O
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso voltou a destilar preconceito contra a
população mais pobre, como fez numa entrevista recente. "É curioso ver que em países como os nossos,
com um nível educacional relativamente pouco desenvolvido, as pessoas têm muitas
carências. Aqueles que dão às pessoas a sensação de que atenderam às suas
carências ganham uma certa permissão para se desviar da ética. É pavoroso, mas
é assim. É populismo. É a cultura que prevalece nesses países", disse
ele, ao jornal Estado de S. Paulo.
Neste
domingo, em seu artigo mensal, ele voltou a bater na mesma tecla. "Será que o Bolsa Família (que se originou em
governos anteriores e sem tanto alarde) foi suficiente para amortecer a
consciência popular e fazer crer que a esperança em dias melhores se contenta
com migalhas?", escreveu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
repetindo a tese de que a população mais carente, que vota predominantemente em
Lula, seria mais tolerante com a corrupção. Logo ele, FHC, que blinda o senador
Aécio Neves (PSDB-MG) e ajudou a articular um golpe que derrubou a presidente
honesta Dilma Rousseff e instalou no poder a organização criminosa (segundo a
procuradoria-geral da República) liderada por Michel Temer.
Ainda há tempo?
Por Fernando Henrique Cardoso
Começo
de ano. A praxe indica que nestas ocasiões é melhor expressar os desejos de um
próximo ano melhor e lastimar o que de ruim houve no anterior, sem deixar de
soprar nas brasas de esperança suscetíveis de serem encontradas no meio de
desvarios e extravagâncias porventura havidas. Será?
Não
sei. Fui formado com a obsessão da dúvida metódica cartesiana. A certa altura,
lendo Pascal, percebi que mesmo para os mais crentes o caminho da salvação não
se encontrava no cômodo embalar da fé sem pitadas de dúvidas. Melhor tê-las e
tentar responder, com a lógica (e a esperança), ao demônio da descrença. Por
isso coloco o ponto de interrogação no título deste artigo.
Mantenho
a esperança, mas convém reconhecer que 2017 mostrou que não dá para ter certeza
de que os riscos da guerra e do irracional não prevaleçam. Já tivemos sonhos de
cooperações entre Estados quando os diplomatas se dedicavam ao multilateralismo
para resolver problemas ou pelo menos promover convergências de opiniões, mas
só vemos confrontações. Quantos atentados terroristas houve? Muitos. E mesmo
que um só tivesse havido, matando crianças e adultos que nada têm que ver com
as fúrias políticas e religiosas dos fanáticos, já seria suficiente para
assustar a Razão. Que dizer do Boko Haram, das mortes provocadas pela Al-Qaeda
e pelo Estado Islâmico, dos atentados na Tunísia, no Iêmen ou onde mais seja,
que prosseguem no caminho perverso do ataque, já antigo, às torres gêmeas ou ao
Bataclan? O mundo parece percorrer um longo ciclo de desrazão que pode muito bem
levar a uma guerra mundial.
Quase
a cada mês vem nova má notícia. Pior, não são apenas os ditos terroristas que
matam a rodo. Nas cidades brasileiras o crime organizado, muitas vezes com
fuzis na mão, em conluio com o narcotráfico e o contrabando de armas, mata nas
nossas barbas milhares de pessoas por ano. Estamos longe das terras
conflagradas da Síria, do Iraque, da Península Arábica ou de onde mais seja,
mas nos morros cariocas, nos presídios amazônicos, nas terras desbravadas do
oeste ou nas ermas periferias de São Paulo se mata sem piedade, embora com
menos repercussão global do que quando ataques terroristas são realizados em
capitais europeias.
E
que dizer de outro tipo de matança, não apenas moral, mas concreta, quando a
corrupção praticada pelos criminosos de colarinho branco, em escala e despudor
sem precedentes, além de arrasar moralmente setores ponderáveis das elites
dirigentes, deixa ainda mais à míngua os que dependem dos serviços do Estado,
sobretudo os pobres?
Diante
deste quadro, cujas tintas espessas sublinho para dar nitidez ao olhar, embora
sabendo que também se possam ver paisagens menos sombrias, qual tem sido a
resposta dos povos? Nos Estados Unidos, Donald Trump elegeu-se, contrariando o
establishment, os partidos, boa parte da mídia e de Wall Street. Na Europa
Central e do Leste, governos com participação de forças de extrema direita se
afirmam na Hungria, na Áustria e na Polônia. Nas pesquisas brasileiras de
opinião, pelo menos até agora, sem o quadro eleitoral formado, despontam um
capitão irado de cujas propostas pouco se sabe e um líder populista sobre o
qual pesam acusações (e mesmo condenações) que destroem o sonho que outrora
representou.
Será
que, antes de recobrar a Razão, o mundo precisará passar por novas privações e testemunhar
o abrir do cogumelo atômico que a irada Coreia do Norte ameaça despejar no
Japão, quem sabe saltando sua irmã do Sul pelo temor do contágio, podendo mesmo
alcançar os Estados Unidos? Viveremos os horrores de uma guerra globalizada? Há
décadas parecia que a confrontação dos Estados Unidos com a antiga potência
soviética ou mesmo com a China, sem falar nas fricções entre Índia e Paquistão,
ou na potencial reação atômica de Israel ao Irã dominador da técnica nuclear,
estava controlada. O que esperar quando Donald Trump decreta Jerusalém capital
de Israel, animando um conflito milenar?
E
no Brasil? Já não terá bastado o descalabro econômico-financeiro produzido pelo
“capitalismo de laços” que o lulopetismo patrocinou, envolvendo e beneficiando
empresas e partidos políticos, para que aprendamos a lição de que não há
atalhos fáceis para o desenvolvimento e que este requer o império da lei? Será
que o Bolsa Família (que se originou em governos anteriores e sem tanto alarde)
foi suficiente para amortecer a consciência popular e fazer crer que a
esperança em dias melhores se contenta com migalhas?
É
cedo para responder. Mas não para agir com convicção e tudo fazer para que tais
horizontes não despejem novas tempestades. Que não se iluda o leitor: o pior
pode sempre acontecer. Evitá-lo depende de cada um e de todos nós. Não há fé
cega na Razão ou nos bons propósitos que barre o Irracional se não se criarem
alternativas que impeçam o pior de prevalecer, pela guerra ou pelo voto. As
consequências, já dizia o conselheiro Acácio do Eça de Queiroz, vêm sempre
depois...
Posta
a dúvida, construamos caminhos mais razoáveis. Pelo menos no que está ao
alcance da nossa mão. O Brasil precisa, urgentemente, de bom senso. Se as
forças não extremadas se engalfinharem para ver quem entre vários será o novo
líder e não forem capazes de criar consensos em favor do País e do povo, o pior
acontecerá. No afã de juntar, importa diminuir as divergências sobre o que não
é essencial. Com esperança, e falo simbolicamente, as forças representadas (ou
que os adiante mencionados gostariam de representar) por Alckmin, Marina,
Meirelles, Joaquim Barbosa, ou quem mais seja (incluídos os setores ponderados
da esquerda) precisam entender que os riscos se transformam em realidade pela
inércia, pela covardia ou pela falta de visão dos que poderiam a eles se opor.
Bom
2018!
*SOCIÓLOGO,
FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
(Com informações do Brasil 247).