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IMAGEM ILUSTRATIVA |
Meus
ancestrais vieram de lugares remotos da Europa Oriental. Tinham uma cultura
rica em observações da vida, plasmadas com frequência em ditados. Um deles, no
idioma ídish, diz o seguinte: "Iberguekumene tsores iz gut tsu
dertseiln" (aflições superadas são boas de contar). Lembrar a luta contra
a ditadura não deixa de ser uma catarse.
Os felizes são curiosos. Os
infelizes já sabem demais.
(Álvaro Moreyra)
Meu
querido companheiro de viagem,
Não
sei se você se lembra. Corriam os anos 70 e eu andava revoltado com alguns
anúncios classificados, onde profissionais portugueses altamente qualificados
se ofereciam para trabalhar no Brasil. Fugiam das colônias africanas, que se
libertavam da tirania colonial. Tinham recebido instrução técnica em Moçambique
e Angola, sem pagar nada, e, quando tiveram que retribuir, saltaram do barco.
Rabisquei alguns textos, mas você, sabiamente, me sugeriu uma trincheira
diferente. Foi aí que começamos a trabalhar juntos no jornal Movimento. As
reuniões de pauta eram num prédio decadente da Lapa, ela mesma um bairro
degradado. Escrevi alguns artigos, sempre sob pseudônimo. Uma entrevista com o
general Pery Bevilacqua, militar legalista na época do Jango e que defendia a
convocação de uma Assembleia Constituinte, foi integralmente censurada. Tempos
duros, tempos de resistência, tempos de busca.
Depois
deste início, nos esbarramos muitas vezes. Às vezes, na correria, cheirando gás
lacrimogêneo (experiência que não recomendo a ninguém). Outras, com a alma
lavada. A volta de Luiz Carlos Prestes do exílio, num Galeão abarrotado, lambeu
nossas feridas. Sem equipamento de som, o Cavaleiro da Esperança discursou e
suas palavras eram repetidas pela multidão. A História estava ali. Mais tarde,
aprendi que é preciso ter muito cuidado com o excesso de reverência às
personalidades fortes. Em política, isso causa estragos graves. Faz a gente
deixar de pensar.
O
que nos unia era o inimigo comum: a ditadura. Surgiram palavras de ordem unificadoras,
que deram liga a um grande movimento de massas que derrotou, finalmente, a
caserna fascistizada. Quem acreditou na luta armada, foi massacrado. A partir
de 1985, com o restabelecimento de alguns direitos, cada macaco procurou seu
galho. Depois de mais de duas décadas, as esquerdas podiam aparecer a céu
aberto. Aí, meu velho, é como diz o ditado: quem tem opção, tem aflição. O
mercado ideológico ampliou a oferta e nossos caminhos se afastaram.
Você
foi ativo na construção do PT. Acreditou que, finalmente, o Brasil estava
construindo um grande partido socialista de massas, com raízes na vanguarda da
classe operária, nas teses da Teologia da Libertação e na experiência dos
exilados que voltavam. Os primeiros documentos afirmavam essa vontade e o compromisso
com a ultrapassagem do capitalismo. Havia um entusiasmo legítimo com aquela
novidade, mas eu não gostava especialmente de um aspecto: a impressão que
tentavam passar de que a História começava naquele momento, como se nunca antes
nesse país tivesse havido partidos de esquerda, lutas sociais, organização das
massas. Botei o pé em outra estrada.
Teu
partido chegou ao Planalto, mas aí os tempos e as propostas já eram outros. O
projeto socialista foi banido. Em seu lugar, uma tentativa burocrático-administrativa
de gerenciar o capitalismo, que implicava em promiscuidade com a classe
dominante e renúncia à organização política das massas. Ressurgiu das cinzas um
mal-disfarçado culto à personalidade, de triste memória para a esquerda.
Adaptou-se ao modus operandi do capital, quem sabe numa tentativa – a meu ver
ingênua – de miná-lo por dentro. Faz lembrar, com as devidas e importantes
ressalvas, o Partido Comunista Italiano. Maior PC do Ocidente por muitos anos,
adernou tanto ao centro que ... desapareceu.
Meus
ancestrais vieram de lugares remotos da Europa Oriental. Tinham uma cultura
rica em observações da vida, plasmadas com frequência em ditados. Um deles, no
idioma ídish, diz o seguinte: Iberguekumene tsores iz gut tsu dertseiln
(aflições superadas são boas de contar). Lembrar a luta contra a ditadura não
deixa de ser uma catarse. Continuamos lutando por um mundo mais justo e
fraterno, mas, à diferença dos idos de março, percebemos o caminho de forma bem
diferente. Resta-nos a memória comum e a certeza de que estaremos, em algum
momento, em trincheiras comuns. É como dizia o Millôr Fernandes, num de seus
célebres Hai-Kais: Fiquei bom da vista! / Depressa, / Um oculista!.
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Por Jacques Gruman
Créditos: Carta Maior