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Quadro votivo em homenagem a Maria de Araújo criado pelo estúdio anchordecor.
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Por César Pereira, Colunista
Maria
de Araújo
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Seu pai?
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Um divezo que andava quase sempre em temulência; um negro, um mancípio que fora
da gente do padre Pedro Ribeiro, de saudosa memória.
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Sua mãe?
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Uma cabra de cabelo ulotricho e mastigado que servia fora de casa, mas muitas
vezes não podia trabalhar e se ficava de cama por causa das sovas que
amiudadamente lhe dava o macho, o marido.
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A mulher de que falamos, se, como me dizes, e eu creio, é um produto, um
cruzamento das duas raças mais detestáveis, não pode deixar de ser, em todos os
sentidos, uma hibridez horrível.
[...]
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Poderás vasar-me em palavras a hibridez estética dessa monstruosidade feita
mulher? (PEIXOTO, 2011, p.41.)
Maria
Magdalena do Espírito Santo Araújo é a mulher que está sendo predicada nesta
linguagem viperina adotada pelo padre Alencar Peixoto no seu livro Joazeiro do
Cariry publicado em 1913. Este não foi o primeiro texto escrito com o objetivo
de impor ao público uma representação funesta de Maria de Araújo, nem tampouco
seria o último.
Ao
longo das duas últimas décadas do século XIX e no decorrer de todo o século XX
fez-se um intenso investimento discursivo em torno da beata Maria de Araújo,
tal operação discursiva objetivava principalmente criar uma representação que a
definisse como uma pessoa ardilosa, enferma, impura, capaz de enganar os homens
mais inteligentes do clero, das ciências e até doutores em teologia, como
também o homem mais piedoso e temente a Deus, o padre Cícero Romão Batista.
Logo
que as primeiras notícias do milagre da hóstia começaram a se difundir pelos
meios intelectualizados da imprensa brasileira e entre as autoridades
eclesiásticas nacionais o discurso sobre a mulher que protagonizava os fatos
miraculosos de Juazeiro começa a ser engendrado de modo a construir uma
representação negativa desta.
No
dia 29 de agosto de 1889, quando já não era mais possível manter os
acontecimentos restritos ao Cariri cearense, o Jornal do Comércio editado e
publicado na cidade do Recife em Pernambuco estampou em seu número 194, ano 65,
página 3, a manchete: Facto estupendo, onde noticiava os milagres que
vinham ocorrendo em Juazeiro desde março daquele ano e que haviam sido
testemunhados em profusão no mês de julho.
A
notícia reproduz uma carta enviada por um leitor, provavelmente da cidade do
Crato, este informa ao redator do jornal que se sentiu obrigado a divulgar os
fatos, pois para ele eram tão importantes quantos os milagres de Nossa Senhora
de Lourdes ocorridos trinta anos antes na França.
O
autor da carta faz uma rápida descrição da figura de Maria de Araújo: “[...]
Maria de Araujo (sic), mulher mais preta que parda, de estatura baixa e
compleição franzina: é bastante feia e representa a idade de 18 a 20 anos.” Tal
descrição da protagonista dos milagres de Juazeiro foi feita vinte e cinco anos
antes daquela criada pelo padre Alencar Peixoto, mas ambas estão em acordo,
pois procuram destacar a raça a qual pertence Maria de Araújo e fazem questão
de salientar a sua debilidade física.
Conforme
Peixoto:
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Maria de Araújo que deve orçar hoje pelos seus cinquenta anos, é de estatura
regular; brunduzia, triste, vagarosa, entanguida, essencialmente caquética, porque
tem ela uma série de ascendentes caquéticos ou tuberculosos. (PEIXOTO, 2011, p.
42.)
