26 de julho de 2023

Só metade das escolas públicas têm projetos antirracistas, aponta ONG

 

Professor Nicolau Neto durante palestra sobre educação antirracista da EEFTI 18 de Dezembro, em Altaneira_CE. (FOTO | Arquivo do blog).


Hoje universitária, a brasiliense Nathalia Maciel, de 19 anos, que se identifica como mulher negra, acostumou-se a ouvir em sala de aula sobre heróis e heroínas brancos e feitos de europeus que chegaram ao Brasil. Estudou o ensino fundamental e médio em escola pública na região administrativa de Santa Maria, a 40 km do centro da capital. “Sentia falta de saber sobre pessoas negras, que só eram citadas em 20 de novembro (dia da Consciência Negra). As pessoas só faziam para ganhar nota nas matérias”, lamenta.

A percepção da estudante sobre a falta de projetos que valorizem a diversidade e enfrentem problemas como o racismo pode ser constatada em números. Segundo levantamento da ONG Todos Pela Educação, apenas metade (50,1%) das escolas públicas do país tiveram ações contra o racismo em 2021, ano em que foi feita a última pesquisa do Sistema Nacional de Avaliação Básica (Saeb).

O fato é que, naquele ano, o total de escolas públicas com projetos para combater racismo, machismo e homofobia caiu ao menor patamar em 10 anos. Os dados utilizados foram extraídos dos questionários contextuais do Saeb destinados a diretores e diretoras escolares, entre 2011 a 2021.

Falhas

A pesquisadora Daniela Mendes, analista de políticas educacionais do Todos Pela Educação, contextualiza que quando questões raciais e de gênero não são trabalhadas dentro das escolas, o ensino falha tanto no processo de aprendizagem dos alunos quanto na construção de uma sociedade melhor, com menos violência e menos desigualdades.

O impacto que esses dados nos mostram não é apenas educacional. As violências sofridas nas escolas podem ser tanto físicas e verbais quanto simbólicas com insinuações e constrangimentos que tornam o ambiente escolar um espaço hostil para determinados grupos. Isso tem um impacto na evasão escolar”, afirmou Daniela Mendes.

Colonização

De acordo com o que analisa a pesquisadora Gina Vieira, professora da rede pública no Distrito Federal e com projetos premiados em relação à diversidade em sala de aula, a escola no Brasil não promove a diversidade.

A escola brasileira, assim como o projeto de colonização do país, trabalha na lógica da homogeneização. Então, nós temos um currículo racista e uma educação racista. Nós temos um currículo oficial que ainda conta a história oficial que é contada na perspectiva do homem branco europeu”, pontua.

Ela explica que são raros os materiais pedagógicos diversos que incorporem as vozes dos povos historicamente excluídos. “A gente está, por exemplo, comemorando 20 anos da Lei 10.639 [que inclui História e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar], que é resultado da luta histórica do movimento negro pelo direito da história da África e de pessoas negras em diáspora”. Ela cita que as leis não são o suficiente para mudança de perspectivas, mas sim uma mudança cultural e de políticas públicas. “Como diz o Drummond, os lírios não nascem por força da lei”.

Em queda

A quantidade de escolas com projetos atentos à diversidade começou a cair a partir do ano de 2015, quando o índice havia chegado ao maior patamar no período: 75,6%. Desde então, os números despencaram.

Além de racismo, a atuação contra homofobia e machismo está na menor parte das escolas brasileiras. Em 2011, por exemplo, 34,7% das escolas relataram ter ações. Em 2017, o índice chegou a 43,7%. Mas, também caiu nos anos seguintes. Em 2021, representava apenas 25,5%.

Para Daniela Mendes, analista de políticas educacionais do Todos Pela Educação, o avanço de uma pauta ultraconservadora nos últimos anos, os impactos da pandemia e a falta de coordenação nacional durante a última gestão do Ministério da Educação foram fatores que podem ter influenciado o cenário.

