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Imagem mostra um homem branco, uma mulher branca e uma menina branca sentados e usando o celular. (FOTO | Reprodução Dmytro Zinkevych). |
“Sempre considerei fundamental conversar com meu filho sobre racismo. Desde que ele era bem pequeno procuro comprar livros com protagonistas e autores negros, porque acredito que esse diálogo aberto é essencial para a construção de um ser humano antirracista”, conta a jornalista e radialista Clariza Santos, de 32 anos, mãe do Pedro Luz, de seis.
O relato da jornalista contrasta com uma pesquisa inédita da Universidade Federal de Sergipe (UFS), intitulada “Como conversar com as crianças sobre raça e racismo: experiências de famílias brasileiras”, de autoria do psicólogo, professor e pesquisador das relações étnico-raciais e do racismo na infância Ueliton Moreira, que venceu, em 2024, na categoria doutorado, o 2º Prêmio Ciência pela Primeira Infância, do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI).
Ao
contrário da preocupação de Clariza, uma mulher negra que mora em Maceió (AL)
com o filho branco, o estudo revela que 53,3% das crianças brancas nunca
conversaram sobre racismo com os pais. Em contraste, a maioria dos pais de
crianças negras afirma tratar do tema com frequência.
Enquanto
a maioria dos responsáveis por crianças pardas (64,7%) e pretas (56%) afirma
abordar o racismo com frequência, mais da metade dos pais de crianças brancas
nunca discutiu o tema com seus filhos. O estudo envolveu 140 mães e pais com
idades entre 22 e 58 anos.
Clariza
relata que, por ser uma mulher negra e mãe de uma criança branca, já passou por
situações constrangedoras em espaços públicos. “Algumas pessoas já me abordaram perguntando ‘cadê a mãe desse menino?’
ou até assumindo que eu era a babá”, desabafa.
Para
ela, essas experiências reforçam a necessidade de ensinar ao filho desde cedo
que o racismo existe e deve ser combatido. “São
situações que não quero que se repitam e que reforçam a necessidade de ensinar
o Pedro a se posicionar – não apenas por ele, mas pelos outros também. Afinal,
a luta antirracista precisa de todos nós.”
Por que pais brancos evitam falar sobre
racismo?
Segundo
o pesquisador, há diversas razões que levam os pais de crianças brancas a
evitar conversas sobre racismo com os filhos. Moreira destaca que a principal
delas é a crença de que o racismo não é um tema relevante para crianças
brancas.
Para
ele, outro obstáculo é a ideia de que “somos
todos iguais”, baseada no mito da democracia racial. Além disso, explica
que pais que compartilham dessa visão costumam reforçar para os filhos que “somos todos humanos” ou “somos todos filhos de Deus”, evitando
qualquer discussão sobre raça e racismo.
“Muitas pessoas brancas ainda reproduzem e
perpetuam práticas racistas sem refletir sobre isso. Nossos achados sugerem que
as famílias brancas, em sua maioria, ainda não assumiram a responsabilidade de
enfrentar o racismo, enquanto as famílias negras, além de sofrerem com ele, são
as que mais buscam soluções para esse problema”, destaca.
O
especialista acredita que um dos principais fatores que explicam essa diferença
é a cor da pele das famílias, das crianças e dos pais. ”Geralmente, pais negros percebem que seus filhos estão expostos ao
racismo e à discriminação desde muito cedo, o que os leva a sentir a
necessidade de prepará-los para lidar com essas situações.”
Além
disso, o pesquisador diz que a maioria das crianças negras tem pais negros e a
própria vivência desses pais com o racismo faz com que busquem fortalecer a
identidade étnico-racial e a autoestima dos filhos, além de orientá-los sobre
como reagir diante de episódios de preconceito, intolerância e discriminação.
“Muitos pais negros conversam com seus filhos
sobre racismo e procuram desenvolver neles um senso de orgulho racial. Já nas
famílias brancas, a preocupação com o racismo é menor. Muitos pais de crianças
brancas acreditam que esse não é um tema relevante para seus filhos, pois
partem do pressuposto de que o racismo não os afeta diretamente”,
acrescenta.
Ainda
segundo o pesquisador, essa crença se trata de um equívoco, já que todas as
crianças fazem parte de um grupo étnico-racial e, no caso das crianças brancas,
seu pertencimento racial tem implicações diretas nas relações étnico-raciais e
na perpetuação do racismo.
