessou a década de 2010 mantendo assim o negro fora do currículo das escolas da rede de ensino de nosso estado.

Em 2015 finalmente a SEDUC-CE estruturou a realização de uma formação intensiva de professores da rede estadual e municipal sobre a ERER. A formação foi realizada na cidade de Fortaleza na modalidade presencial e semipresencial e contou com a participação do CEFOP (Célula de Formação Programas e Projetos).[1] O processo de formação de professores ocorreu entre agosto de 2015 a janeiro de 2016 e o objetivo era criar uma equipe de replicadores que levariam para os munícipios do interior do estado e para as CREDE, as orientações necessárias para viabilizar o ensino de Historia e Cultura Africana e Afro-brasileira na rede pública de ensino do estado.[2]

Para o curso foram disponibilizadas 150 vagas nas quais poderiam se inscrever os professores das escolas estaduais independente da disciplina que lecionassem. Do total de vagas ofertadas somente 125 foram preenchidas. Concluídas as inscrições os participantes foram redistribuídos em cinco turmas cada uma delas sob a responsabilidade de um tutor. Os dados do curso que estão disponíveis no site http://ead.seduc.ce.gov.br/course/index.php?categoryid=74, informam que os tutores responsáveis pelas turmas foram Jenilson Sousa Nogueira (CEFOP), Rosilene Aires (E. E.F. M Senador Osires Pontes), Viviana Cavalcante Pinheiro de Lima (CEFOP), Anna Maria de Lira Pontes (E. E. F. M Jáder Moreira de Carvalho), Antônio Alex Pereira de Sousa (E.E.F.M Polivalente Modelo de Fortaleza), portanto professores pertencentes ao CEFOP e também à rede estadual de ensino.

O curso de História e Cultura Afro e Indígena Cearense teve duração de 120 horas e foi dividido em dois módulos. A primeira etapa na modalidade presencial ocorreu em Fortaleza no dia 18 de setembro de 2015 e contou com a colaboração de professores convidados das universidades cearenses que realizaram seminários e oficinas visando preparar os participantes do curso para promoverem nas suas escolas e municípios a efetivação da Lei n° 10.639/2003 e a Lei n° 11.645/2008.

A etapa seguinte correu na modalidade a distância através da Plataforma da Secretaria de Educação do Estado do Ceará entre o período de 27 de setembro de 2015 a 31 de janeiro de 2016. Os conteúdos trabalhados no curso foram: 1) Percebendo a Identidade; 2) Reconhecendo o contexto; 3) Pensando o cotidiano; 4) Refletindo o currículo escolar e 5) Vivências e Práticas. Depois de mais de uma década de vigência da Lei n° 10.639/2003 essa foi à primeira formação contínua e não esporádica realizada pela SEDUC-CE com o objetivo de preparar os professores da rede de ensino de nosso estado para trabalhar as ERER no cotidiano da sala de aula e viabilizar as possibilidades de um currículo escolar antirracista nas escolas cearenses.

A realização de atividades escolares tematizando a educação para as relações étnico-raciais apenas de forma pontual, restritas apenas ao dia 20 de novembro, o silêncio das escolas do estado sobre a história e acultura dos afrocearenses e a falta de formações para os professores preparando-os para ensinar a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira no cotidiano de suas aulas revela que as escolas cearenses refletem os principais aspectos da sociedade do Estado do Ceará.

Assim percebemos que a escola é o espelho da sociedade brasileira estruturalmente racista, a escola cearense é igualmente um espelho da sociedade cearense igualmente racista. Como historicamente o negro foi invisibilizado e extirpado da história e da historiografia do Ceará, mesmo com o advento da Lei n° 10.639/2003 sua presença no Ceará continuou sendo negada durante mais de uma década após a promulgação da lei em 09 de janeiro de 2003. Foi preciso uma atuação política e pedagógica do Movimento Negro Cearense para que o negro passasse a ser visível na História do Ceará e dentro das escolas do estado.

O censo de 2010 mostrou que o Ceará possui uma população composta por aproximadamente 63% de negros (Pardos 61,84% e pretos 1,24%), isto significa que apesar do discurso da branquitude tentar impor a falsa narrativa de que no Estado do Ceará não havia negros, estes resistiram e compõem hoje a maior parcela da população cearense.[3]

Mesmo com uma população majoritariamente negra e com as escolas públicas frequentadas principalmente por crianças e adolescentes negros os currículos escolares no Ceará continuaram eurocentrados e promovendo a história e a cultura da branquitude como sendo o padrão epistêmico e estético natural.

