Estava
eu, me preparando para dormir, quando resolvo dar aquela “última passada” no FB
e me deparo com uma postagem que dizia:
“Sou negra, e para mim, em vez de cotas,
deveriam dar passagens de volta pra África para aqueles que choram pelo passado
que nem viveram”.
Tá,
e daí? E daí que eu simplesmente não consegui dormir e quase sucumbi ao ímpeto
de me levantar à 1h da madruga, para tentar escrever num texto tudo aquilo que
eclodia em minha mente após ler tamanha prova do que, eu humildemente, chamaria
de pura ignorância histórica, falta de identidade, falta de conhecimento e
reconhecimento sobre a nossa própria história.
Eu
queria muito, muito mesmo, ter alguma competência intelectual para produzir
algo que colaborasse para o esclarecimento sobre o quão positiva, necessária e
justa é a implantação de cotas raciais num país como o Brasil, onde sequer
temos a capacidade de entender quem é e quem não é parte da população negra.
Bem,
em minha mente, o processo histórico da humanidade me oferece argumentos simples,
porém suficientes para entender que as cotas, não somente estas, mas todo o
processo de políticas de reparação e ações afirmativas envolvendo os negros,
são plenamente plausíveis e, assim sendo, merecem o devido respeito e o mínimo
de conhecimento histórico, por parte daqueles que pretendem argumentar contra
os mesmos.
Digo
argumentar porque, admiradora da História, como tenho a ousadia de me enxergar,
não me permito paciência para ouvir achismos sem qualquer embasamento que
justifique a reprodução de tais tipos de “opinião”. Aliás, ter opinião não é
crime não, moços e moças! Entretanto, seria de bom tom e muito mais louvável
que suas opiniões fossem articuladas e apresentadas depois de muita leitura,
muita pesquisa e muita troca de conhecimentos.
Veja
bem, conhecimentos não são aquelas coisas mal pensadas e formuladas e que são
excrementadas no feed de notícias de suas redes sociais. Não! Isso não! Apenas
parem! Reprodução de discursos sem questionamento sobre os mesmos, sobre quem
os forjou, com base em que os forjou, por quê os forjou e com que intenção os
forjou, não é maneiro não!
Então,
vamos lá! Como professora que sou, não tive a honra de ser registrada com o
nome Maria, mas não perco a “mania de ter fé na vida”, como diz o grande
artista Milton Nascimento. Para início de conversa, pergunto a você, caro
leitor: você acredita que a condição social e econômica dos seus avós, teve
alguma influência ou impacto para que os filhos dos mesmos, ou seja, seus pais,
estivessem hoje na condição social e econômica que estão? ( ) Sim ( ) Não.
Você
acredita que, sendo seus pais quem são, tendo as profissões que têm, a
escolaridade que têm, a visão de mundo que têm, a condição de classe social e
econômica que têm, influenciou ou influenciará no seu futuro, na classe social
e econômica que você será enquadrado devido às condições financeiras que você
apresentará dentro da sociedade em que vive? ( ) Sim ( ) Não.
Vou
tentar ser mais vulgar. Pergunto: Você acha que ser filho de família
predominantemente branca, de classe média alta ou elite, moradora das áreas
mais nobres e de maior custo de vida do país, teria algum impacto no seu
futuro, na sua educação, na sua profissionalização e por fim na classe social e
econômica em que as pesquisas do governo te enquadrarão?
Você
acredita na maior tentativa de coação moral, contra as minorias sociais, de
todos os tempos, a meritocracia? Esta reproduz a ideia de que em nossa
sociedade tanto faz ser homem ou mulher (nem vou falar sobre tudo que há na
questão de identidade de gênero entre ser homem e ser mulher), ser negro ou
branco (nem vou falar sobre tudo que há na questão de identidade étnica entre
ser negro e ser branco), ser rico, classe média, pobre ou miserável, ser
natural das regiões norte e nordeste ou sul e sudeste, o que conta é o esforço
individual de cada ser.
Cada
um é aquilo que tratou de ser. Cada um está justamente onde merece. Mas, tenho
a impressão que o buraco é bem mais fundo do que tentam nos fazer crer.
Voltando às questões que lancei bem aqui acima, vamos tentar traçar uma rota
para organizar nossos pensamentos e argumentos.
Eu,
particularmente, responderia SIM às duas primeiras questões: sim, a condição de
classe social e econômica dos meus avós tiveram influência direta na vida dos
meus pais, assim como, a condição social e econômica dos meus pais tiveram
influência direta no meu enquadramento social e econômico na atualidade. Seria
ingênuo e até ignorante da minha parte acreditar que sendo meus pais, filhos de
famílias pobres, na fase adulta da vida, seriam reconhecidos em classes sociais
e econômicas diferentes.
