É
bastante representativo que a música mais conhecida fora da peça Orfeu da
Conceição, de Vinicius de Moraes, seja a que canta “tristeza não tem fim /
felicidade sim”. Em todas as suas estrofes, a canção mostra como a felicidade é
efêmera: gota de orvalho numa pétala de flor, pluma que o vento vai levando
pelo ar. Curiosamente a música se chama "Felicidade", e é
representativa porque resumiria o caráter da tragédia, que virou filme pelas
mãos do francês Marcel Camus (sem parentesco aparente com o outro Camus, o
Albert), com a trilha sonora assinada por Tom Jobim. Mas será que toda tragédia
mostra que a tristeza não tem fim, apenas, no caso, a felicidade?

O
filme de Camus, Orfeu negro, é falado em português e situado no morro da
Babilônia, como se fosse uma espécie de Olimpo carioca, com o Pão de Açúcar de
um lado, a praia do Leme do outro. Vinicius percebe isso e escreve na
introdução da peça: “O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao
longe”. Ele traz o mito trácio de Orfeu para a realidade dos negros e das
favelas do Rio de Janeiro no fim da década de 1950, com direito a samba,
carnaval e sensualidade. Novamente para comprovar isso, na introdução da peça,
Vinicius sugere que “todas as personagens da tragédia devem ser normalmente
representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa
ser, eventualmente, encenada com atores brancos”. Ou seja, não era uma cota,
mas uma indicação de como o seu autor, o branco mais preto do Brasil, ficaria
satisfeito. E, comprovando o nosso racismo velado, teria sido, segundo
informações do próprio site da peça, apenas na primeira montagem da peça, em 25
de setembro de 1956, com quase meio século de existência, que o Theatro
Municipal recebeu um ator negro em seu palco. No caso, um elenco inteiro.
Para
perceber a importância do herói Orfeu para a mitologia dos trácios – um povo
que ficava exatamente na ligação entre o que hoje chamaríamos de Grécia,
Bulgária e Turquia –, Voltaire, em seu Dicionário filosófico, o compara a
Abraão, entre judeus, cristão e muçulmanos, a “Tot entre os egípcios, o
primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia” e “Odin nas nações
setentrionais”. Sua história, diferente de outros mitos, não tem uma versão
“oficial”, não aparecendo em Homero ou Hesíodo, por exemplo, mas já era
conhecido no tempo de Ibicus (c. 530 a.C. ) e Pindar (522 – 442 a.C.), que o
chamava de “pais das canções”. Em algumas fontes, se diz que Orfeu seria filho
de Apolo e da musa Calíope (como a própria peça de Vinicius, que coloca como
sua mãe Clio, a musa da História), em outras, esse parentesco não é citado. Há
muitas referências a Dionísio, inclusive chegando a dizer que ele seria a
hipóstase do deus grego, ou seja, sua realidade concreta, sua substância, sua
“encarnação”. De qualquer forma, é curiosa a ligação com esses dois deuses
(Apolo e Dionísio), principalmente após Nietzsche, em O nascimento da tragédia,
os ter colocado em posições quase antagônicas, de um lado o belo, o perfeito, a
verdade, a razão, do outro o instinto de força, de luta, de desequilíbrio. No
meio, entre os dois, a música. É aí que Orfeu, o herói, se situa. É o ponto de
convergência entre Apolo e Dionísio.
Morto por mulheres
Se
não temos a certeza do texto oficial, podemos perceber que em todas as versões
que se contam sobre o mito, há uma coincidência: Eurídice. É por ela que Orfeu
se encanta, se apaixona, e é por ela que ele vai até o Hades, o reino dos
mortos. Os dois estão juntos quando Eurídice foge da perseguição do pastor
Aristeu, e, na fuga, pisa em uma serpente que a pica, e a mata. Desesperado, Orfeu resolve usar a sua arte
para trazê-la de volta à vida. Desce ao submundo, e encontra Hades que fica
sensibilizado com a sua música, e com o seu sofrimento, e faz-lhe a proposta de
trazer Eurídice ao mundo debaixo do sol. Hades aceita mas impõe uma condição:
desde que, na trajetória, Orfeu não olhasse para sua amada. Mas o amor nem
sempre é paciente. O desespero, a ansiedade e a insegurança foram maiores e
Orfeu, antes de chegar de volta ao mundo dos vivos, se vira e a encara. Assim,
desrespeitando a ordem de Hades, a perde para sempre. De volta ao mundo dos
vivos, Orfeu foi morto – as assassinas variam, mas sempre mulheres – por
aquelas que se sentiram desdenhadas e invejavam o amor de Orfeu por Eurídice.
“Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos
e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido
atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde
foram piedosamente recolhidas e guardadas ” – explica La leyenda dorada de los
dioses y de los héroes, da autoria do helenista Mario Meunier, citado na
apresentação da peça de Vinicius.
O
filme de Camus, que venceu a Palma de Ouro do festival de Cannes, além de
ganhar o Oscar de melhor filme falado em língua estrangeira, segue esse mito.
Orfeu (Breno Mello) é um motorneiro e um grande músico, um dos principais
componentes da fictícia escola de samba do morro da Babilônia. Segundo a lenda
em torno de si, é ele quem faz, com o seu violão, o sol se levantar todos os
dias de manhã. É um sujeito alegre, simpático, por quem as mulheres do morro
vivem suspirando, enquanto os homens o consideram um grande camarada. Mais
atirada que as demais, Mira (Lourdes de Oliveira) consegue levá-lo a um
cartório para que fiquem noivos. Mas o homem que os atende, como um oráculo, já
vaticina: Orfeu sempre ficou, fica e ficará com Eurídice. E Eurídice (Marpessa
Dawn) já estava lá. Tinha acabado de chegar ao morro da Babilônia, vinda do
Nordeste, fugindo de um homem, fazendo as vezes do pastor Aristeu, que ela diz
que lhe quer mal. Chega no início do carnaval e vai ficar na casa da alegre
Serafina (Léa Garcia), que vai proteger o casal e criar situações para que Mira
não perceba a aproximação dos dois. A partir daí, a história segue até o seu
esperado fim.