REFERÊNCIAS

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra, Belo Horizonte, Autêntica 2009.

VENÂNCIO, Prescila de Fátima Vieira. Representatividade como Construção da identidade, Disponível em https://www.geledes.org.br/representatividade-como-construcao-da-identidade/, Acesso em 23 de jul. de 2021.



[1] Esta célula integra a estrutura organizacional da Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza – SEFOR. É constituída por uma equipe técnico-pedagógica que oferta assessoria aos profissionais da educação, ficando responsável por realizar encontros formativos, orientações e acompanhamento de ações pedagógicas nas escolas.

[2] Na sua dissertação de mestrado a professora Antônia Valdênia Araújo estudou as formações promovidas pela SEDUC-CE, para garantir a efetivação da Lei 10.639/2003 na rede pública cearense.

[3] Dados disponíveis em https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ce.html , acesso em 14 de junho de 2021.


A E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais e a lei n° 10.639/2003: resistência antirracista no cotidiano da sala de aula em Milagres – CE (2003/2020)

 

Escola Dona Antônia Lindalva de Morais na cidade de Milagres-CE, desde 2021 incluiu no seu PPP o projeto de um currículo antirracista. (FOTO |  prof. Emanuel Issacar).

 

“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda...”

(Paulo Freire)

Por César Pereira, Colunista

O acesso da população negra aos bancos escolares se democratizou ao longo da década de 1990 e 2000, mas essa democratização não afetou de forma generalizada a vida dessa maioria de brasileiros. Houve importantes ganhos sociais sem dúvida, pois o número de estudantes negros ingressando nas universidades também cresceu e a renda dos trabalhadores negros melhor qualificados também aumentou, mas o grosso da população preta do país continuou na miséria, sem falar que a violência contra o negro aumentou muito nesses primeiros vinte anos do século XXI.[1]

Mesmo tendo representado avanços consideráveis para a educação e a escolarização em massa da população brasileira a Lei n° 9.934/1996 possuía limitações que logo despertaram a atenção de movimentos sociais que desde as décadas de 1970 e 1980 vinham pleiteando políticas e ações específicas voltadas para a parcela da população brasileira que historicamente havia sido excluída da escola, dos processos educacionais e da própria História do Brasil. Esse grupo social excluído é formado principalmente pela população negra do nosso país.

Assim em 09 de janeiro de 2003 foi feita uma emenda na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN/1996) com a sanção pelo presidente da república Luís Inácio Lula da Silva, da Lei n° 10.639/2003 que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no cotidiano das escolas de todo o país. A aprovação e posterior sanção da lei fora uma vitória do movimento negro que vinha pleiteando o ensino do protagonismo histórico e cultural do negro na história e na cultura desde a década de 1980.

A LDBEN/1996 possibilitou a conquista do direito de escolarização para os filhos dos trabalhadores pobres e isso favoreceu o aumento do número de estudantes nas escolas públicas principalmente no ensino fundamental e isto massificou a escola já no começo da década de 2000, no entanto o ensino médio ainda apresentava baixos índices de escolarização, pois apenas 34,4% dos adolescentes entre 15 e 17 anos estavam matriculados no ensino médio (MEC/Inep/DTDIE, 2000).[2]

No interior desse contexto de massificação da escola pública e de proposição de novas políticas educacionais como também do ingresso massivo de estudantes negros no sistema escolar e das lutas históricas do movimento negro, é que emerge decisivamente na sociedade brasileira, a proposição de uma política educacional antirracista.

Essa chegada dos estudantes negros na escola pública garantida pela obrigatoriedade da oferta de vagas e matrículas no ensino básico não significou a imediata inclusão destes nos programas dos currículos escolares, assim é preciso analisar especificamente como os estudantes negros vêm sendo atendidos na escola pública ao longo dessas últimas décadas e compreender como o acesso desses novos educandos a escolarização transformou o cotidiano das salas de aulas e das escolas públicas.

Pensar as transformações que ocorreram na estrutura e funcionamento da escola pública e do ensino básico para que o negro, entender o processo político que atua para que o estudante negro deixe de ser apenas mais um sujeito pobre e desvalido acolhido dentro da escola e passe a ser o protagonista da sua história e da sua cultura é fundamental para a produção de escolas antirracistas e currículos escolares afrocentrados.

Desse modo é preciso refletir os seguintes problemas:

Quais foram às mudanças propostas para a educação básica pela Lei n° 10.639/2003, visando criar uma prática pedagógica inclusiva e antirracista nas escolas públicas?