“A ausência desse diálogo no contexto
familiar branco contribui para a manutenção das desigualdades raciais, tornando
ainda mais urgente a necessidade de incluir esse tema nas conversas desde a
infância”, defende.
Racismo na primeira infância
A
professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Lucimar Rosa Dias,
coordenadora do grupo de Estudos em Educação para as Relações Étnico-raciais
(ErêYá), aponta que o racismo afeta profundamente o desenvolvimento infantil,
gerando o que é chamado de “estresse
tóxico”.
A
educadora destaca que “temos crianças
muito pequenas, de apenas dois ou três anos, que já demonstram insatisfação com
a própria imagem. Elas não gostam do seu cabelo, da sua cor de pele e, em
alguns casos, expressam o desejo de mudar de família para fugir da experiência
dolorosa do racismo.”
No
entanto, para as crianças negras, a construção de uma identidade positiva é
dificultada pela falta de um trabalho sólido de valorização identitária desde
cedo. Como Lucimar observa, “as mensagens
que elas recebem não reforçam sua autoestima e pertencimento.”
A
professora destaca ainda como, na sociedade, as pessoas se tornaram insensíveis
à desigualdade racial, naturalizando a precarização da vida negra. Ela menciona
o exemplo de como “comovem-nos ao ver uma
criança branca pedindo dinheiro no semáforo, mas naturalizamos quando essa
criança é negra”, o que evidencia como o imaginário coletivo foi moldado
para aceitar a desigualdade racial.
Falta de diálogo sobre racismo impacta
desenvolvimento emocional das crianças
Segundo
a psicóloga Thamiris Camargo, da Clínica Revitalis, especializada no
atendimento de crianças, adolescentes e jovens, a compreensão das diferenças
raciais começa por volta dos dois anos.
“Nessa idade, as crianças já começam a notar
características físicas, como cor de pele e cabelo”, explica. Entre os três
e quatro anos, elas já começam a associar essas diferenças a estereótipos,
muitas vezes influenciadas pelo que veem na mídia ou ouvem em casa.
“Aos cinco ou seis anos, as crianças podem
compreender melhor o impacto dessas diferenças, mas isso depende bastante de
como os adultos ao redor abordam a questão da diversidade”, ressalta.
Para
a especialista, a ausência de conversa sobre racismo pode afetar
significativamente o desenvolvimento emocional das crianças. “Quando o assunto não é abordado, elas podem
crescer sem compreender as diferenças e sem aprender a respeitar a diversidade.”
Thamiris
alerta que a falta de diálogo pode gerar confusão e insegurança, principalmente
quando as crianças percebem que alguém é “diferente”,
mas não sabem o que isso significa. “Se o
racismo não for discutido, podemos acabar reforçando estereótipos e alimentando
a discriminação sem perceber.”
A
falta de representatividade positiva pode levar à internalização de
preconceitos. “Crianças negras podem se sentir
mal em relação à sua própria identidade racial se não encontrarem referências
positivas ao seu redor.”
Para
evitar isso, é essencial que os adultos, tanto em casa como na escola, abordem
o tema de forma aberta. “Isso ajuda as
crianças a desenvolverem empatia, a respeitar as diferenças e a se sentirem bem
com sua própria identidade.”
Desafios e avanços na educação
antirracista
Além
da importância das conversas sobre racismo no ambiente familiar, os primeiros
anos de escolarização são cruciais para abordar esse tema. A professora Lucimar
Rosa Dias aponta os principais desafios e as oportunidades de se tratar da
questão racial desde a educação infantil.
Para
ela, a base do trabalho antirracista na educação infantil começa na graduação.
Ela defende que todos os cursos de licenciatura deveriam ter uma disciplina
obrigatória sobre relações étnico-raciais, assim como ocorre com a Língua
Brasileira de Sinais (Libras). “Essa
disciplina deve garantir que os futuros professores compreendam e aprofundem
seus conhecimentos nesse campo teórico.”
Além
disso, para ela, é imprescindível que a formação inicial inclua metodologias
específicas para a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), adaptadas à
faixa etária das crianças, já que o trabalho com crianças pequenas exige uma
abordagem distinta da aplicada no ensino médio.