O
que Vinicius de Moraes (e depois Camus) fez com Orfeu foi seguir uma tradição
da modernidade, a mesma que o irlandês James Joyce já tinha seguido ao visitar
a Odisseia em seu clássico Ulysses. Eles trazem o mito grego para os dias de
então, mostrando como eles são eternos, e adaptar determinadas passagens para
cenários e situações da cidade em questão. Joyce com Dublin, Vinicius com o
Rio, mas o Rio mais pobre que há. Além disso, Joyce também usou da linguagem
que era mais cara aos anglo-saxões, a literatura, enquanto Vinicius quis
misturar palavra, som e gestos no teatro, mostrando o caráter menos letrado do
nosso povo, mas não menor em nenhum aspecto, por conta disso.
Na
ida ao reino dos mortos, por exemplo, Camus teve a brilhante ideia de adaptar
um dos principais símbolos que há no Brasil de ligação entre os vivos e os
não-vivos. Após a morte de Eurídice, Orfeu fica vagando pela cidade cheia por
causa do carnaval. Em seguida, é levado por um faxineiro que se apieda de seu
desespero para um terreiro de uma religião afrodescente, onde acompanha um
ritual de evocação de espíritos. O seu acompanhante sugere que ele cante, para
chamar Eurídice de volta, e Orfeu obedece. O clima da cena aumenta, com som de
atabaques crescendo de volume, várias mulheres vestidas de branco andando em
círculos, como se quisessem entrar em transe, até que uma delas recebe um
santo. Orfeu fica assustado, mas continua cantando, até que se ouve uma voz, a
voz de Eurídice, vinda de trás de Orfeu. Ele fica ainda mais surpreso, não esperava
conseguir encontrá-la. Eurídice diz que eles poderiam conversar, mas que nunca
mais se veriam. Ele jamais poderia se virar para vê-la. Se fizesse isso, ela
desapareceria para sempre. Desesperado e sem aguentar ficar longe da mulher que
ama, Orfeu se vira e vê não Eurídice, mas uma mulher mais velha, que não tinha
aparecido até então, e que logo depois, sai do transe. O espírito de Eurídice
já tinha ido embora.
Ao
voltar para o morro, depois de já ter encontrado, ao menos, o corpo de
Eurídice, Orfeu, carregando o cadáver nos braços, é recebido por uma
ensandecida Mira, que havia descoberto que estava sendo enganada. Ela ataca
Orfeu que morre, ao cair de uma ribanceira, junto com Eurídice. O herói, na
morte, se une à sua amada.
Além da felicidade
A
história de Orfeu, como a grande maioria das tragédias gregas, mostra que não
podemos escapar do nosso destino último, que é a morte. Mas mostra também que até lá, até o suspiro
final, podemos navegar nessas águas nem sempre calmas da maneira como
conseguirmos. Nem sempre os ventos são a favor, mas podemos nos adaptar para
tirar o melhor proveito disso. O que Vinicius e Camus fazem, com essa adaptação
do mito trágico, é jogar luz ao caráter melancólico, além do galhofento, da
cultura nacional. Mostram que, além da felicidade, também é do nosso caráter,
até por sermos humanos, a tristeza. Não dá para escapar dela. Essa afirmação
pode parecer até estranha num momento como os tempos presentes, em que se busca
o prazer de maneira desesperadora, como se viver sem prazer já fosse um
sofrimento em si. Mas tristeza e felicidade são, de uma maneira misteriosa,
interligadas. Assim como Apolo e Dionísio.
Certamente
há momentos em que é complicado pensar que haverá outro carnaval, quando a
quarta-feira de cinzas chega, como mostra uma das estrofes da música
“Felicidade”, de Vinicius: “A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do
carnaval / A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a
fantasia / De rei ou de pirata ou jardineira/ Pra tudo se acabar na
quarta-feira”. Falta um ano inteiro de tristezas, que parecem não ter fim.
Porém,
é também certo que o próximo carnaval é mais aguardado e saboreado quanto mais
cinzenta for a quarta-feira. É essa dualidade que faz com que ambos os lados
tenham sabor. Se só tivermos contato com um deles, ele acaba se autodeprimindo,
ficando sem forças, já que não haverá felicidade o suficiente para se manter
para sempre alegre, ou para livrar de uma tristeza profunda. E basta-nos estar
na vida para saber que ela sempre se movimenta. Como se a felicidade tivesse
fim, sim, mas a tristeza também. Apenas não conseguimos enxergar esse fim,
quando estavamos vivenciado um ou outro sentimento. Mas o simples fato de os
sentimentos existirem, mostra essa dinâmica de um lado para o outro, como se
fosse um pêndulo.Apesar da grande tragédia, o fim do longa deixa uma pista para
essa conclusão. Os dois meninos que acompanham Orfeu e Eurídice durante todo o
filme, correm para tocar o violão de Orfeu e assim fazer o sol nascer – como o
herói sempre fazia. O sol, de maneira completamente independente das nossas
vidas, continua a se levantar. Mas nós podemos dar um sentido para ele – no
caso, tocando a música que o fará despertar. Ao se levantar, o sol também nos
mostra mais que uma indiferença para com todas as tragédias debaixo dele. Nos
aponta uma proposta de vida: de que precisamos seguir, sempre. Mesmo nos
momentos mais tristes.