Como ocorreu a inserção dos estudantes negros no ensino público no período de 1996 a 2020, tomando como base a Lei n° Lei n° 10.639/2003?

Como foi processo de efetivação da Lei 10.639/2003 dos estudantes negros na escola pública?

Para responder tais questionamentos me debrucei sobre o cotidiano de uma escola pública do município de Milagres-CE, a E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais meu local de trabalho, e a partir dessa escola pública e de Milagres, cidade do estado do Ceará cuja população negra segundo o censo de 2010 era de 73,4%.

Até o ano de 2009 o Governo do Ceará não dispunha de uma agenda política específica nem tampouco secretarias que buscassem promover a igualdade racial, somente a prefeitura de Fortaleza possuía uma Coordenadoria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (COPPIR) que fora criada ainda em 2007, a criação desse núcleo está vinculada a um decreto da prefeita municipal de Fortaleza Luiziane Lins, PT (Partido dos Trabalhadores), tal decreto é do ano de 2005 e foi uma das primeiras ações no Estado do Ceará voltada especificamente para a criação de meios que permitissem a aplicabilidade da Lei n° 10.639/2003 em escolas públicas da rede:

A Prefeita Municipal de Fortaleza, no uso das atribuições que lhe confere o art. 7°, inciso XXI, da Lei Orgânica Municipal (LOM), decreta: Art. 1° - Fica convocada a 1ª Conferência Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Fortaleza, a se realizar nos dias 01 e 02 de abril de 2005, sob a coordenação do Gabinete do Vice-Prefeito, com o objetivo de propor diretrizes ao Plano Municipal de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. Art. 2° - A 1ª Conferência Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial terá como tema central “Estado e Sociedade Construindo a Igualdade Racial” (...)[3]

O decreto que cria a Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial em Fortaleza é anterior à decisão da CEE-CE que baixou no final do ano de 2006 a Resolução 416[4]. O que podemos perceber é que as ações que o Estado do Ceará deveria assumir para si com o objetivo de cumprir a e fazer cumpri as Lei n° 10.639/2003 nas escolas de ensino público e privado cearense estavam ocorrendo lentamente.

Compreendemos que o combate ao racismo e a criação de um projeto de educação antirracista é uma política de estado e como tal só pode ser plenamente executada com a ação firme do governo federal, estadual e municipal. Tais políticas de estado devem criar um plano de ação, investimentos e organismos que desenvolvam ações e fiscalizem se tais ações e os recursos destinados às suas efetivações estão de fato produzindo resultados.

A demora em haver um engajamento visível por parte do Governo do Estado Ceará, Secretaria Estadual de Educação e da própria sociedade civil cearense demonstra que as resistências em aceita os termos da Lei 10.639/2003, explicava-se principalmente por causa do mito da não existência de negros no Ceará.

Essa falsa versão dobre a história do negro no Ceará, criada e sustentada por mais de um século, impediu que os milhões de negros cearenses tivessem sua história e suas lutas devidamente reconhecidas, impediu que o protagonismo afro-cearense fosse abordado nas salas de aula do ensino básico e agora estava de alguma forma barrando a necessidade de se efetivar a Lei n° 10.639/2003 e empreender-se um projeto de educação antirracista em nosso estado. Mas o Movimento Negro e outros grupos de atuação política na luta pela igualdad eracial e combate a discriminação e o racismo no Ceará, estavam atentos ao probblema e logo partiriam para a luta, com o objetivo de pressionar o governo cearense e os municípios de nosso estado a adotarem ações e agendas que promovessem a aplicação da Lei de 09 de janeiro de 2003 sobre ERER.

Em 2007 a SEDUC-CE, enviou as escolas da rede uma portaria recomendando que a escolas do estado e as secretarias municipais incluíssem em suas semanas pedagógicas a discussão da Lei Federal de 09 de janeiro de 2003 sobre a ERER. Na prática tal recomendação não surtiu nenhum efeito específico, pois se havia os documentos norteadores do MEC, do CNE e do CEE-CE, faltava o devido preparo de coordenadores e gestores escolares para empreender uma discussão mais sistemática e direcionar o corpo docente de suas escolas a cumprirem a lei 10.639/2003 e porem em práticas as DCN’S/2004.

