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Trilogia: Nem desespero, nem covardia. Gesto de Vargas foi político



O projeto de biografar o “Velho Caudilho” consumiu cinco anos de dedicação praticamente integral do autor, o jornalista e escritor cearense Lira Neto. “Lembro que, na época, comprei um novo computador para a empreitada. Só que antes do final do trabalho ele se mostrou insuficiente para suportar o volume de dados e documentos digitalizados. Eram tantas fotos, filmes, arquivos sonoros, charges, cartazes, panfletos, cópias e recordes de jornais e revistas, bilhetes, telegramas, memorandos, ofícios, inquéritos policiais militares, anais parlamentares, processos judiciais, teses acadêmicas e livros, que faltou memória”, conta.

Na segunda gestão na presidência, Vargas buscou pactos de
governabilidade.
De fato, proporcionar aos brasileiros conhecer e entender o papel desse personagem na história do país é desafio que vale o esforço. Afinal, até hoje sua passagem é cercada de polêmicas. Assim como seu legado para os projetos de desenvolvimento do país de um lado, e de entendimento das relações e da legislação trabalhistas, de outro. Sua dimensão é tamanha que no final de 1994, quatro décadas depois do tiro que tirou Getúlio da vida e o eternizou, o presidente recém-eleito, Fernando Henrique Cardoso, prometia para os próximos anos “o fim da Era Vargas”.

O primeiro volume da obra de Lira Neto veio em 2012: 1882-1930, Dos Anos de Formação à Conquista do Poder. No ano passado, saiu 1930-1945, Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo. Uma rara combinação de virtudes está presente em Getúlio, 1945-1954 – Da Volta pela Consagração Popular ao Suicídio, o terceiro e último volume da biografia. O lançamento foi em agosto, na passagem dos 60 anos do suicídio de Vargas, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro Conhecer a história continua sendo o melhor antídoto para um povo não repetir erros já cometidos. A compreensão do passado ganha consistência quando os fatos analisados são fartamente documentados. Melhor ainda quando os acontecimentos são redigidos com a isenção que se espera de um historiador, sem que se abra mão da melhor técnica narrativa, de um enredo que parece ficção.

A realidade, como se sabe, pode superar a mais elaborada criação literária. “Para o bem ou para o mal, Getúlio é o personagem político mais importante da história do Brasil”, costuma dizer Lira Neto, ao deixar clara sua isenção em relação ao biografado. O último volume da trilogia começa em São Borja, onde Getúlio buscou exílio depois de 15 anos de poder no Catete. Um apontamento de 1945 registra o estado de espírito dele, ao voltar para o Rio Grande: “Entrei para o governo por uma revolução, saí por uma quartelada”.

O legado de Vargas permanece até hoje, goste-se ou não. A começar pela questão legislação trabalhista, toda a regulamentação da relação capital e trabalho, assim como no seu projeto de desenvolvimento, com a criação da Petrobras, BNDES, Banco do Nordeste, Eletrobras, só para citar alguns exemplos. “Agora, temos de ter como perspectiva – e foi com isso que me preocupei como biógrafo – a necessidade de fugir do maniqueísmo; de tentar vê-lo só por um lado positivo, ou só negativo, do ditador que perseguiu liberdades democráticas. Ele é fascinante exatamente por isso: ele é isso e é aquilo. Qualquer tentativa de analisá-lo por um único viés vai cair no pecado original daqueles que simplesmente o amam ou o odeiam”, sustenta o biógrafo.

Getúlio é identificado como ditador, violento, responsável pelo fechamento do Congresso. Mas também como o homem que exerceu um papel de protagonista na invenção do Brasil moderno. Tais facetas fascinam quem conhece sua história; um homem que caiu em 1945, como ditador, e teve forças para voltar em 1950, eleito pelo voto popular, na condição de grande líder de massas.“A forma como ele escolheu para passar à história, dando fim à própria vida, ajudou a consolidar ainda mais a sua permanência no imaginário coletivo”, diz Lira Neto.