O
próprio padre Cícero nas cartas que escreveu ao bispo dom Joaquim José Vieira respondendo
as cartas a ele dirigidas pelo chefe do clero cearense também descreve Maria de
Araújo como uma pessoa doente e fisicamente decadente. Segundo ele ‘era uma
mulher que tinha uma saúde de passarinho, como se diz no sertão’ além disso,
informou ao bispo que desde algum tempo Maria de Araújo padecia dos nervos,
tinha espasmos constantes e que “...este estado mórbido começou desde menina e
continuou com maior ou menor intermitência, até o ano de 1889.” (apud, NETO
2009).
Pode-se
perceber como rapidamente foi se tecendo toda uma semântica discursiva masculina
com o objetivo único de construir uma representação de Maria de Araújo como a
mulher histérica e incapaz de protagonizar qualquer evento ou fato digno de
valoração histórica, científica ou teológica. Toda uma casta de intelectuais
dentro e fora do clero foi mobilizada para impedir a ascensão dessa mulher a
primazia de protagonista da história da igreja ou da própria história do
Brasil.
Durante
as investigações do milagre da hóstia e principalmente posteriormente, quando o
bispo do Ceará e o Vaticano se recusaram a reconhecer a veracidade dos eventos
miraculosos, o clero e a intelectualidade brasileira notadamente racista e
misógino passaria a atacar de forma virulenta a imagem de Maria de Araújo. Acusou-se
ela de tuberculosa, histérica, similar ao homem de Darwin, (isto é, macaca),
estúrdia, candorça diabólica, prostituta.
Tais
ataques surtiram rápido efeito, pois num período relativamente curto as
narrativas sobre os milagres de Juazeiro protagonizadas antes por ela, foram
ganhando outro protagonista, dessa vez mais palatável para a história oficial. Um
homem branco, descendente das melhores famílias do Cariri, Cícero Romão
Batista. Ainda nas primeiras décadas do século XX a figura deste padre assumiu
o primeiro plano como personagem principal nas narratividades construídas sobre
o milagre da hóstia e igualmente sobre a história de Juazeiro do Norte.
Quando
Maria de Araújo veio a falecer no mês de janeiro de 1914, se passara vinte anos
de sua condenação e já repousava ela e sobre seu protagonismo histórico e
social no movimento político e religioso de Juazeiro um relativo silenciamento.
No entanto mesmo após a sua morte, não descansariam os seus detratores. A
destruição do seu túmulo e o sequestro de seus restos mortais em 1931 também
não seria suficiente para aqueles que estavam empenhados em fazer desaparecer
toda e qualquer memória de sua existência.
O
intelectual, historiador e escritor mais empenhado em soterrar o protagonismo,
a história e a memória de Maria de Araújo foi sem dúvida o padre Antônio Gomes.
Em 1956 ele publicou na Revista Itaytera do Instituto Cultural do Cariri um
artigo panfletário intitulado “Apostolado do embuste” em que faz a defesa do
episcopado de dom Joaquim José Vieira e o converte no grande campeão da
campanha movida por este clérigo brasileiro contra Maria de Araújo e os
“pretensos milagres” do “sangue bichado”. (apud, GOMES, 1956). Para este
historiador Maria de Araújo não protagonizou nenhum milagre, apenas serviu como
títere e cobaia, (pois era mulher e fraca) de um ardiloso plano arquitetado por
Joaquim Teles Marrocos, jornalista que teria sido o responsável pela divulgação
nos jornais da época das primeiras notícias do milagre da hóstia em Juazeiro.
O
historiador Antônio Gomes de Araújo acusa José Marrocos de ter planejado tudo,
de ter se aproveitado junto a Maria de Araújo da boa-fé do padre Cícero Romão
Batista e assim pelos meios mais ardilosos de que dispunha fanatizou os
crédulos caririenses bem como o próprio clero e as autoridades políticas do
sertão cearense.