Nos dois anos que se seguiram a portaria da SEDUC-CE, aumentou a pressão do Movimento Negro pela efetivação da Lei n° 10.639/2003 no Ceará e por mudanças estruturais no sistema de ensino cearense bem como nos currículos escolares. Grupos de defesa dos direitos da população negra e de combate ao racismo e a discriminação atuaram fortemente solicitando posições claras do Governo do Estado do Ceará e compromissos com relação à promoção de uma política antirracista no Ceará.

Na ata da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais arquivada na secretaria da escola e que traz o registro das atividades desenvolvidas durante a semana pedagógica de 2007, não há nenhuma menção de que tenha havido estudos sobre ERER direcionados aos professores de Ciências Humanas e suas Tecnologias e Linguagens e Códigos, as duas áreas do conhecimento que na época eram as que deveriam exercer maior atenção sobre as DCN’s/2004.

A ausência de qualquer registro sobre atividades pedagógicas de formações docentes relacionadas à Educação para as Relações Étnico Raciais na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais até aproximadamente o final da década de 2000, mostra o total despreparo da rede de educação cearense para satisfazer o disposto na Lei n° 10.639/2003 já devidamente complementada pela Lei n° 11.645/2008. Como as equipes pedagógicas das escolas da rede não sabiam de que maneira atuar para promover a educação antirracista na escola e os professores desconheciam as leis que amparavam essa prática pedagógica não tinham como mudar seus planos de aula nem tampouco criar abordagens novas da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena no cotidiano da sala de aula.

Desde o século XIX as relações de Milagres com sua população negra são problemáticas. Tendo sido o trabalhador escravizado no Ceará emancipado ao longo dos anos de 1883 e 1884, o município de Milagres resistiu ao projeto de emancipação das elites da capital da província e um acordo local entre a elite regional, o juiz de direito Joaquim do Couto Cartaxo e o político cratense Leandro Ratisbona manteve a escravização dos trabalhadores negros por pelo menos dois anos na cidade. O trabalhador escravizado só foi emancipado em Milagres entre o final do ano de 1886 e princípios de 1887.

Mesmo com uma enorme população negra e tendo sua identidade cultural ligada às africanidades, isso não impede que os negros do município de Milagres sejam marginalizados e pessimamente escolarizados. Vivem também de subempregos e relegados à miséria na periferia da sede municipal ou em trabalhos mal remunerados na zona rural.

Os dados do censo de 1940 para o município de Milagres apresentam números bastante destoantes com relação a sua composição étnica e demográfica. Segundo os dados levantados havia em Milagres 24.300 habitantes dos quais 18.244 se declararam brancos, 5.816 pretos, 194 pardos e um não declarou sua cor. Temos aí um indício evidente de que o racismo no município havia constrangido uma enorme parcela da população negra a rejeitar sua cor e identidade étnica e ao serem questionados, esses indivíduos, provavelmente pardos, entre se declarar pardo ou branco, optaram por autodeclarar como branco, pois ao aderir a essa categoria supunha estar livre do racismo.

Sabemos pelos dados posteriores dos censos de 1960 a 2010 que não houve grandes mudanças demográficas em Milagres no decorrer desses últimos cinquenta anos, pois a população que era de 24.300 pessoas em 1940 chegou em 2010 com 28.316 habitantes. Da população de Milagres de 10 ou mais anos, portanto em idade escolar, 201 se autodeclarou amarelo, 6.728 brancos, 3 indígenas, 15.623 pardos e 1.176 pretos, logo o percentual de pessoas negras com 10 ou mais anos em Milagres pelo censo de 2010 era de 71% chegando o percentual de negros a 73% do total geral da população milagrense, considerando todas as idades.

Como já demonstrei acima, a maior parcela da população de Milagres é composta de trabalhadores negros e pobres, sendo assim, quem passará a ocupar majoritariamente os bancos escolares das escolas públicas da rede municipal e estadual do município serão essas crianças e adolescentes pobres negros filhos dos trabalhadores rurais e dos trabalhadores urbanos que sobrevivem com baixíssima renda que lhes garante os subempregos disponíveis no município.

Temos em Milagres um exemplo de como o devir-negro no mundo atua na sociedade. O devir-negro segundo MBEMBE (2012), é aquilo de ruim, o preconceito, a segregação, razzias, guetos, violência institucional, epistemicídeo, genocídio, que lá nas sociedades organizadas em torno dos princípios do primeiro capitalismo era praticamente exclusivo ao negro, agora volta-se sobre “o lote de todas as humanidades subalternas” (MBEMBE, 2016), universaliza-se a condição do negro no capitalismo neoliberal do final do século XX e início do XXI.