Para a professora Gina Vieira, cabe à sociedade estar mobilizada para cobrar uma escola antirracista e contra machismo e homofobia. “A gente precisa rechaçar com toda força essa perspectiva que a gente viveu nos últimos quatro anos entre o professor e a escola representados como inimigos da sociedade. Como alguém que devo fiscalizar, denunciar, gravar e achincalhar. Um país que não valoriza a educação, a escola e os educadores está fadado ao retrocesso”, afirma.

Providências

Em nota à reportagem, o Ministério da Educação garantiu que tem trabalhado para modificar esse cenário desde o início da atual gestão. A primeira ação foi a recriação da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão). “Uma pasta que já se configura como uma ação afirmativa, na qual tem em sua estrutura a Diretoria de Políticas de Educação Étnico-racial Educação Escolar Quilombola, um instrumento institucional para formular, articular e executar as políticas voltadas para a implementação da Lei 10.639/03”.

Além disso, segundo MEC, foi retomada a formação de professores a partir do apoio financeiro às universidades e relançado o Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, que fomenta a pesquisa na graduação e pós-graduação. “Outra iniciativa resgatada foi a Cadara, a comissão de assessoramento do MEC formada por entes federais e sociedade civil. Ainda há um longo caminho pela frente, mas hoje a Secadi está empenhada em garantir recursos para que no próximo ano possa investir ainda mais em ações de combate ao racismo”.

Para Ingridy, que é uma adolescente negra, de 15 anos, também moradora de Brasília, e estudante de escola pública, uma escola preocupada com diversidade e disposta a não ser homogênea seria fundamental também para o dia a dia. E isso parece uma aula simples. “Ajudaria a combater o preconceito e promoveria o respeito e a aceitação na escola”, avalia.

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Com informações da Agência Brasil.

25 de julho de 2023

Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha deveria ser também para denúncias das injustiças

 

Maria Raiane. (FOTO | Arquivo Pessoal).

Por Maria Raiane, Colunista

Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, celebrado em 25 de julho, deveria ser uma data de reflexão profunda e denúncia das inúmeras injustiças e opressões que mulheres negras enfrentam diariamente. Entretanto, infelizmente, a realidade é que esta data muitas vezes é negligenciada e esquecida pela maioria da sociedade. A invisibilidade e o silenciamento que recaem sobre as mulheres negras são uma prova concreta do racismo estrutural, do machismo enraizado em nossas sociedades entre outras violências existentes.

É imperativo que, neste dia, deixemos de lado os discursos vazios e simbólicos para enfrentarmos a verdadeira essência da problemática que envolve as mulheres negras. Afinal, como podemos celebrar uma data que deveria ser de conscientização e denúncia, enquanto essas mulheres continuam sendo as principais vítimas da violência, da pobreza, do desemprego e do acesso limitado à educação e aos cuidados de saúde?

As violências que afetam as mulheres de maneira geral é ainda mais perversa para as mulheres negras, que são frequentemente oprimidas. E o que vemos é uma sociedade que persiste em ignorar suas vozes, necessidades e demandas. A mídia e a indústria do entretenimento são cúmplices nessa perpetuação, reproduzindo estereótipos e preconceitos que apenas reforçam a desigualdade.

Os dados são alarmantes e deveriam ser razão suficiente para que este dia fosse levado a sério por todos. O alto índice de mortalidade materna entre mulheres negras, a violência policial que as atinge de forma desproporcional, a sub-representação no poder político e a falta de oportunidades no mercado de trabalho são apenas alguns exemplos de uma realidade cruel que merece ser confrontada.

Neste Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, não basta apenas criar hashtags e compartilhar mensagens bonitas nas redes sociais. É hora de uma ação concreta e efetiva para combater o racismo, o sexismo e outras violações arraigados em nossa sociedade. É hora de ouvir as mulheres negras e valorizar suas vivências e lutas.

