Em
carta aberta, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos fundadores da Rede
Sustentabilidade, discorre que ele e mais seis membros do Diretório Nacional
estão deixando o partido por não concordar com o posicionamento autoritário de
sua líder maior, a ex-senadora Marina Silva. Soares critica as decisões de
Marina de apoiar o PSB e o impeachment contra a presidente eleita Dilma
Rousseff.
Publicado
originalmente no 247
"O fato de a REDE ser politicamente
dependente de Marina Silva, sua maior figura pública, se constituiu em um
fenômeno que, ao invés de ter se tornado menor ao longo do processo de
construção partidária, se acentuou ao longo do tempo. Na verdade, as decisões
estratégicas que foram conformando o perfil da REDE partiram todas de Marina e
apenas dela, desde a decisão de entrar no PSB até a decisão favorável ao
impeachment da presidente Dilma. Em cada um desses momentos cruciais, a maioria
da direção nacional simplesmente se inclinou em apoio às posições sustentadas
por Marina", escreve o antropólogo Luiz Eduardo Soares. Leia a íntegra
abaixo.
Por que saímos da REDE
Sustentabilidade
Passadas
as eleições municipais, seria importante que a REDE realizasse um balanço
político. Mais do que o exame dos resultados alcançados em sua primeira
participação eleitoral, trata-se de avaliar o percurso político até aqui tendo
em conta os propósitos que estiveram presentes na fundação do partido.
As
pessoas que se comprometeram com a construção da REDE, desde quando a
contestação às formas tradicionais de fazer política nos aproximou, tiveram em
mente a necessidade de um instrumento que fosse capaz de ajudar a mudar o
Brasil, reduzindo as desigualdades abissais, enfrentando o racismo estrutural,
lutando pelos direitos das sociedades originárias e das minorias, aprofundando
a democracia, por meio de ampla reforma política, lançando as bases para o
desenvolvimento sustentável e para o protagonismo da sociedade civil e dos indivíduos.
Junto aos princípios que afirmávamos, havia o claro repúdio às condutas que
evocam fins grandiosos apenas para justificar vilanias cotidianas,
invariavelmente definidas como os "meios" ou "males
necessários". Era evidente, para todos nós, que um pragmatismo desta
natureza – descolado de qualquer princípio – havia já conduzido à degradação da
política e a seu distanciamento dos valores republicanos.
Desde
então, a REDE tem se estruturado sobre um vazio de posicionamentos políticos.
Inicialmente, imaginávamos que esta lacuna poderia ser explicada pela
fragilidade do próprio partido, pela inexperiência de grande parte de seus
dirigentes e militantes e pela enorme diversidade interna que demandaria um
processo cuidadoso de construção de "consensos progressivos". A
experiência que tivemos nos foi demonstrando, entretanto, que o deserto de
definições a respeito de temas centrais nas disputas políticas contemporâneas
não era um subproduto de nossas limitações, mas o produto de uma postura
determinada que evita as definições, porque percebe que cada uma delas
pressupõe um custo político-eleitoral.
O
fato de a REDE ser politicamente dependente de Marina Silva, sua maior figura
pública, se constituiu em um fenômeno que, ao invés de ter se tornado menor ao
longo do processo de construção partidária, se acentuou ao longo do tempo. Na
verdade, as decisões estratégicas que foram conformando o perfil da REDE
partiram todas de Marina e apenas dela, desde a decisão de entrar no PSB até a
decisão favorável ao impeachment da presidente Dilma. Em cada um desses
momentos cruciais, a maioria da direção nacional simplesmente se inclinou em
apoio às posições sustentadas por Marina.
É
preciso sublinhar que Marina é uma liderança política com virtudes
excepcionais. Entre elas, a honestidade e a integridade de propósitos; a
capacidade de se conduzir em meio às disputas políticas sem realimentar a
lógica do ódio e da destruição do outro, ainda quando injustamente atacada; a
inquietude que a faz refletir sempre com independência e em sintonia com alguns
dos desafios de nossa época etc. Ao mesmo tempo, Marina possui, como todos nós,
limites relevantes e não lidera a REDE para que o partido assuma definições
políticas consistentes, parecendo preferir navegar em meio a uma sucessão de ambiguidades.
A maioria da direção nacional a acompanha nesta preferência, como em todas as
demais.
Por
conta da reduzida definição política, a REDE tem se construído como uma legião
de pessoas de boa vontade e nenhum rumo. Alcançada a legalização do partido,
foi precisamente essa característica que permitiu que muitos oportunistas e
políticos de direita identificassem na REDE um espaço fértil para seus projetos
particulares. O que ocorreu em todo o País, então, foi um mergulho da REDE em
direção ao passado e às tradições políticas que pretendíamos superar.
As
poucas decisões políticas tomadas nacionalmente pela REDE aprofundaram este
caminho. Nesse particular, cabe destacar a decisão favorável ao impeachment, em
que o partido aliou-se ao movimento que entregou o poder ao PMDB e a um grupo
político envolvido nas investigações da Lava Jato e comprometido em aplicar
políticas radicalmente contrárias ao que sempre supomos fossem os valores e os
objetivos da Rede.