O devir-negro no mundo atua sobre Milagres a partir do rápido sucateamento dos equipamentos de educação no município ao longo da década de 2000 e 2010, pois à medida que o número de alunos pobres e estudantes negros chegam ao ensino básico da rede pública as escolas perdem investimentos e a qualidade do ensino decai rapidamente.

Podemos perceber isto observando os baixos índices do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) do município de Milagres ao longo das duas primeiras décadas do século XXI. Os dados do IPECE (Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará) disponíveis em http://repositorio.ipea.gov..br, informam que entre 2004 a 2014 o IDEB de Milagres estava na faixa de 0 a 4%, isto é, entre os piores índices do estado e do Brasil. A qualidade do ensino público do município e avaliada como péssima e a aprendizagem dos alunos é muita crítica.

No caso específico da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais que pretendemos refletir aqui a partir dessa perspectiva necropolítica de Achille Mbembe, nós precisamos nos debruçar sobre os dados mais específicos sobre o corpo discente dessa escola. Para tanto tomamos como base os dados dos censos escolares das décadas de 2000 e 2010.

O censo escolar de 2005, cujos dados são mostrados na Tabela 1 pelo fato de ter sido primeiro realizado dois anos depois da Lei 10.639/2003 e quando já se vinha divulgando nas escolas as DCN’s/2004 nos permite tirar algumas conclusões importantes sobre a composição étnico-racial dos discentes da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais.

 

 

Tabela 2: Censo escolar 2005, alunos cor/raça E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais

Cor/raça

Autodeclaração

Percentual

Pardo

772

61,6%

Branco

361

28,8%

Preto[5]

104

8,3%

Moreno

14

1,1%

Mulato

1

0,07%

Loiro

1

0,07%

Total

1253

94,94%

Fonte: Arquivo da secretaria da escola.

Podemos perceber que a escola possuía um enorme contingente de estudantes negros, mas infelizmente estava despreparada para a chegada desses estudantes na sala de aula, chegamos a esta conclusão quando analisamos os planos de aula de Ciências Humanas e suas tecnologias. Vejamos o desenvolvimento de um plano de aula se Sociologia realizada no período de 07 a 25 de novembro 2005.

A professora assim descreve as atividades realizadas com as turmas de 1° ano médio da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais:

07/11: Atividades realizadas: [aula expositiva dialogada], individualismo e agressividade, apresentação [do tema].
14/11: Filme: ORFEU – Retratando a violência social e a sobrevivência. (2 aulas).
21/11: Apreciação e resolução da atividade referente a temática anterior.
28/11: Socialização da produção dos conteúdos da aula anterior[6]. (Grifo meu).

O plano de aula da professora em questão reflete especificamente uma realidade urbana, industrial, cujos valores econômicos, políticos e sociais do neoliberalismo já se firmaram profundamente na mentalidade dos adolescentes aponto de já ser considerado natural que precisam ser estudados na sala de aula sem uma necessária problematização ou reflexão crítica.

Nesse caso a professora não levou em conta a predominância de jovens da zona rural como o público mais numeroso na sua aula. Percebemos que a docente não tinha o preparo fundamental para compor uma aula que problematizasse as questões sociais, políticas e econômicas da realidade de seus alunos, isto é, em sua maioria meninos e meninas negros da zona rural, ou adolescentes filhos de trabalhadores pobres sobrevivendo com renda baixíssima advinda dos dias de trabalho alugado nas terras de algum fazendeiro local, ou de subempregos na zona urbana.

A professora está seguindo um livro didático completamente desvinculado da realidade dos seus alunos. Na aula de 14 de novembro ela exibe para seus alunos o filme Orfeu, filme brasileiro de 1999, dirigido por Cacá Diegues, adaptação da peça Orfeu da Conceição escrita em 1954 pelo poeta Vinícius de Moraes. O filme é uma releitura do mito grego de Orfeu e Eurídice. Estrelado por atores negros como Toni Garrido, Patrícia França, Isabel Filardis, Zezé Mota, Milton Gonçalves, Maria Ceiça, Léa Garcia, entre outros, presenciamos no filme a intensa presença de elementos da cultura e da história negra no Brasil.

Sem problematizar o filme com os alunos a professora volta sua fala especificamente para um discurso cordial sobre a questão racial brasileira, ela prefere o discurso do filme vinculado à crença na democracia racial, direciona seu olhar exclusivamente para um cotidiano estereotipado onde o negro é representado como pertencente a um universo de violência endêmica da qual a única forma de fugir é através do carnaval.