Correspondência

A grande contribuição do escritor para a compreensão do fenômeno Getúlio Dornelles Vargas é o resgate da correspondência – inédita – mantida com a filha Alzira. Para o jornalista, a primogênita se tornou uma espécie de embaixatriz do getulismo na capital federal, mantendo o pai, deposto por militares em 1945, informado sobre os bastidores do governo Eurico Gaspar Dutra e ao mesmo tempo ajudando-o a manter as rédeas do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Procurado pela imprensa – ou mesmo por correligionários – para falar sobre sua volta à política, Getúlio sempre desconversava. Dizia estar disposto a permanecer calado até as eleições.

Um ano depois, em 1946, no entanto, o ex-ditador voltaria ao Rio de Janeiro nos braços do povo, que votou maciçamente em seu nome para o Senado. A partir do amplo ‘arsenal de informações’ coletadas, o autor reproduz o clima histórico do país ano após ano. Em 1949, com a sagacidade que se tornou sua marca registrada, Getúlio deixou transparecer a possibilidade de voltar ao Palácio do Catete.

A partir daí o movimento “queremista” recomeçou a ecoar por todo Brasil, exigindo a volta do “Pai dos Pobres” à presidência. A consagradora votação alcançada na eleição de 1950 foi o marco inicial de um dos períodos mais conturbados da vida política nacional. A oposição visceral da União Democrática Nacional (UDN) e da imprensa – liderada por Carlos Lacerda – combateu todas as iniciativas populares do segundo governo Vargas. E também as nacionalistas. Em 3 de outubro de 1953, por exemplo, foi criada a Petrobras, depois de 22 meses de tramitação no Congresso.

O Última Hora foi o único jornal a dar destaque positivo ao fato na primeira página. Os demais deram a notícia em espaços reduzidos em páginas internas. Ao contrário dos editoriais e comentários assinados, todos contra a Petrobras, que ganhavam destaque. No seu Diário da Noite, Assis Chateaubriand rotulou a abertura daquela que se tornaria a maior empresa brasileira de todos os tempos como “capricho caro”, reprovando a opção brasileira pelo monopólio estatal do petróleo. Chatô lembrava que Estados Unidos e Canadá jamais haviam cedido à tentação de nacionalizar a pesquisa ou a indústria de petróleo. “Se essa lição parte das duas nações melhor administradas da terra, por que vamos adotar aqui um sistema peculiar a xenófobos de países inferiores?O Correio da Manhã tachou a criação da Petrobras como aventura de “nacionalistas rasteiros”, defensores de “monstruosidades”.

Os Diários Associados deram espaço para o deputado Plínio Pompeu (UDN) cometer uma análise primorosa: “A Petrobras é um convite para que se retirem do Brasil os que colaboram conosco”, sustentava o parlamentar, dizendo que a culpa era do governo Vargas, covarde e incapaz de resistir à onda comunista”. Do alto de sua indignação, o udenista previu que a experiência fracassaria dentro de um ano, no máximo.

Com a autoridade de quem mergulhou de corpo e alma durante meia década na vida do mais controverso político deste país, Lira Neto ressalta que, depois de governar com mão de ferro o Brasil durante o Estado Novo – perseguindo adversários, imprensa e quem contrariasse seus planos –, de 1951 a 1954 Getúlio jamais utilizou a força para fazer valer sua vontade. E ressalta que o segundo governo se deu sob o Estado democrático, com Congresso funcionando e imprensa livre para criticar. Seu ministério foi de coalizão – uma espécie de pacto de governabilidade, como se diz hoje –, trazendo até um representante da arquirrival UDN, para ocupar o Ministério da Agricultura.

Como hoje, as pressões contra o governo eram múltiplas. Com a astúcia que se tornou marca de sua política, Vargas montou uma equipe especial para assessorá-lo. No primeiro dia de seu mandato, convocou o economista baiano Rômulo de Almeida, diretor da Confederação Nacional da Indústria, e o incumbiu de uma importante tarefa: compor uma assessoria econômica, ligada diretamente à secretaria da Presidência, para elaborar estudos e projetos de infraestrutura em áreas consideradas estratégicas, como energia, transporte e industrialização. No livro, o próprio Rômulo de Almeida – que recebeu carta branca do chefe para selecionar auxiliares em função da competência técnica, desde que fossem nacionalistas – conta que “quase ninguém” sabia da existência da assessoria econômica.

