Em
1º de outubro de 1960, a Nigéria tornou-se um país independente. Eu me
encontrava lá, acompanhando o embaixador Negrão de Lima, representante do
Brasil nas cerimônias. E estava fascinado com o que via, a confirmar ou
desmentir o que recebera dos livros. Desde o momento em que desci do avião, fui
tomado pela sensação de que havia entrado naquele desfile dos Reis Magos que
Benozzo Gozzoli pintou na capela dos Medicis, em Florença. Com suas vestes
amplas e esvoaçantes, de leses, sedas, veludos e damascos, e seus gorros e
turbantes bordados, a comissão de boas-vindas humilhava nossos ternos
cinzentos, que nos pareceram feiíssimos, e não só quando contrastados com essas
roupas de gala, mas também com as de estampado de algodão das pessoas que
enchiam as ruas, e falavam em voz alta, e trocavam abraços, em meio a
estrondosas risadas. Lagos parecia ter saído toda de casa, porque ninguém
queria perder a festa — pensei. Mas enganei-me, como verifiquei nas viagens que
faria à cidade, nos anos seguintes: a gente de Lagos passava a vida na rua. Em
azáfama e alegria. Vendendo e comprando. Na frente das lojas e das casas, nos
espaços entre os edifícios, no correr das avenidas e nas travessas
acumulavam-se as barracas com todo o tipo de mercadorias: do último tipo de motocicleta
a garrafinhas com amendoim torrado, de sapatos a malagueta moída e seca.
Quando, em 1979, fui morar em Lagos, as ruas estavam tomadas por multidões como
nunca vira antes e para as quais — assim me parecia — comerciar era da essência
do viver. A cidade era um enorme mercado, que chegava até as praias, onde os
vendedores passavam entre os banhistas a oferecer camarões, champanhe, rádios
portáteis, bolsas italianas, legumes e frutas.
Publicado
originalmente no Ceert
A
cidade era feia, mas o espetáculo que nela se desenvolvia, belo e estonteante.
Nele mergulhamos, minha mulher e eu, de alma inteira. E logo percebemos que não
nos tratavam como oibó, ou branco. Pertencíamos a outro grupo: o brasileiro. Um
menino explicou-nos com candura: não cheirávamos a podre como um europeu e na
vida diária nosso comportamento era semelhante ao dos seus. Durante quatro
séculos, no Brasil, os africanos e seus descendentes se acaboclaram, e os
europeus e seus descendentes se africanizaram. Nas várias vezes que percorri a
estrada litorânea entre Lomé e Lagos, senti-me na costa do Nordeste brasileiro.
A intensa troca de vegetais entre as duas margens do Atlântico e a migração
forçada de africanos para o Brasil moldaram uma paisagem comum de coqueirais e
casas de sopapo, na frente das quais, nos dois lados do oceano, podíamos ver
senhoras curvadas a varrer o terreno com um feixe de gravetos. Para completar a
semelhança, sucediam-se à margem da estrada as vendas de duas portas, os
botequins, os albergues e as oficinas mecânicas estampando nas fachadas em
letras grandes os nomes de seus proprietários. E alguns destes eram: Souza,
Barbosa, Da Silva, Campos, Medeiros, Rocha, Martins e outros apelidos de
família herdados de comerciantes que se instalaram na borda do golfo do Benim
ou, na maioria dos casos, de ex-escravos que retornaram à África.
Já
na breve estada em outubro de 1960, eu me emocionara ao visitar o bairro
brasileiro de Lagos, o Brazilian Quarter, com seus sobrados e casas térreas que
poderiam estar no centro antigo do Rio de Janeiro. Nas visitas seguintes,
comoveu-me conhecer algumas dessas pessoas que, sendo nigerianas, se
identificavam também como brasileiros, amarôs ou agudás, do mesmo modo que
outras se afirmavam ibos, iorubás ou hauçás. Durante os três anos que passei em
Lagos, aprendi que essa e outras cidades do golfo do Benim continuavam em
Salvador e que a Bahia se prolongava na África Ocidental. Mas aprendi também
que, embora tivéssemos tantos traços de semelhança, éramos diferentes. Se tomei
tento nas parecenças, apaixonaram-me as diferenças.
Raro
era o meu dia em Lagos sem surpresa, aventura ou descoberta. O espetáculo das
culturas era fascinante, rico e complexo, mas exigia cuidados de quem dele
quisesse participar. Diante de uma determinada situação, o comportamento
recomendado por um edo podia ser tomado por um ijó como despautério ou
grosseria. As gafes, quase sempre, não tinham, porém, maiores consequências
porque os nigerianos, qualquer que fosse a sua língua e cultura de berço,
perdoavam, às gargalhadas, os equívocos dos estrangeiros.
Não
poucas vezes senti-me entrar na História ou puxei o passado para o meu arredor.
A Nigéria tivera os seus costumes e valores recosturados pelo colonialismo
britânico, mas os povos que a formavam se apegavam a seus dias antigos. As
tradições persistiam ou ressurgiam com força nas circunstâncias mais
inesperadas. Com a república federativa e os governadores dos estados eleitos,
por exemplo, coexistiam emires, obás e outros reis, que exerciam formas de
poder próprias e eram obedecidos e venerados por seus súditos. Visitá-los em
suas cortes era experimentar sensação semelhante à que senti quando, em 1960,
cheguei pela primeira vez à Nigéria: a de que era possível manter vivo, num
mundo cada vez mais uniformizado, o que fazia cada povo diferente.
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Mulheres dançam durante o festival Ofala, no estado de Anambra, na Nigéria. Foto: Akintunde Akinleye - Reuters. 11.10.2014/O Globo. |