Mostrando postagens com marcador Abecê da liberdade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Abecê da liberdade. Mostrar todas as postagens

Após repercussão, livro republicado pela Companhia das Letras que mostra crianças em navio negreiro, é retirado do mercado

 

(FOTO/ Reprodução).

A Companhia das Letras se manifestou em nota com um pedido de desculpas no último sábado (11), sobre a repercussão do livro infantil Abecê da Liberdade. A obra conta a história do abolicionista Luiz Gama, mas narra em primeira pessoa relatos de diversos momentos supostamente vividos por Gama durante a escravização na infância, como se não se tratasse de uma vivência traumática e amedrontadora, usando tons de ironia.

Lamentamos profundamente que esse ou qualquer conteúdo publicado pela editora tenha causado dor e/ou constrangimento aos leitores ou leitoras. Assumimos nossa falha no processo de reimpressão do livro, que foi feito automaticamente e sem uma releitura interna, e estamos em conversa com os autores para a necessária e ampla revisão”, diz um trecho da nota, que também afirma que a edição já está fora de mercado e não voltará a ser comercializada.

A obra é de autoria de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, com ilustrações de Edu Oliveira. A reimpressão foi publicada em 2020, sem alterações, e foram vendidas cerca de duas mil cópias em todo o Brasil. Mas, o livro foi lançado originalmente em 2015 pelo selo Alfaguara da Editora Objetiva, e automaticamente incorporado ao catálogo da Companhia das Letrinhas quando a Objetiva foi adquirida pelo grupo.

Em um trecho específico, o narrador conta em primeira pessoa como teria sido a viagem de Gama em um navio negreiro da África até a América quando criança, descrevendo brincadeiras como se os personagens estivessem em um ambiente leve. No entanto, se tratava de um espaço insalubre, com condições precárias e muitas mortes pelo caminho, não um local para brincadeiras lúdicas.

Eu, a Getulina e as outras crianças estávamos tristes no começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar de pega-pega, esconde-esconde, escravos de Jó (o que é bem engraçado, porque nós éramos escravos de verdade), e até pulamos corda, ou melhor, corrente”, diz o trecho, que também traz uma ilustração das crianças brincando.

Página do livro Abecê da Liberdade.

Em entrevista ao portal UOL, Marcus Aurelius Pimenta explicou que a produção do livro não foi acompanhada por nenhum especialista ou autor negro. Já Torero afirma que o livro é um romance histórico para crianças, uma obra de ficção, onde não há a busca de exatidão histórica.

Em suas redes sociais, o doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-RIO, Davi Nunes, que também é escritor do livro infantil “Bucala: a pequena princesa do Quilombo do Cabula”, opinou sobre o caso.

Os dois escritores antipretos fabulam, gozam, regozijam-se, romantizam toda a nossa desgraça, horror e violência extrema que vivemos nos séculos de escravidão e que vivemos até hoje nesse país”, escreveu “Há de se notar que quando a polícia chega na favela e atira em jovens e crianças negras como se fossem baratas, coisas, objetos descartáveis, esse imaginário sobre pessoas negras feito por esses escritores brancos já engatilhou a arma e o resultado a gente já sabe qual é. Ainda utilizaram o nome sagrado de Luiz Gama para propagar toda a perversão e violência que está entranhada no livro que escreveram”.

Editora Malê se desliga de projeto da Companhia de Letras

Com a repercussão do caso, a Editora Malê comunicou em nota nesta segunda-feira (13) o seu desligamento do projeto “Por uma escola afirmativa: construindo escolas antirracistas”, idealizado pela Editora Companhia das Letras e do qual participa um coletivo de editoras. A Malê edita literatura afro brasileira com o objetivo de colaborar com a ampliação da diversidade do mercado editorial brasileiro.

Entendemos como ofensiva à dignidade e à história da população negra brasileira a publicação “ABECÊ da Liberdade: a história de Luiz Gama” […]. O livro, voltado para as crianças, relativiza os horrores da escravidão e os horrores dos navios negreiros — conhecidos também como tumbeiros”, diz um trecho da nota.