O
mesmo ocorre comigo e meu irmão, como poderíamos fazer parte da elite hoje se
nosso histórico familiar se encontra todo em outro lugar? É claro que, é algo
razoável que uma geração viva melhor que a anterior, pelo menos é bem comum que
isso aconteça, mas, ao olharmos o tabuleiro de cima, as melhorias não nos
trazem um afastamento significativo de nossas raízes. Pois bem, se para mim e
para você, o passado tem um peso, tem uma influência, uma participação, por que
para os negros – leia-se afrodescendentes: pretos e pardos – esse passado não
teria nenhuma ligação para seu atual contexto social, econômico, cultural e
político?
Por
que cometer a grosseria intelectual de dizer que os negros de hoje nada tem a
ver com os nossos ancestrais africanos e que, portanto, não devem receber
nenhum tipo de reparação histórica pelo contexto que os empurrou e encurralou
até aqui? Será que a ligação dos afrodescendentes de hoje está tão longe assim
dos africanos que foram alijados de sua condição de humanos, mesmo esta sendo
um bem inalienável? Será que o meu marido negro, filho e neto de negros, está
realmente muito distante dos escravizados que fazem parte de sua história
familiar, de sua árvore genealógica?
Afinal,
a escravização do negro africano no Brasil, foi teoricamente abolida há 127
anos. Poxa, 127 anos é muita coisa, nem respinga mais nada em nós depois de
tanto tempo! Será? Voltemos a citar o meu marido. Ele tem 30 anos. Gostaria de
citar as idades certinhas de seus pais, avós, bisavós e tataravós, mas, no
momento, não há possibilidade para obter tais informações, mas seu avô paterno
completou há quatro meses, 90 anos, assim, dá para imaginar que os bisavós
paternos do meu digníssimo, teriam aí, por baixo, 110 anos, portanto,
provavelmente, vivenciaram a escravização do negro africano em nosso país.
Partindo
daí, sigo uma linha de raciocínio que para mim, soa como lógica: Os bisavôs e
bisavós do meu marido tiveram uma condição de vida que influenciou sim na condição
de vida dos seus avôs e avós, um deles é esse senhorzinho que acabara de
completar noventa anos.
Logo,
a condição de vida dos avôs e avós do meu marido, foi determinante para a
consolidação da vida do meu sogro e sogra como ela é hoje e, portanto, determinante
para que meu marido e seus irmãos estejam na classe social e econômica que
estão neste exato momento histórico.
Tudo
bem até aqui? Vamos prosseguir. Que há uma ligação direta e inegável entre as
condições de vida das diversas gerações que compõem uma família, creio, está
claro. Agora, basta discutirmos sobre que condições são essas de que falo e
que, a meu ver, dão todo o embasamento para o estabelecimento de cotas raciais
nas universidades e em concursos de acesso a cargos públicos.
O
dia era 13, o mês era Maio e o ano era 1888. Após pressões do movimento
abolicionista, um membro da família Real, a Princesa Isabel, assina a tal
abolição da escravatura. O Brasil estava no final do seu período imperial,
estávamos às portas da República. E os negros, ex-escravizados, agora livres,
viveram felizes para sempre. Viva à igualdade de oportunidades entre negros e
brancos no Brasil! Viva! Mas e aí, o que a versão histórica do Homem Branco
Europeu, colonizador, tenta esconder entre as fissuras dessa versão contada a
nós?
É
historicamente sabido por todos, que a o braço que construiu o Brasil, foi o
braço negro dos africanos. Negros estes que foram impiedosamente extraídos de
seu local de origem, da sua comunidade, da sua família, da sua cultura, das
suas formas de organização social, dos seus deuses e de si mesmos. Foram
cerceados da sua condição humana e passaram a ser objetificados, coisificados.
Foram entulhados no interior de navios e foram atravessados pelo Atlântico em
condições que nenhum inseto, por mais asqueroso que nos pareça, mereceria
passar. Foram desembarcados num mundo totalmente desconhecido e inimaginável
para a lógica de vida que tinham em seu continente, a África.