José
Marrocos, também foi responsabilizado após a sua morte em 1910, como tendo sido
o homem que abriu o sacrário da igreja matriz do Crato e furtado os panos
ensanguentados que lá tinham sido depositados por ordem do bispo dom Joaquim
José Vieira no começo da década de 1890 quando os milagres estavam sob
investigação episcopal. Segundo Antônio Gomes de Araújo, o professor José Teles
Marrocos fabricou em seu laboratório as hóstias ensanguentadas através de
processos químicos e convenceu Maria de Araújo a enganar o padre Cícero Romão
Batista e outros clérigos que para Juazeiro acorreram a fim de testemunhar os
milagres da ‘hóstia sanguinolenta’.
Para
evitar que seu crime fosse descoberto caso os panos fossem analisados em
Fortaleza ou na capital da república, José Marrocos os furtou e escondeu em sua
casa, na cidade do Crato, onde foram encontrados após sua morte junto com um
manual escrito em francês que ensinava como produzir sangue artificial através
de processos químicos.
No
artigo, Antônio Gomes lança mão de vários adjetivos para predicar Maria de
Araújo: “astuta,” “sonsa,” “embusteira,” “solerte,” “tintureira,” “curiboca,”
“co-burlã,” “atriz,” “co-taumaturga.” O historiador lhe atribui papel de
coadjuvante nos eventos miraculosos, pois para ele o principal responsável pela
fabricação do milagre foi José Marrocos que era homem e supostamente cortejava
Maria de Araújo, isto é, o historiador chega a aludir durante vários trechos do
seu artigo que Maria de Araújo e José Marrocos entretinham uma relação amorosa
espúria e sendo uma mulher fraca e de raça inferior Maria de Araújo deixou se
arrastar pelos galanteios e pela mente maquiavélica de José Teles Marrocos.
Segundo
o historiador brejossantense “José Marrocos osculava a mão de Maria de Araújo,”
“Assim, Maria de Araújo não era tão negra e sem atrativo, que não atraísse os
encômios babados, de seu simulado devoto [José Marrocos]. (GOMES, 1956). A
defesa que o padre e historiador Antônio Gomes faz da ação de dom Joaquim José
Vieira no combate aos milagres de Juazeiro estende-se ao padre Cícero Romão
Batista que segundo ele foi uma vítima dos dois embusteiros e amantes, pois foi
induzido pelo primo José Marrocos e pela sua protegida Maria de Araújo a
acreditar nos milagres.
Os
argumentos do historiador Antônio Gomes são fundamentados pela autoridade de
pessoas que segundo ele são fidedignas, pessoas com as quais ele conviveu e que
representaram ao longo da primeira metade do século XX, os melhores homens e os
melhores caracteres do Cariri cearense. São padres, políticos e intelectuais
caririenses cuja palavra não podia ser posta em dúvida, por isso ele invoca
permanentemente os nomes e os testemunhos no artigo-processo-crime contra José
Marrocos e Maria de Araújo.
Na
década de 1960 a estratégia de invisibilização e esquecimento do protagonismo
histórico de Maria de Araújo seria aprofundado com construção na Serra do
Catolé (hoje o Geossítio do Horto) do monumento em homenagem ao padre Cícero
Romão Batista que desde a década de 1930 era alvo da devoção popular a quem se
atribuía realização de milagres e a santidade, além disso a publicação do livro
Milagre em Joaseiro do historiador norte americano Ralph Della Cava consolidou
nos meios acadêmicos a figura de Cícero Romão Batista como o protagonista da
história do movimento político-religioso de Juazeiro.
No
livro de Ralph Della Cava a beata Maria de Araújo aparece apenas como a mulher
em quem o padre Cícero Romão Batista realizava o milagre da hóstia ou quando
muito a mulher na qual ele, o homem santo, testemunhava a realização de um
milagre. Além disso, Ralph Della Cava contribuiu para difusão de um equívoco
com relação a imagem de Maria de Araújo, pois sendo esta sempre descrita nos
documentos do século XIX e início do XX, como uma mulher negra, Della Cava
apresenta-nos uma outra fotografia desta, agora a de uma mulher branca com
crucifixo nas mãos, como sendo a beata dos milagres.