A Malê reafirma o seu compromisso com as vidas negras, com uma educação antirracista — que se coloca anterior à questão mercadológica. Repudiamos a desumanização dos indivíduos negros na literatura e entendemos que práticas discursivas racistas (inclusive na literatura) refletem diretamente na permanente situação de vulnerabilidade à morte em que vive a população negra”, finaliza.

__________________

Por Andressa Franco, publicado originalmente na Revista Afirmativa.

Abecê da liberdade para deleite da casa grande

 

Escritora Cidinha da Silva (FOTO/ Elaine Campos)


Você conhece um escritor chamado José Roberto Torero?

___ Conheço sim, avaliei um livro de crônicas dele num concurso no ano passado.

­­___ E o que você achou?

___ Gostei muito, um dos melhores.

___ E os livros dele para crianças, você já leu?

___ Não, nem sabia que escrevia para elas. Por quê?

___ Porque uma colega historiadora aqui da UFRB mandou para a gente trechos absurdos de um livro que inventa cenas da infância do Luiz Gama dentro de um navio escravagista.

___ Sem novidades, mas me conta o tipo de absurdo?

­­­___ Ele e o outro autor deliraram uma brincadeira de roda para crianças que, se ali estivessem, estariam famintas, amarradas, aterrorizadas por todas as cenas cruéis e indescritíveis que vivenciavam. Mas, eles conseguiram descrever com humor mórbido (de criança para criança), a cena de alguém marcado por ferro quente. Essas romantizações que os brancos se permitem fazer da expropriação da humanidade dos negros que os brancos mesmos praticam.

___ O livro é novo? Lançaram agora?

___ Não é de 2015, parece. Reimprimiram.

___ E como é que deixaram passar esse descalabro?

___ De autor branco passa tudo, você sabe.

___ O que vocês vão fazer?

___ Vamos lotar a caixa da editora de reclamações, da Companhia das Letras.

___ Menina, uma no cravo, outra na ferradura.

___ Você quer ver o livro? Poderia escrever algo?

___ Não posso, estou completamente sem tempo, tudo atrasado.

___ Ah, pena!

Cinco dias depois dessa conversa com uma amiga, professora na UFRB, acordo com a notícia de uma nota pública da editora lamentando o erro e os constrangimentos causados – me perguntei se não seria o caso de ela, a editora, sentir-se constrangida por reiterar um erro que pode ter provocado efeitos deletérios à vida de milhares de crianças negras desde 2015, quando o livro foi lançado pelo selo Alfaguara Infantil (objetiva), editora incorporada ao grupo Companhia das Letras. Enfim, consideraram a crítica recebida “correta e oportuna” e prometeram convocar os autores (Torero e Marcus Aurelius Pimenta) para realizar “necessária e ampla revisão”. Tem também um comentário meigo sobre a atenção da empresa à mudança dos tempos.

O caso é que o tal “Abecê da Liberdade”, seria uma aberração em qualquer tempo (2021, 2015, 1915…), pois só uma mentalidade branca, completamente apartada da dor das outras pessoas e de noções rasteiras de direitos humanos conseguiria licença poética para devanear cenas lúdicas no interior de um navio escravagista. Faltaram sensibilidade, respeito, ética, acima de tudo, e teve de sobra olhar branco e abordagem racista que permitem a negação e, ou, o ingênuo desconhecimento da produção historiográfica séria e fundamentada sobre o tráfico atlântico.


Trecho do livro (FOTO/ Imagem retirada do site Cidinha da Silva)

Mas, de toda sorte, trata-se do mundo branco, feito pelos bancos, para os próprios brancos viverem confortavelmente. Imagino algum hipotético integrante negro da cadeia editorial que aprovou este livro-excrecência, seria o bode expiatório da narrativa. Entretanto, como está tudo entre brancos, o livro será modificado, reimpresso, venderá milhares de cópias e será adotado em programas institucionais importantes e lido por milhares de crianças. Querem apostar?

_______________

Por Cidinha da Silva, reproduzido no Geledés.