Em vez de usarmos este dia como mero enfeite em nossos calendários, que ele seja um lembrete constante de que temos uma dívida histórica a ser paga. É um momento de autoavaliação para compreendermos nosso papel nessa estrutura injusta e nos comprometermos a desconstruí-la em todas as suas manifestações.

Portanto, não se trata apenas de um dia de celebração, mas principalmente de um dia de denúncia e de reconhecimento das violências e desigualdades que as mulheres negras enfrentam. Enquanto essa realidade persistir, a celebração deste dia será uma afronta à justiça e à igualdade, tornando-se mais uma demonstração da falta de empatia e comprometimento de nossa sociedade em combater as opressões sistêmicas que afetam as mulheres negras e, consequentemente, toda a sociedade.

No Ceará, 25 de julho é também o Dia Preta Tia Simoa e da Mulher Negra

 

(FOTO | Reprodução).

Por Nicolau Neto, editor

Hoje, 25 de julho, é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha em homenagem a luta e a resistência das mulheres negras. Por aqui, a data que foi instituída em 2014, ficou conhecida como Dia Nacional de Tereza de Benguela, a “Rainha Tereza”, que no século XVIII, no Vale do Guaporé (MT), chegou a liderar o Quilombo de Quariterê.

O Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha foi instituído em 1992 pela Organização das Nações Unidas (ONU) e teve como pano de fundo o 1º Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, ocorrido em Santo Domingo, na República Dominicana e visava compartilhar suas vivências, denunciar as opressões e debater soluções para a luta contra o racismo e o machismo.

Já no Estado do Ceará, o 25 de julho ficou conhecido como Dia Preta Tia Simoa e da Mulher Negra. A data é fruto do Projeto de Lei 335/21, de autoria do Deputado Renato Roseno (PSOL) que instituiu ainda a Semana Preta Tia Simoa de combate à discriminação contra as mulheres negras no Estado. Ainda em 2021, durante a gestão do governador Camilo Santana (PT), hoje Ministro da Educação, o PL foi sancionado e o calendário cearense ganhou a lei 17.688/21.

A Preta Tia Simoa se tornou conhecida do público por meio das pesquisas da historiadora, ativista negra e colunista deste Blog, Karla Alves.

Clique aqui e saiba mais sobre a Preta Tia Simoa.

Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha tem marchas em todo o país

 

"Afirmamos que nada, sobretudo a democracia brasileira, será feita sem nós, mulheres negras", diz manifesto do ato em São Paulo - Arquivo pessoal. 

Marchas, palestras, atividades culturais, rodas de conversa: o “julho das pretas”, mês que tem o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha nesta terça-feira (25), como data central, tem cerca de 450 atividades organizadas em 20 estados brasileiros neste ano de 2023.

Mulheres negras em marcha por reparação e bem viver” é o tema norteador das atividades e será também o eixo da Segunda Marcha Nacional das Mulheres Negras, prevista para 2025. A primeira aconteceu em 2015 e reuniu cerca de 50 mil mulheres em Brasília.  

Na capital paulista, a oitava Marcha das Mulheres Negras de SP tem concentração marcada para 17h desta terça, na praça da República. A caminhada em direção ao Teatro Municipal (onde foi fundado o Movimento Negro Unificado em 1978) começa às 19h30.

Nós, mulheres negras, indígenas e imigrantes em diáspora denunciamos o genocídio racista desde sempre. Mas o dia 25 de julho é um dia de celebração e também o momento de reafirmar que estamos em marcha por direitos e contra o genocídio do povo preto, dos povos indígenas, das LGBTQIA+, das vítimas do feminicídio, contra todas as formas de opressão e pelo Bem Viver”, ressalta o manifesto da Marcha das Mulheres Negras de SP.

Somos descendentes e herdeiras da luta e da resistência negra contra o criminoso sistema de escravidão que ainda não acabou, já que até hoje não recebemos a devida reparação necessária para o desenvolvimento da nossa cidadania plena”, reivindica o texto.