Os
que conseguiram sobreviver à viagem do diabo até a terra desconhecida, além de
chegarem nesta, como peças a serem negociadas, ainda se viam impossibilitados
de sequer compreender linguisticamente o que ouviam ao redor. Eram adquiridos
por senhores brancos como instrumentos de desenvolvimento de trabalhos que
tinham um tempo de vida útil bem curto, dentro de poucos anos eram considerados
inúteis, bons para serem jogados no lixo, serem substituídos, como um
maquinário bem gasto e sem peças para fazer reparos.
Então,
esses escravizados, considerados não humanos e nem animais, tinham o “toque de
Midas” ao contrário, tudo que fosse relacionado ao negro era considerado: sujo,
profano e demoníaco. Esses negros, desde o início resistiram à condição a que
foram submetidos. Eram fugas, greves, negras abortando, assassinatos de
senhores brancos, movimentos e revoluções. Para manterem sua fé, fizeram
malabares e nos trouxeram o que chamamos de sincretismo religioso.
Foi
com muita luta, muita resistência e muita união que os escravizados, ao longo
de séculos, conseguiram se libertar. Claro, não podemos ignorar o contexto
político econômico que fez com que a Inglaterra, dona do mundo capitalista à
época, pressionasse o Brasil para o fim da escravidão, não por um sentimento humanístico,
mas por simples interesse econômico: mais homens livres, trabalho remunerado,
mercado consumidor aumentando. Simples assim!
Daí
que chegou o grande dia e a tal Princesa Isabel assinou o documento que deixava
livre todos os escravizados do Brasil. E é aí que pecam aqueles que não
enxergam a necessidade das políticas de reparação para os negros. O que
aconteceu depois do 13 de maio de 1888, estavam todos os escravizados livres
para usufruir das mesmas e idênticas oportunidades de vida que os brancos que
se sentiram no direito de dominá-los por mais de 300 anos?
A
escravidão foi abolida e com ela toda a visão e todo o sentimento de asco,
repulsa, desconsideração e desprezo que os brancos, senhores de escravos,
construíram, disseminaram e reforçaram culturalmente no decorrer de trezentos e
cinquenta anos e várias gerações, com relação aos negros? Você acredita mesmo
que aqueles que viam os negros como suas posses, seus objetos, suas coisas das
quais usufruíam como bem achasse melhor, do dia 13 de maio de 1888 em diante,
passaram a ver esses mesmos negros, como humanos detentores dos mesmos direitos
de dignidade à vida que eles?
Você
realmente acredita que a partir do 13 de maio de 1888, esse homem branco, que
se acreditou superior ao negro africano durante trezentos e cinquenta anos,
achou justo que “seu patrimônio” passasse a ser considerado gente e que assim
deveria ser tratado como igual? Você jura para mim que acredita que esses
escravizados, a partir do 13 de maio de 1888, foram conduzidos às instituições
de ensino do Brasil para que pudessem passar pelo processo de escolarização
formal e profissionalização que, provavelmente, os levariam a uma condição de
vida equiparada a do homem branco que até ontem era o dono do mundo? Você
realmente entendeu, naquela aula de História, que os negros escravizados,
humilhados, odiados, assassinados durante trezentos e cinquenta anos, foram
tranquilamente inseridos na sociedade brasileira após o bendito 13 de maio de
1888 e assim acolhidos com todo o respeito e irmandade que o homem branco
poderia oferecer?
Se
sim, se você realmente acredita nisso tudo, há duas possibilidades: ou você
realmente tem dificuldades em entender processos históricos, ou seus
professores de História do colégio foram displicentes e/ou negligentes em
demasia.
Após
o tão aclamado 13 de maio de 1888, não houve a integração do negro à sociedade
brasileira, muito pelo contrário, o que houve foram pencas de “planos
infalíveis” para a eliminação desses negros da sociedade. Eles não foram
contratados como trabalhadores assalariados, para tal, abrimos as portas para
imigrantes europeus, que além de dignos de usufruir de pagamentos pelo seu
trabalho, também dariam uma forcinha no processo de branqueamento da população
que se formava.
Aos
negros, não foram oferecidos moradia, trabalho, educação, saúde, nada! Depois
que a escravidão foi abolida, os negros foram jogados à própria sorte, visto
que não eram mais propriedade dos senhores e estes não tinham obrigações com os
mesmos e isso era algo natural, o que não foi natural, foi o governo, o Estado
brasileiro, não oferecer aos ex-escravizados, qualquer projeto de inserção na
sociedade brasileira. Será que é tão difícil enxergar que os negros não tiveram
vez em nossa sociedade, após o 13 de maio de 1888?! Durante o período em que
foram escravizados, foram impedidos por lei de se escolarizarem, não tiveram
chance de serem sequer alfabetizados.