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Na primeira imagem a direita vemos uma mulher branca com um crucifixo nas mãos,
representando uma beata das muitas que havia em Juazeiro na primeira metade do
século XX, esta imagem foi divulgada pelos historiadores Antônio Gomes e Ralph
Della Cava como sendo a fotografia de Maria de Araújo, na segunda imagem a
esquerda vemos a fotografia de uma mulher negra que tradicionalmente se
considera como sendo a original da beata dos Milagres. (Imagens da Internet). |
A
divulgação desta imagem já havia sido feita pelo historiador Antônio Gomes de
Araújo como ilustração ao seu artigo “Apostolado do embuste.” A divulgação
desse suposto retrato de Maria de Araújo como mulher branca destoando
completamente da representação discursiva dos documentos do Inquérito I e
Inquérito II, bem como das descrições dela feita pelas pessoas que a conheceram
e pelas cartas de Cícero Romão Batista e até mesmo da fotografia considerada
autêntica dela vestindo um hábito preto, em pé a poiada numa cadeira, tinha
como principal objetivo criar uma ambiguidade em torno da memória de sua
imagem, facilitando assim o seu esquecimento.
Repercutindo
ainda mais a estratégia de apagamento da imagem de Maria de Araújo o filme
Padre Cícero e os milagres de Juazeiro (1975) de Hélder Martins de Moraes,
veicula uma imagem cada vez mais branqueada dela, pois a pessoa convidada para
interpretar esta personagem no cinema foi a atriz e escritora Ana Miranda, uma
mulher branca e que representava para as telas do cinema o estereótipo da
beleza aceitável numa obra de arte cinematográfica.
Em
1984 a representação de Maria de Araújo como uma mulher branca, frágil e que
foi o veículo dos milagres do padre Cícero foi massificada com a transmissão
pela Rede Globo de Televisão, da minissérie “Padre Cícero”, que trazia a atriz
Débora Duarte como a atriz coadjuvante que interpretava Maria de Araújo. Por
ocasião da exibição da minissérie popularizou-se por todas as regiões do país a
imagem do padre Cícero como um homem cercado santo que foi injustiçado pelas
autoridades intolerantes e discricionárias da igreja católica retrógrada
vinculada a um tradicionalismo antimoderno.
Foi
assim que a representação de Maria Magdalena do Espírito Santo Araújo chegou ao
século XXI. Completamente invisibilizada, sua memória e sua história apagadas,
sua imagem envolta sob as brumas da ambiguidade, e muitas vezes confundida com
a beata Mocinha, governanta da casa do padre Cícero.
Maria
de Araújo teve seu protagonismo negado para que a figura de Cícero Romão
Batista como homem, político e representante do clero pudesse emergir para a
história do Brasil e também ganhasse as condições necessárias de galgar da
oralidade da cultura popular do Nordeste brasileiro até as páginas das
hagiografias da Igreja Católica Apostólica Romana, pois como o definiu o
historiador Antônio Gomes, ele foi apenas um padre piedoso e de boa-fé que o
químico José Marrocos e sua comparsa Maria de Araújo enganaram.
A
mobilização de discursos e narrativas foi tão eficaz sobre a história de Maria
de Araújo que quase cento e dez anos após sua morte seu cadáver continua
desparecido, seu protagonismo continua apagado da historiografia e seu nome e
sua imagem envoltos nas sobras do esquecimento.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO,
Antônio Gomes de. Apostolado do embuste, A Província Editora, Crato,
2014.
CAVA,
Ralph Della. Milagre em Joaseiro, Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1977.
NETO,
Lira. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, Companhia das Letras,
São Paulo, 2009.
PEIXOTO,
Alencar. Joazeiro do Cariry, Editora IMEPH, Fortaleza, 2011.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029033_06&Pesq=milagre%20de%20joazeiro&pagfis=23147
(acesso em 06 de maio de 2023, 10h30min.)