O
racismo dos brasileiros está na vida cotidiana, muitas vezes em atitudes sutis
e comentários aparentemente inofensivos. Essa realidade cria limites muito
palpáveis sobre as possibilidades e oportunidades das pessoas negras, podando
as opções de quem podem ser e até onde podem chegar na vida.
Não
é por acaso que uma das lutas atuais do movimento feminista negro é pela quebra
de estereótipos; por meio dos estereótipos e papéis sociais impostos para as
mulheres negras, a questão do racismo acaba empurrada para debaixo do tapete.
Onde há discriminação e exclusão, levanta-se uma falsa admiração, que na
realidade é objetificação sexual e exotificação da mulher negra. Ou seja, para
cobrir o preconceito que vem sendo nutrido e espalhado há séculos, rotula-se a
mulher negra com as poucas permissões que lhes são concedidas. Para gerar a
consciência antirracista tão necessária, é preciso em primeiro lugar
compreender a violência das caricaturas impostas às mulheres negras.
A Escrava:
O
estereótipo de mulher trabalhadora e incansável é um dos mais antigos e
reforçados, vigorando há centenas de anos e se adaptando às mudanças econômicas
e culturais da sociedade. Se séculos atrás a mulher negra era usada e explorada
como trabalhadora braçal, supostamente dotada de resistência física infinita,
na contemporaneidade esse papel continua sendo intenso, as mulheres negras
ainda são exploradas em campos de trabalho escravo, que ainda existem nos dias
de hoje. Muitas delas são obrigadas a trabalhar em condições precárias e
perigosas em troca de um valor monetário insignificante, estando presente na
grande maioria das cozinhas dos lares brasileiros, mas praticamente nunca como
grandes chefs da gastronomia e sim como eternas subalternas, que vivem para
servir as famílias brancas e ricas.
Não
importa se querem sonhar mais alto ou se têm algum problema legítimo, se estão
doentes ou passando por um período de luto – algo bastante frequente devido ao
genocídio policial contra os homens negros -, as mulheres negras nascem e
crescem com poucas alternativas. Para muitas, é difícil alcançar outra coisa
além do trabalho doméstico para famílias brancas, geralmente em forma de
faxinas pesadas e salários baixíssimos. A mulher negra é a maior trabalhadora
de nossa nação, porém não possui seus esforços reconhecidos; ao invés disso, sua
dignidade é barganhada com ameaças de demissão e risco de desemprego.
Mesmo
na televisão, nas novelas ou nos filmes, a mulher negra só aparece para
representar a escrava de tempos antigos ou a empregada doméstica atual. De que
forma, então, pode se esperar que meninas e adolescentes negras consigam se ver
em profissões adequadas, em vivências plurais e dignas? É por isso que tal
estereótipo de guerreira e batalhadora é tão nocivo: sua existência poda o
potencial e a autoestima dessas mulheres, servindo como grilhões de sua
liberdade.
O objeto:
Para
as mulheres negras que não são vistas como escravas do trabalho braçal, resta o
rótulo do trabalho sexual – igualmente exploratório e limitado -, que existe
sob a pretensão de elogio, atuando como uma exibição de pedaços de carne
baratos e hipersexualizados, como se uma tendência à “promiscuidade” fosse
característica genética.
Não
é preciso pesquisar muito para encontrar em qualquer rede social uma enxurrada
de charges e imagens que apresentam garotas negras como “vulgares” e
irresponsáveis, que engravidam ainda na adolescência e não aprendem nunca a
lição. Mesmo mulheres negras com um maior nível econômico, como por exemplo a
atriz Taís Araújo, são vítimas da objetificação, como pode ser notado no
próprio nome da novela da qual ela foi estrela, “Da Cor do Pecado”. Seja por
meio de eufemismos ou discursos hostis, a mulher negra sempre transita entre a
indesejabilidade e a exotificação: às vezes, é considerada tão feia e nojenta
que todas as partes do seu corpo são causadoras de ojeriza, mas por outras
consegue se enquadrar no papel de “mulata” sensual e provocante.
A
questão é que exotificação não é elogio, é objetificação. Não há qualquer
valorização ou prestígio em marcar todo um grupo de seres humanos como produtos
com valores comparáveis. Isso é uma das formas mais perversas de racismo, pois
está oculto e disfarçado, sendo frequentemente confundido com inclusão. No
entanto, basta um pouco de senso crítico para perceber que a preta “da cor do
pecado” não é verdadeiramente aceita em sociedade, ela é vista como o terror
das pobres donas de casa, como a sujeita sem moral, oportunista e interesseira,
que destrói casamentos e faz do mundo um lugar menos limpo. Essas afirmações
podem soar muito fortes, mas essa é a realidade das milhares de meninas
sexualmente abusadas, que apesar de serem crianças, não encontram defesa, pois
desde a mais tenra idade são consideradas provocantes e feitas exclusivamente
para o sexo.
O
que esses estereótipos possuem em comum é a redução da mulher negra ao seu
corpo, ou seja, às supostas características intrínsecas que possuem desde sua
formação genética. Por serem retratadas como mais fortes e naturalmente mais
sexuais, todos os tipos de violação de direitos humanos são impostos às meninas
e mulheres negras.
Em
pleno ano de 2013, no mês da Consciência Negra, ainda falta muito chão para que
o Brasil consiga dar às suas cidadãs negras a valorização que merecem. Até que
ponto as pessoas são capazes de refletir a respeito desses exemplos e trabalhar
no enfrentamento do preconceito? Pode ser difícil ir além da superficialidade
dos discursos de inclusão, mas sem a quebra de estereótipos, jamais será
possível extinguir, ou mesmo amenizar o problema do racismo.
*Artigo
de Jarid Arraes publicado no Portal Vermelho