Em Vitória (ES), a praça Costa Pereira será ocupada nesta terça (25) das 10h às 18h pelo evento “Por todas nós”. Estão previstas exposição de fotos e gravuras, oficinas de escrita, de trança nagô, palestras e apresentações musicais com o grupo de rap Nação Mulher ES e a artista Sthelô com o instrumentista Igor Morais. 

Em Salvador (BA), a manifestação se concentra às 14h na praça da Piedade, com uma ocupação poética e intervenções artísticas. Em seguida, o ato segue para a Praça Terreiro de Jesus. 

O Latinidades, considerado o maior festival de mulheres negras da América Latina, começou em 6 de julho em Brasília e, de forma itinerante, passou pelo Rio de Janeiro, São Paulo e segue agora em Salvador até o próximo domingo (30). 

Com o tema “Bem viver”, o Latinidades apresentará, no sábado (29), o II Concerto Internacional Contra o Racismo. A atividade começa às 17h na praça Quincas Berro D’água, na capital baiana. 

Em Fortaleza (CE), nesta terça (25), um ato com debate está sendo organizado pelo Grupo de Valorização Negra do Cariri e a Rede de Mulheres Negras do Ceará, na praça da Gentilândia, às 18h. 

Em Belém (PA) a marcha, convocada pelo Coletivo de Juventude do Centro de Estudo e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), tem concentração marcada para 16h no Portal da Amazônia, também neste 25 de julho. 

Já em João Pessoa (PB), um cortejo deve começar às 18h na praça da Paz. Em Aracaju (SE), o ato está marcado para 14h na praça Olímpio Campos. 

Na região sul do país, na capital paranaense, uma marcha sob o título “Mulheres sagradas” acontece a partir das 19h na ladeira do Largo da Ordem, na centro de Curitiba (PR). 

No Rio de Janeiro, o ato vai ser no próximo domingo (30), na praia de Copacabana. Entre os temas pautados pelas organizadoras estão o combate à fome e às violências contra a juventude negra, o acesso à moradia e ao trabalho. 

A data

O 25 de julho começou a ser comemorado em Santo Domingo, na República Dominicana, onde aconteceu o primeiro encontro de mulheres negras latino-americanas e caribenhas em 1992. A partir daí, a data foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). 

No Brasil, em 2014 a Lei 12.987 estabeleceu o 25 de julho também como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. A homenageada foi líder do Quilombo Quariterê no século 18, comunidade localizada na fronteira entre o Mato Grosso e a Bolívia.

Referida como “rainha”, Tereza esteve no comando do quilombo, que reunia cerca de 100 pessoas e se organizava politicamente por meio de um conselho, ao longo de duas décadas. 

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Com informações do Brasil de Fato.

24 de julho de 2023

Julho das pretas: conheça a trajetória da caririense Neusa Lourenço

 

Dona Neusa na calçada. (FOTO | Nicolau Neto).

Por Nicolau Neto, editor

O dia 25 de julho é uma data para ser celebrada. Isso porque internacionalmente desde 1992 em Santo Domingo, na República Dominicana, quando um encontro foi organizado por mulheres negras, latino-americanas e caribenhas objetivando debater temas que os uniam - como a luta contra o racismo -, que a ONU reconhece a data como Dia Internacional da Mulher Negra, Latina e Caribenha.

Já no Brasil, em 2014, durante o mandato da presidenta Dilma Rousseff, foi instituída a Lei 12.987, definindo na mesma data o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, em referência à memória da Rainha Tereza, mulher que ao conseguir a libertação, liderou o Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso.

No ensejo em que várias homenagens irão ser feitas as mulheres negras espalhadas pelo país, como em Crato e em Juazeiro do Norte, por exemplo, onde a professora Drª Cícera Nunes (URCA) e a educadora popular Valéria Carvalho (GRUNEC) receberão a comenda Maria do Espírito Santo, aproveito para apresentar de forma sucinta a trajetória de Neusa Lourenço, minha mãe.