O lirismo e as táticas de resistência do negro contra o racismo presentes no texto original de Vinícius de Morais são desconsiderados em favor de um discurso sobre violência urbana no Rio de Janeiro, o elemento trágico que poeta concebera para fazer emergir a reflexão do espectador sobre a condição dos negros numa sociedade racista simplesmente não é levado em conta e a professora caminha facilmente com seus alunos para uma percepção de que tudo está permeado de violência e que o problema está entre os negros favelados das grandes cidades brasileiras.

As descrições do andamento do plano de aula permite-nos supor que a professora fez com seus alunos uma discussão a partir do filme, mas em nenhum momento ela alude aos elementos étnico-raciais presentes nele. Não chega a problematizar o fato da obra em questão haver escolhido personagens negros para encenar um mito da Grécia Antiga, todo o plano de aula desconsidera a presença em massa de adolescentes negros na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais, para considerar somente o óbvio, a violência urbana que vitimiza a classe média brasileira, pois esse é o discurso de fundo do filme Orfeu do diretor Cacá Diegues.

          Estamos diante de uma prática de racismo institucional dentro da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais. Segundo Sílvio Almeida:

O racismo institucional é menos evidente, muito menos identificável em termos de indivíduos específicos que cometem os atos. Porém alertam os autores [Charles Hamilton, Kawane Ture] para o fato de que o racismo institucional “não é menos destrutivo da vida humana.” O racismo institucional se origina na operação de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade e, portanto, recebe muito menos condenação pública do que o primeiro tipo. [racismo individual]...as instituições atuam na formulação de regras e imposição de padrões sociais que atribuem privilégios aos brancos ou a grupos sociais específicos. (ALMEIDA,2018, p.33-35).

Ao conceber aulas de História e Sociologia que privilegiam o debate sobre a violência urbana que os discursos racistas do cinema brasileiro e da mídia em geral vinculam estereotipadamente ao pobre e ao negro, os professores da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais levaram para as salas de aula da instituição as práticas do racismo institucional e promoveram as ideologias do racismo institucional brasileiro, contribuindo assim para a consolidação da visão negativa e discriminatória contra o negro.

Assim sendo, nenhuma dos professores da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais estava devidamente preparado em 2005 para trabalhar questões de educação antirracista, mesmo que a escola possuindo 71,07% de alunos negros.

          No censo escolar de 2012, quase uma década após a promulgação da Lei 10.639/2003 os números da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais são os seguintes:

Tabela 2: Censo escolar de 2012, alunos cor/raça E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais

Cor/raça

Autodeclaração

Percentual

Pardo

402

60,08%

Branco

171

25,56%

Preto

65

9,71%

Moreno

25

3,8%

Mulato

6

0,89%

Total

669

100%

Fonte: Arquivo da secretaria da escola

 

Ao longo do período de 2014 a 2018 houve diminuição no número de alunos atendido pela E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais. Isto se deu devido a implantação de uma unidade de escola profissionalizante em Milagres no ano de 2012. A partir de 2015 o número de alunos matriculados na escola se estabilizaria entre 450 a 470, as escola já funcionando em dois turnos, manhã e tarde, com cinco turmas de 1° ano e 4 turmas de 2° e 3° anos do ensino médio.

No letivo de 2018 estavam matriculados na escola 464 estudantes. Desses 67,45% eram da zona rural. Pertenciam às famílias de agricultores que sobreviviam de suas pequenas propriedades e da agricultura de subsistência ou trabalhavam alugado para algum proprietário rural local.

Uma grande parcela desses jovens são filhos de pais emigrantes (homens que saem de Milagres para ganhar o sustento de suas famílias em outras regiões) e as mães é que são os verdadeiros chefes da família, estimativas do Atlas Brasil informam que em 2018, 21,37% dos chefes de família em Milagres eram mulheres, a maioria dessas são de esposas de trabalhadores emigrantes que vivem em outros estados e regiões do país trabalhando para sustentar suas famílias.[7]

Segundo o censo escolar de 2018, dos 464 alunos matriculados na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais. 75,2% dos alunos se autodeclararam negros, isto é, 11,7& se autodeclaram pretos e 63,5% pardos. Apenas 24,8% se autodeclaram brancos.

Mestre Doca Zacarias sendo homenageado na Semana da Consciência Negra em 2021. (FOTO | prof. Jeremias Rocha). 