Temer
chegou à presidência para impor ao País uma agenda regressiva e reverter as
poucas conquistas sociais do último período. Por mais desastroso que fosse o
governo Dilma (e o era) e por piores que fossem os crimes perpetrados por
políticos do PT (e muitos deles o foram concretamente), o fato é que não foram
esses os motivos que pautaram o processo de impedimento. Assim, por intenções
nunca explicitadas e sob a liderança de mafiosos, aprovou-se o impeachment,
condenando práticas até então comuns aos Executivos, na União e nos Estados, e
nunca antes destacadas pelos Tribunais de Contas como razão para a rejeição das
contas. De fato, os beneficiários do impeachment são mestres nos desmandos dos
quais setores do PT são aprendizes. O grupo hoje no poder, aliás, é muito mais
histórica e organicamente vinculado às práticas de corrupção e de apropriação
privada do espaço público, o que não isenta o PT de responsabilidade, mas
desmascara a hipocrisia que generaliza acusações e gera a ilusão perversa de
que, livre do PT, o Brasil estaria a salvo da corrupção.
Nós
resistimos o quanto pudemos e nos orgulhamos dos parlamentares que, mesmo
sofrendo ataques na REDE, mantiveram, com firmeza, sua posição contrária ao
impeachment. A direção nacional da REDE pretendeu se somar ao impeachment em
nome da bandeira, "Nem Dilma, nem Temer", indicando que o próximo
passo haveria de ser dado pelo TSE, com a cassação da chapa Dilma- Temer. Uma
estratégia tão inverossímil quanto ingênua e equivocada. A hipótese TSE só
haveria se o impeachment não passasse; só não via essa realidade quem não
quisesse – e não faltaram os alertas. Subsidiariamente, ao se posicionar em
favor do impeachment, a REDE minou sua interlocução com o campo no qual
nasceram seus ideais, ao menos aqueles expressos em sua carta de fundação.
O
que estava em curso, verdadeiramente, era um deslocamento político da REDE em
direção ao bloco hegemônico. Um exemplo desse fenômeno foi o lamentável
processo de aliança com o PMDB em larga composição conservadora em Porto
Alegre, onde poderíamos ter composto com Luciana Genro, do PSOL, que nos
ofereceu espaço na chapa majoritária e protagonismo na definição programática e
na composição de um eventual governo de corte reformador e republicano.
Depois
de um ano de existência legal e três anos de construção partidária, a REDE não
se posicionou sobre qualquer das grandes questões nacionais – sequer foi capaz
de formular uma crítica fundamentada ao governo Temer. Quando esboçou alguma
posição, ou proclamou platitudes, ou decepcionou, afastando-se dos compromissos
assumidos em sua fundação. O que disse a REDE sobre a economia brasileira e as
reformas propostas pelo PMDB e seus aliados: a previdenciária, a trabalhista e
a fiscal? E sobre o teto para gastos governamentais? Que reforma política o
partido propõe? Que políticas a REDE defende para a educação e a saúde? Qual
modelo de desenvolvimento sustentável propõe para o país, objetivamente? Qual
sua posição sobre política de drogas, aborto, reforma da segurança,
desmilitarização e o casamento homoafetivo? A sociedade brasileira não sabe o
que pensa a REDE, nem consegue situá-la no espectro político-ideológico. A
auto-indulgente declaração de respeito às diferenças internas não basta para
dar identidade a um partido e justificar sua existência. Pluralista,
internamente, o PMDB também é, o que, aliás, lhe tem sido muito conveniente.
O
mais grave é que há sentido no cultivo de generalidades e na indefinição
adotada como estilo e método. Lamentavelmente, a REDE está informando ao
distinto público de que lado está, na política brasileira. Paulatinamente, vai
se distanciando do campo progressista – sequer reconhece sua existência, o que
é outra forma de afastar-se dele. Custa-nos, depois de tantos anos dedicados a
esse sonho, mas é nosso dever admitir que antevemos, para 2018, uma inflexão da
REDE para o centro político, o qual, no Brasil de hoje, corresponde a
alinhamento ideológico indiscutivelmente conservador.
Um
partido cuja coesão depende exclusivamente de uma liderança, mesmo que ela
tenha a admirável e extraordinária dimensão humana de Marina, não é
sustentável. Sem um mínimo de consistência ideológica, sem posicionamentos
claros, não há como construir unidade que não seja pelo cálculo de oportunidade
ou por circunstâncias eleitorais, tão mais atraentes quão mais nos aproximemos
de 2018. Não é sustentável um partido cuja direção vota um tema chave para a
história do Brasil, o impeachment, sob o argumento explícito de que "não
podemos deixar Marina sozinha", tendo ela anunciado, na véspera, sozinha e
sem consultas, sua surpreendente posição favorável, depois de declarar-se
contrária ao longo de meses. Um partido que não faça sentido sem uma liderança
individual, torna-se refém de sua vontade e acaba sendo regido por lógica pouco
democrática, independentemente das intenções de todas e todos, por mais
sinceras que sejam as disposições democráticas, inclusive dessa liderança.
Acreditamos
que a tarefa, hoje, dos que percebem a necessidade de resistir à tsunami
ultra-conservadora e à temporada caça-direitos é contribuir para a articulação,
na sociedade, de uma ampla frente democrática e progressista, da qual,
tragicamente, a REDE está se auto excluindo.
Por
conta dessa avaliação, consideramos que nossa presença na REDE não faz mais
sentido. Permanecer, especialmente em um quadro onde o debate interno
substantivo é uma ficção, seria apenas legitimar um processo que, rapidamente,
repete a doença senil dos partidos.
Assim,
desejando que esta carta contribua para a reflexão interna da REDE e anime sua
militância em direção a um caminho diverso desse que nos parece frustrante e
melancólico, seguimos em frente, sem partido, mas com a mesma disposição de
lutar por nossos sonhos.
Rio
de Janeiro e Porto Alegre, 3 de outubro de 2016,
Luiz
Eduardo Soares
Miriam
Krenzinger
Marcos
Rolim
Liszt
Vieira
Tite
Borges
Carla
Rodrigues Duarte
Sonia
Bernardes