Neusa Lourenço, símbolo de resistência

Neusa Lourenço da Silva, ou simplesmente Dona Neusa, nasceu no distrito de Cajazeiras, em Assaré, no ano de 1948. Filha de Joana Tibúrcio do Amarante, mulher branca, e Antônio Lourenço da Silva, homem negro, compartilhou com seus oito irmãos - Armando, Aldino, Raimundo, José, Edilsa, Lieta, Zélia e Maronilde -, as dificuldades que a vida lhes impunham. Trabalharam desde cedo na roça e como era comum na época tiveram pouquíssimas oportunidades de estudarem.

Nos fins de tarde ela sempre gostava de sentar na calçada e logo ganhava a companhia dos filhos e filhas. Era nesse ínterim que as rodas de conversas de davam e as suas memórias ganhavam força nas palavras. De histórias de conflitos que ela se envolvia para livrar seu pai de enrascadas quando bebia a aventuras para matar a fome dos 10 filhos , estão entre aquelas mais contadas. “Teve um dia que pai bebeu muito e demorou a chegar. Fui a sua procura e me deparei com ele sendo maltratado. Nessa hora não contei conversa. Peguei nas partes baixas dele” (se referindo ao homem que estava maltratando o pai), diz ela entusiasmada toda vez que lembra do episódio “e só larguei quando ele pediu desculpas a papai”.

Dona Neusa. (FOTO | Nicolau Neto).

Ao se casar com João Nicolau da Silva, de quem é prima distante, não tinha onde morar e tiveram que viver de aluguel. Essa situação durou boa parte da vida. A mudança de casa e de cidade foi uma constante na vida do casal que acabou chegando em Altaneira no ano de 1990. Alguns anos depois o casal sofre o pior momento da vida, a morte do filho caçula Edson.

Em Altaneira, ela junto ao esposo enfrentam as maiores dificuldades para alimentar os filhos e filhas. Decide trabalhar como empregada doméstica no município de Crato. Enfrentou por mais de duas décadas a distância de 56 km entre as duas cidades andando no ônibus de seu Zé Lopes. Lá trabalhava lavando e passando roupa. A maior parte desse tempo foi na casa do casal Ednaldo Farias Solto (Mago), ex-prefeito de Altaneira, e Roberci Vânia Oliveira, hoje com assento de vereadora na Câmara de Altaneira.

Ela conta que só aguentava o trajeto porque sabia que era a única forma de ajudar na alimentação da família. Ela passava a semana no Crato e quando era no sábado meu irmão Neto e eu íamos espera-la na saída da cidade. A ansiedade era tamanha a espera dela. Toda vez que ouvíamos o barulho de um motor a esperança de um prato na mesa se renovava. As vezes passava de duas semanas no Crato e voltávamos para casa com um tristeza sem fim.

Com o dinheiro que ela trazia dava para comprar também bilas e piões. Junto com o futebol, essas eram as brincadeiras que mais gostávamos. Mas a alegria maior mesmo era revê-la.

Dona Neusa é uma mulher forte, persistente e que não desiste do que quer. Sempre fez de tudo para se defender e defender os filhos e filhas. “Nessa negra aqui ninguém pisa não”, dizia ela toda vez que era confrontada pelo racismo estrutural e institucional. “Aqui é uma negra que tem vergonha. Não se curva a ninguém”, contava ela cheia de orgulho quando tinha enfrentado situações que toda mulher negra enfrenta. Dizia olhando bem nos nossos olhos de forma a verbalizar: façam o mesmo.

A vida toda trabalhou também como agricultora. Tanto em Cajazeiras e Arassás, em Assaré, quanto em Altaneira. Com a idade já avançada e a proximidade da aposentadoria como agricultora, deixa o trabalho como empregada doméstica e se dedica exclusivamente aos afazeres de sua própria casa.

Dona Neusa Fazendo Crochê ao lado de sua mãe, Joana. (FOTO | Nicolau Neto).