Outro dado importante desse censo é o número de alunos do sexo masculino na escola em 2018 era de 56% e de do sexo feminino de 44%. Desses alunos do sexo masculino 86% se autodeclaram NEGROS enquanto 14% se autodeclaram brancos. O percentual de alunas que se autodeclararam negras foi de 82% e 18% brancas. Como percebemos pelos dados levantados pelo censo escolar entre os jovens atendidos pela E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais a maioria dos estudantes dessa unidade de ensino são negros.[1]

Como vemos a maioria dos estudantes que frequentam a E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais são adolescentes negros e de famílias negras da zona rural do município ou das periferias da sede municipal.

Diante disso a partir de 2014 os professores da área de Ciências Humanas e Linguagens e Códigos, e mais especificamente os professores de História, Geografia, Filosofia e Sociologia da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais passaram a desenvolver uma série de projetos e ações em articulação com o núcleo gestor da escola para viabilizar um processo de integração desses estudantes negros na cultura escolar e trazer as práticas pedagógicas antirracistas propostas pelas DCN’s/2004 para o cotidiano da sala de aula.

Logo abaixo vamos apresentar um quadro das ações realizadas pela E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais entre 2014 a 2018 visando à efetivação da Lei n° 10.639/2003 e a articulação política dentro da escola em torno da proposta de uma prática efetiva de educação antirracista que considerasse as vivências, a história e a cultura dos estudantes negros nela matriculados.

Quadro 1: Quadro das ações em educação antirracistas desenvolvidas na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais entre 2014 a 2018.

Ano letivo

Ação

2014

Seminário Mulheres Negras do Cariri;

Festival da Cultura Raízes Negras Brasileiras;

O homem Kariri em Milagres;

Semana da Consciência Negra;

Aniversário de Mestre Doca Zacarias, 85 anos historiando;

2015

Projeto: A questão do Escravismo em Milagres;

Projeto: Pega do Boi no Mato na tradição dos vaqueiros de Milagres;

Projeto: Um som sem preconceito, o Funk na sociedade e a sociedade no Funk;

Semana da Consciência Negra;

2016

Projeto: Vidas Negras Importam;

Projeto: Penitentes de Milagres;

Projeto: A cor do teu preconceito;

Sarau Literário: Poema Negro, Cruz e Sousa e outras poesias negras;

Semana da Consciência Negra;

 

2017

Projeto: “Eram Todos bandidos”... O extermínio do negro no Brasil;

Projeto: Diálogos com a Juventude Negra;

Café Filosófico: O lugar do negro na democracia brasileira em construção;

Projeto: Deusas, candaces e orixás: a mãe África e seus filhos desterrados;

Semana da Consciência Negra;

2018

Projeto: Juventude Negra, movendo estruturas;

Projeto: Beleza Negra;

Projeto: Artefatos da Cultura Negra de Milagres;

Semana da Consciência Negra;

 

Fonte: Elaboração própria a partir do arquivo da escola

Com essas ações demonstramos que aos poucos o trabalho com a ERER foi se mostrando possível na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais ao longo da segunda metade da década de 2010. Evidentemente que estamos longe de realizar o projeto de educação antirracista proposto pelas DCN’s/2004, pois apesar de todas as ações desenvolvidas ao longo dos últimos cinco anos na escola, como enumeramos no quadro acima, tais práticas pedagógicas ainda que tendo motivado os alguns professores de outras áreas a se engajarem na luta pela efetivação da Lei n° 10.639/2003, ainda não se consolidaram como processos pedagógicos naturais do currículo escolar, ainda é preciso que a gestão da escola motive os professores e os docentes de história concebam as ações antirracistas para serem efetivadas em datas específicas do calendário escolar.

Apesar desses entraves, podemos afirmar que entre 2018 a 2021 houve uma aproximação maior do corpo docente da escola com relação à ERER. Formações de professores promovidas pela SEDUC-CE e pela própria escola desencadearam uma maior preocupação com a questão da educação antirracista na sala de aula e já foi possível observar no ano de 2020 e 2021 a presença de conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira, bem como das epistemes afrocentradas nos planos de aula dos professores da escola.

O aluno negro Jonas Moreira vencedor do Prêmio Beleza Negra 2022 e a diretora da escola a professora negra Ana Maria Nunes. (FOTO | prof. José Emanuel Issacar). 

Em 2021 finalmente após as reflexões realizadas entre 2019 e 2020, a comunidade escolar aceitou a sugestão de incluir no texto do PPP escola a proposta de um currículo antirracista. Atualmente esta proposta está em construção e até 2022 quando o novo documento estará pronto a E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais se afirmará como uma escola antirracista.