A
pesquisadora menciona que muitos professores ainda hesitam em abordar a questão
racial em sala de aula devido a receios e estruturas enraizadas. Por isso, é
necessário proporcionar ferramentas que ajudem esses profissionais a tratar do
tema com confiança e propriedade.
Assim
como em outras áreas do conhecimento, Dias ressalta que as questões raciais
estão em constante evolução, e os professores precisam acompanhar essas
mudanças.
Para
isso, é necessário que as secretarias de educação e os sistemas educacionais
ofereçam suporte adequado, incluindo a disponibilização de materiais
pedagógicos, como livros, brinquedos e até produtos específicos para crianças
negras, como cremes e pentes adequados para cabelos crespos.
Outro
ponto importante levantado pela professora se trata da necessidade de
sensibilização dos educadores. Muitos professores ainda hesitam em abordar a
questão racial devido a receios e estruturas enraizadas. Ela acredita que “é preciso oferecer ferramentas que encorajem
os professores a tratar a temática racial com segurança e propriedade,
garantindo uma educação verdadeiramente comprometida com a equidade racial”.
A
pesquisadora também menciona que no contexto da educação antirracista, os
materiais são indispensáveis. “Sempre
citamos a importância da literatura, mas, no caso das crianças pequenas, é
fundamental que trabalhem também com materiais não estruturados, como tecidos”.
Para
ela, outro ponto crucial consiste no acesso dos professores a materiais de
estudo. Não basta disponibilizar livros apenas para as crianças; os docentes
precisam de obras que forneçam subsídios teóricos e metodológicos para uma
prática pedagógica verdadeiramente antirracista.
A
especialista acredita que embora haja avanços significativos na implementação
da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino sobre história e cultura
afro-brasileira e africana nas escolas, a educação infantil ainda carece de
maior atenção. Ela lamenta a falta de visibilidade e investimento específico
para essa etapa.
Dias
acrescenta que, como em qualquer outro campo do conhecimento, “não basta ter boas intenções—é preciso
garantir equipamentos, formação contínua e espaços adequados para que essa
educação se efetive de maneira estruturada e eficaz.”
O que fazer para melhorar o diálogo
sobre racismo?
O
professor e pesquisador Ueliton Moreira destaca que abordar o tema do racismo
desde a primeira infância é um desafio para muitos pais e mães, mas é também
uma oportunidade de construir uma sociedade mais justa.
Moreira
defende que existem diferentes estratégias para inserir essa temática no
cotidiano das crianças desde bebês. Segundo ele, “nesse momento da vida, elas estão conhecendo o mundo por meio de vários
estímulos, como os estímulos visuais e auditivos”, o que torna essencial
verificar o que estão ouvindo e vendo ao seu redor.
Para
ele, uma das formas mais eficazes de trabalhar a consciência racial desde cedo
é garantir que a diversidade étnico-racial seja representada de maneira
positiva. “Será que a diversidade
étnico-racial está sendo representada de forma positiva nas imagens em que as
crianças têm acesso, nos seus brinquedos, nas suas amizades, nas pessoas com quem
ela convive?”, questiona.
Para
isso, ele recomenda a exposição a livros infantis com protagonismo negro e
indígena, além de animações e filmes que valorizem essas representações. “É fundamental que elas percebam essa
diversidade à sua volta e se reconheçam inclusive nelas”, acrescenta.
Outro
ponto fundamental, segundo o professor, é a importância de uma conversa aberta
sobre diferenças raciais. Ele recomenda que os pais abordem diretamente com as
crianças aspectos como cor da pele e textura do cabelo, de maneira didática e
acessível, incentivando o reconhecimento e a valorização da diversidade.
“Falar sobre diversidade, sobre diferenças
raciais, então falar com a criança, né? Olha, você tem uma determinada cor da
pele, outra pessoa tem uma outra determinada cor da pele… Então somos
diferentes”, exemplifica Moreira. Dessa maneira, os pequenos começam a
entender e respeitar as diferenças desde cedo.
Além
disso, é fundamental incentivar a inclusão e as amizades multirraciais,
sobretudo no ambiente escolar. Para Moreira, esse incentivo passa por valorizar
a participação das crianças em grupos diversos e em eventos que celebrem a
cultura e a história de populações negras, indígenas, ciganas e quilombolas. “É preciso deixar claro para as crianças a
nossa preocupação com a luta antirracista”, reforça o pesquisador.
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Publicado originalmente na Alma Preta Jornalismo.
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