Para uma mulher que viveu do trabalho e para o trabalho era difícil passar a maior parte do tempo sem fazer nada. Não contente com isso passou a usar o restante do tempo para costurar, cortar cabelo (os nossos) e fazer crochê.

A vitalidade dela era tamanha que durante anos, inclusive depois da casa do 60 (hoje ela tem 75), a levava de moto até o município de Potengi, também na região do cariri, para visitar a mãe (que já faleceu) e as irmãs e irmãos. Eram 116 km de ida e volta. Aliado a tudo isso gostava de cantar e dançar, principalmente forró e frequentou por vários anos as reuniões Centro de Apoio ao Idoso em Altaneira.

Hoje o cansaço de anos e anos de trabalho bateu forte e ela já não tem a mesma força que tinha antes. Enfrentou recentemente a cirurgia na visão e não tem mais o hábito de sentar na calçada para as rodas de conversas. Aliás, ela fala pouco agora.

Dona Neusa é, portanto, símbolo de resistência e de enfrentamento ao racismo. Ao tempo que foi e contiua sendo uma mãe amorosa e que sempre fez questão dos seus estudarem, mesmo tendo feito apenas a antiga quarta série. 

Ary Borges marcou três gols e o Brasil venceu Panamá na Copa do Mundo Feminina

 

Ary Broges marca três vezes na estreia do Brasil na Copa do Mundo Feminina. (FOTO | Getty Images | Elsa | FIFA).

Por Nicolau Neto, editor

Na manhã desta segunda-feira, 24, o Brasil entrou em campo para sua primeira partida na Copa do Mundo Feminina. O jogo de estreia não poderia ter sido melhor. O Brasil passeou em campo e não deixou as adversárias gostarem do jogo e goleou por 4 a 0.

Uma das estreantes, a atacante maranhense Ary Borges, fez uma partida de gala e marcou três vezes. Como grande nome deste jogo, ela que atua pelo Racing Louisville, dos Estados Unidos, ainda deu passe para o gol de Bia Zaneratto.

Marta, a principal referência do time e que joga sua última copa, só entrou no segundo tempo.

Com o empate entre França e Jamaica, o time brasileiro termina na liderança do grupo F nesta primeira rodada e vai defender o primeiro lugar no jogo contra as francesas no próximo sábado, 29, a partir das 7h00 da manhã (horário de Brasília).

23 de julho de 2023

Conheça Beatriz Nascimento, intelectual negra que inspira cientistas

 

Beatriz Nascimento. (FOTO | Arquivo Nacional).


Negra, migrante, nordestina e mulher, a historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995) foi uma das principais intelectuais do país, com contribuições fundamentais para entender a identidade negra como instrumento de autoafirmação racial, intelectual e existencial. Ela desenvolveu pesquisas sobre o que denominou de “sistemas sociais alternativos organizados por pessoas negras”, investigando dos quilombos às favelas. A partir desta quinta-feira (20), Beatriz dá nome ao "Atlânticas - Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência", primeiro programa do governo federal direcionado exclusivamente a mulheres cientistas negras, indígenas, quilombolas e ciganas.

Segundo a Enciclopédia de Antropologia da Universidade de São Paulo, Maria Beatriz Nascimento nasceu em Aracaju. É a oitava filha de Rubina Pereira do Nascimento e Francisco Xavier do Nascimento, que migraram para a cidade do Rio de Janeiro no final de 1949.

Beatriz ingressou no curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no ano de 1968, concluindo a graduação em 1971, aos 29 anos de idade. Sob orientação do historiador José Honório Rodrigues, ela realizou estágio de pesquisa no Arquivo Nacional e trabalhou como professora de história da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro.

A historiadora se especializou em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (UFF) quando, em 1974, participou da criação do Grupo de Trabalho André Rebouças e, em 1975, do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Com o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1923-1980), a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994) e o jornalista Hamilton Cardoso (1953-1999), ela partilhou pesquisas e militâncias.