O aluno negro José Cícero vestido como Dom Pedro Quaderna no Festival do Caju de 2022 em homenagem a Ariano Suassuna. (FOTO | prof. Emanuel Issacar).


Em consonância com a fala da gestora da escola Ana Maria Nunes da Silva nós docentes da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais creditamos que a inclusão no PPP da escola das propostas pedagógicas das DCN’s/2004 ampliará a necessidade de aulas e ações voltadas para a prática de educação antirracista para as outras áreas do conhecimento e viabilizará finalmente um currículo voltado para a educação das relações étnico-raciais na escola, deixando tais ações de ocorrerem somente vinculadas a um grupo de professores específicos ou ao trabalho do grupo gestor que atua no momento na escola, tornando-se assim a própria essência e filosofia de ensino da instituição.

Chegamos à conclusão de que mesmo havendo garantido a vaga na escola pública e a matrícula obrigatória de crianças e adolescentes no ensino básico a LDBN/1996 não criou instrumentos práticos para viabilizar a integração de crianças e adolescentes negros no cotidiano da sala de aula e da cultura escolar. Seria preciso esperar quase uma década para a Lei n° 9.394/1996 fosse modificada pela Lei n° 10.639/2003 que estabeleceu a inclusão de práticas pedagógicas que possibilitassem a inserção da história e da cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar para que assim fosse promovida nas escolas uma pedagogia da diversidade e uma educação antirracista.

Conclui-se que na segunda metade da década de 2000 a SEDUC/CE não tinha ainda uma política especificamente voltada para o cumprimento da lei de 09 de janeiro de 2003 e que somente a partir da década de 2010 é que começaram a se interessar pela execução dessa lei nas escolas públicas da rede cearense. No entanto chegando ao fim da década de 2010 a efetivação da Lei n° 10.639/2003 ainda ocorre de forma lenta e pontual nas escolas cearenses.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio. O Que é Racismo Estrutural?  Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2018.

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade, a teoria da mudança social, São Paulo, UCP, 2014.

BRASIL, Legislação. Lei n. º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n. º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática" História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da União, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf

CHANDLER, Billy. Os escravistas Renitentes de Milagres. Revista do Instituto do Ceará - ANNO LXXX, Fortaleza, 1966, p. 166-176, 1984, disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Revapresentacao/RevPorAnoHTML/1966indice.html, acesso em 21 de julho de 2021.

GOMES, Nilma. Lino. Movimento Negro Educador. Petrópolis: Vozes, 2020.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra, Lisboa, Antígona, 2012.

________________Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2016.

Logotipo do Festival do Caju do ano de 2015 uma reflexão sobre as raízes negras da cultura brasileira. (Desenho da prof. Ana Ivyna Leite Lima).


[1] Todos os dados do censo escolar da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais estão disponíveis no arquivo da secretaria da escola.



[1] Mais da metade da população do Brasil se autodeclarou negra, preta ou parda no último censo realizado pelo IBGE em 2010. Desses brasileiros apenas 26 em cada 100 estudantes das universidades do país são negros. Apesar de ainda baixo esse índice, o acesso da população negra ao ensino superior aumentou 232% quando comparamos os dados de 2000 a 2010. Os dados constam no infográfico Retrato dos negros no Brasil feito pela Rede Angola, disponível em https://www.geledes.org.br, acesso em 05 de julho de 2021.

[2] Dados do relatório Educação para Todos, disponível em http://portal.mec.gov.br, acesso em 26 de outubro de 2020.

[3] Decreto Municipal n° 11.800/2005 convoca a 1ª conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial (CMPIR) e dá outras providências, disponível em https://www.cmfor.ce.gov.br/, acesso em 23 de maio de 2021.

[4] O documento conhecido como Resolução 416/2006 fundamenta como determinava a Resolução nº 1, 17/06/2004 como seriam efetivadas as práticas de educação antirracista e como seria a construção de um currículo escolar voltado para a Educação das Relações Étnico-raciais (ERER).

[5] Segundo a secretaria da escola em exercício e responsável pelos dados do censo escolar de 2005 os alunos ou pais escolhiam a classificação raça/cor na qual queriam se autodeclarar. Preto aqui segundo a secretaria refere-se aos alunos negros que não quiseram se autodeclarar pardos, mulatos ou morenos.

[6] Pasta a A-Z Ciências Humanas, 2005, arquivo da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais.

[7] Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/, aceso em 12 de abril de 2020.