Os
muitos ofícios que sabiam exercer lindamente, não lhes serviram como fonte de
renda, para isso, trouxemos o branco europeu pobre. Eram negros pelas ruas
batendo cabeça, entregues à fome, às múltiplas formas de violência, humilhação,
subalternização, etc. Aí você me diz: ah, mas isso já tem quase 130 anos. Pois
é, 127 anos não são o suficiente para reparar os estragos de mais de 300 anos
de subjugação, invisibilização, violação de direitos e dignidade dos negros que
foram obrigados a fazer o nosso país.
Voltando
à família do meu marido, os bisavôs e as bisavós dele foram escravizados e
quando libertos não tiveram nenhuma chance de integração na sociedade em que
viviam. Não foram inseridos tranquilamente no mercado de trabalho, não tiveram
acesso à escola, quiçá à educação superior! Não tiveram direito a oferecer
moradia digna, alimentação digna, cuidados básicos de saúde dignos aos seus
filhos, avós do meu marido. Depois, os avós do meu marido filhos de
ex-escravizados, tiveram uma vida livre, sofrida e miserável onde ainda
carregavam os estigmas da ideia do branco europeu sobre o que era ser negro.
Também, de maneira quase óbvia, não tiveram acesso à educação formal e, seus
filhos, meus sogros, não tiveram uma vida muito diferente.
Filhos
de uma família de negros, pobres, sem estudo e que ainda têm dificuldade de ser
aceitos na sociedade brasileira, também tiveram uma vida livre, sofrida e
miserável. Não sei muito, mas sei que minha sogra foi o que chamamos de boia
fria, denominação para trabalhadores rurais que recebem um tratamento que não
muito raro e sem requerer muito esforço, pode ser comparado à escravização
vivida duas gerações anteriores a sua. E dessa forma, a vida do meu marido e
dos meus cunhados, também não foi um rio de oportunidades. São homens e
mulheres livres, sofridos e, se comparados ao todo branco da nossa sociedade,
miseráveis. Estes, já tiveram acesso à educação formal, porém, pelo histórico
sócio-econômico da família, estudaram em escolas públicas.
Precisaram
trabalhar desde muito cedo, pois com os salários pagos ainda hoje à população
negra do nosso país, tinham a necessidade de somar renda em casa para ter o
mínimo de dignidade. Meu marido, foi agraciado com um dom, é artista e
enveredou pelo caminho da tatuagem e está, apesar de muita dificuldade,
alcançando algum reconhecimento na área em que atua. Seu sonho? Cursar artes
plásticas numa universidade. Infelizmente, pagar por uma formação superior em
artes, está fora das nossas possibilidades, ao mesmo tempo, uma universidade
pública, fica difícil, pois para termos uma vida digna, ele trabalha seis dias
por semana, doze horas por dia.
Mas,
se algum dia houver a possibilidade dele cursar artes numa universidade pública
do nosso país, eu acho completamente justo e digno que ele concorra por cotas
raciais, não porque eu acredite que ele seja incapaz, mas em nome do passado
que, mesmo ele não tendo vivido, exerce força suficiente sobre a vida dele
hoje. Sim, é em nome de seus pais, avós e bisavós e tudo que a eles foi negado
antes e após o 13 de maio de 1888 que acredito ser justo, digno e louvável que
ele e todos os negros que estão onde estão devido à escravização de seus
antepassados, usufruam de políticas reparadoras.
É
como se toda essa historia que escrevi, pudesse ser ilustrada como uma grande
corrida onde os brancos deram a largada em 1538 (no contexto brasileiro) e os
negros tivessem sido impedidos de largar no mesmo instante que os brancos.
Agora, o que as políticas reparadoras fazem, é pegar esses negros que não
puderam largar na corrida em 1538 e os coloca ao lado do branco, na altura em
que ele está e, a partir daí, depois que o almejado processo de equiparação
social, econômica e política for completo, os negros passarão a correr por si
só, sem interferências.
Mas,
enquanto o negro for mais da metade da população brasileira e ainda assim for o
percentual mínimo nos setores privilegiados, for a maior parte das classes
social e economicamente vulneráveis, receber os mais baixos salários, mesmo
sendo a maior parte da massa trabalhadora do país, possuir os mais baixos
níveis de escolarização entre outras coisas, as cotas, assim como todas as
políticas de reparação e ação afirmativa, serão necessárias, dignas e justas.
*Professora
de História e Mestranda do PPGEDUC pela UFRRJ.