Durante a Quinzena do Negro, evento ocorrido na Universidade de São Paulo (USP) em 1977, Beatriz apresentou a conferência Historiografia do quilombo, delineando os contornos do que ela desenvolveria, posteriormente, como espaços de resistência cultural negra: dos bailes blacks aos territórios de favelas, esses espaços constituiriam uma identidade negra como instrumento de autoafirmação racial, intelectual e existencial, além de território simbólico ancorado no próprio corpo negro.

Em 1979, em viagem ao continente africano, a autora conheceu territórios de antigos quilombos angolanos e reafirmou a vinculação entre as culturas negras brasileira e africana. No documentário Ôrí, lançado em 1989, dirigido pela cineasta e socióloga Raquel Gerber, Beatriz narra parte da trajetória dos movimentos negros no Brasil entre 1977 e 1988, ancorando-se no conceito do quilombo como ideia fundamental, que atravessa sua própria narrativa biográfica, para retraçar continuidades históricas entre o quilombo e suas redefinições nos dias atuais.

Beatriz escreveu uma série de textos, poemas, roteiros, ensaios e estudos teóricos, entre os quais se destacam Por uma história do homem negro (1974); Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso (1982) e O conceito de quilombo e a resistência cultural negra (1985).

Em 1995, a historiadora é vítima de feminicídio, aos 52 anos de idade. Pelas suas importantes contribuições à pesquisa acadêmica, em outubro de 2021 é outorgado a ela o título póstumo de Doutora Honoris Causa in Memoriam pela UFRJ. Ao lado de Lélia Gonzalez (1935-1994), Sueli Carneiro (1950-) e Luiza Bairros (1953-2016), Beatriz figura como umas das mais importantes intelectuais negras brasileiras.

Beatriz Nascimento é uma das intelectuais mais brilhantes que esse país já teve e que, infelizmente, teve a vida interrompida de maneira muito precoce em razão do feminicídio”, ressalta a professora de História e mestra em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto Luana Tolentino.

Segundo Luana Tolentino, a historiadora é uma grande inspiração para as pesquisadoras negras. “Beatriz Nascimento abriu portas para que a minha geração pudesse entrar. Sou da década de 1980, então sou dessa geração que tem tido a oportunidade de exercer o direito de estar na universidade também em função da política de cotas. A luta contra o racismo da Beatriz Nascimento foi fundamental para construção dessas políticas públicas de promoção da igualdade racial e também como um incentivo, como farol para nós pesquisadoras negras, mulheres negras”.

As pesquisadoras negras precisam enfrentar diversos desafios, afirma Luana. “O primeiro desafio é justamente o racismo que orienta a sociedade brasileira, que dificulta de todas as maneiras o acesso das mulheres negras à universidade. Temos a política de cotas, que é um marco na história do país e que sem sombra de dúvidas tem sido fundamental para dar novos contornos, novas cores à universidade, mas ao mesmo tempo, há uma série de barreiras que dificultam o acesso das mulheres negras ao ensino básico. Entre os grupos sociais que não tiveram oportunidade de frequentar a escola, as mulheres negras são maioria”, explica Luana Tolentino.

O outro ponto destacado pela professora, é que ao chegar na universidade as pesquisadoras precisam enfrentar o olhar de desconfiança com o qual as são vistas, também motivado pelo racismo.

Vivemos em um país em que ainda há uma expectativa de que, nós mulheres negras, estamos nesse mundo apenas para servir e limpar a sujeira dos outros. Estamos em um país que ainda tem dificuldade de pensar nas mulheres negras como pesquisadoras, como intelectuais, como produtoras de conhecimento. Mas, a despeito de tudo isso, nós estamos em um número muito significativo na universidade, acho que como Beatriz Nascimento sonhou. Nós que já estamos [na universidade] precisamos assumir o compromisso de abrir tantas outras portas para que outras mulheres negras possam entrar e garantir o direito humano à educação e ao ensino superior”.

Luana Tolentino é autora dos livros Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula (Mazza Edições) e Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (Papirus 7 Mares).

Programa

O Atlânticas - Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência quer fortalecer as trajetórias acadêmicas dessas mulheres oferecendo bolsas de doutorado e pós-doutorado sanduíche no exterior. O governo federal vai investir aproximadamente R$ 7 milhões, resultado da parceria entre o Ministério da Igualdade Racial com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o Ministério das Mulheres (Mmulheres).

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Texto de Ludmilla Souza, na Agência Brasil.

22 de julho de 2023

“Barbie para mim nunca foi inspiração, apenas frustração mesmo”, diz bonequeira do Cariri

 

Atriz e professora, essa jovem bonequeira diz que a “Barbie para mim nunca foi inspiração, apenas frustração mesmo”. (FOTO | Arquivo pessoal).


Durante a travessia dessa onda rosa que inunda o país com o lançamento do filme Barbie, trago aos leitores um socorro capaz de evitar o afogamento em tanto colonialismo.

É possível entender o fenômeno com a ajuda das bonequeiras do Cariri. São artesãs que tecem bonecas de pano sob a sombra de nossos telhados sem forro, alpendres e mangueiras.

Elas têm algumas palavras a dizer sobre a boneca criada nos EUA pelo casal Ruth e Elliot Handler no final da década de 1950 como forma de materializar a mulher que deixava os afazeres domésticos para ser dona do seu tempo e conquistar o seu espaço.

Se naquele país a Barbie pode ter representado um avanço sobre o patriarcado, a chegada dela ao Brasil — com o seu corpo longilíneo e cabelos loiros — teve outros significados para milhões de brasileiras que não se viam naquele ideal de beleza.

“Barbie para mim nunca foi inspiração, apenas frustração mesmo”, afirma Simony Vieira.

Atriz e professora, essa jovem bonequeira precisa ser ouvida mais atentamente, porque o seu trabalho despertou o sonho infantil de milhões de brasileiras e o dela própria.

Simony Vieira cria bonecas negras como ela. São pretas e pardas, nos detalhes: cabelo crespo, nariz e lábios grossos. Mulheres não brancas, não loiras, como são a maioria das brasileiras.

Respondendo a demandas do mercado, a Barbie foi ganhando versões com diversidade, inclusive com deficiência, mas a loira permaneceu como o estereótipo.

Sabemos que existe a Barbie negra, mas precisamos analisar. Essa boneca é como se eles tivessem pego boneca branca e apenas pintado de preto. O nariz, os olhos são os mesmos. Não tem as características dos nossos ancestrais, nosso nariz, nosso cabelo, o formato da curva do corpo, diz Simony.

Realmente, o formato do corpo da Barbie é tão idealizado que, se fosse realmente humana, talvez nem parasse em pé. Mas num país como o Brasil, cuja população padece de sintomas graves de colonialismo, a Barbie dobrou a aposta na exclusão.

Já houve um tempo em que assistir à TV neste país era como estar na Suécia. Hoje, com um pouco de inclusão, já estamos ficando parecidos com, ironicamente, os EUA, onde a principal apresentadora é uma preta, Oprah Winfrey. Mas estamos longe de sermos nós mesmos, pardos, negros, miscigenados em maioria, loiros em minoria.

Porém, quando se vê uma correria ao cinema de forma tão acrítica, com uma explosão de conteúdo de marketing na cor rosa, parece que os passos dados à frente no processo civilizatório carecem de firmeza.

Como negra e como mãe de uma menina negra, que está para nascer, eu me preocupo com esse ideal de beleza”, disse Simony.

Felizmente, a brasileira que está por nascer terá para brincar bonecas feitas pela própria mãe nas quais vai poder inspirar-se de forma real, confortável e inclusiva.

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Texto de Paulo Henrique Rodrigues, no Diário do Nordeste.