Tubarões

Era o chamado Ministério dos Tubarões, por reunir representantes dos empresários, banqueiros e usineiros, só peixe graúdo”, diz Lira Neto. “Eles tinham uma sala no primeiro piso do Catete e trabalhavam livres de qualquer tipo de pressão política, militar ou o que fosse. Foi desse grupo que saíram todos os projetos de desenvolvimento daquele período, como Petrobras, Eletrobras, BNDES, Banco do Nordeste.”

O tempo passava e a oposição não dava tréguas. A imprensa “espetacularizava” denúncias reais e forjadas, mantendo o governo sempre em xeque. Até chegar a hora em que a pressão se tornou irresistível: era o “mar de lama” que transbordava no noticiário político e se transformava no assunto de todo mundo. Pelo que se constata, mesmo com toda evolução do aparato tecnológico, a velha mídia não muda. Até hoje envolto em uma aura de mistério, o atentado a Lacerda, em agosto de 1954, é apresentado em múltiplas versões. Inclusive uma segundo a qual o próprio jornalista confessa não ter entregue sua arma à perícia por temer que dela tivesse partido o tiro no militar, acidentalmente. Acuado pela eminência de um golpe militar, Getúlio chegou a esboçar uma resistência, mas preferiu o tiro no coração à renúncia.

Segundo Lira Neto, a resistência ao golpe – “Sim, golpe, pois Vargas foi eleito pelo voto democrático e governou com o Congresso” – suscita dúvidas até hoje. Ele lembra que há interpretações – como a da própria filha Alzira – sobre uma possível resistência. Ela acreditava que o pai tinha todas as condições objetivas, militares, de resistir ao cerco de brigadeiros, almirantes e generais. O trio havia assinado os três famosos manifestos exigindo a renúncia. A Vila Militar ainda não havia aderido ao golpe.

Na célebre reunião que antecedeu o suicídio, Alzira irrompeu na sala onde o ministério discutia com o presidente a conjuntura política. Depois de bater na mesa, a moça peitou o general Zenóbio Costa, ministro da Guerra, propondo não entregar os pontos diante das adversidades. E perguntou à queima-roupa: “E a Vila Militar? Alguém faz uma revolução, ou dá um golpe, sem a Vila Militar? Pois nós estamos prontos para responder à bala! Meus informantes dizem que a Vila Militar está como o presidente”.

Lira Neto lembra que Alzira Vargas escreveu um livro – Getúlio Vargas, meu pai –, mas deixou de fora outras notas destinadas ao segundo volume, que ficaram inéditos. Foi nelas que o autor encontrou, com impressionante riqueza de detalhes, informações sobre o que aconteceu até a crise final: “Alzira diz que os Vargas estavam armados. Ela tinha um revólver na bolsa, esperando que os militares viessem tirar Getúlio do Palácio”.

A carta-testamento de Getúlio Vargas permite mais de uma leitura. Maciel Filho, o secretário particular que a datilografou – o chefe não sabia usar a máquina de datilografia – declarou não entender aquilo como carta de um suicida. Mais tarde, quando foi cobrado pela família sobre o motivo de não alertar ninguém, disse achar que fosse uma carta de resistência, não de suicídio. Se você ler a carta- testamento na perspectiva de alguém que está disposto a morrer com a arma na mão, ela tem esse sentido. Para Maciel, o documento era o testemunho de um homem disposto a morrer lutando.

Mas Getúlio escolheu poupar os outros e disse, textualmente, que “se algum sangue for derramado, será o de um homem cansado e enojado de tudo isso”. Em geral, o senso comum costuma entender o suicídio como ato de desespero ou covardia. Para Lira, naquele momento, o ato de Getúlio não correspondia a nenhum dos dois. Era, na verdade, um ato político, calculado friamente, do qual ele sabia da eloquência, do significado e dos efeitos sobre a crise política. Ele sabia que o gesto seria tão forte, com efeitos tão intensos, que seus adversários teriam de partir para a defensiva. “Curiosamente, a derrota naquele momento – sua morte – significou uma vitória. Ele conseguiu trocar os sinais de uma equação política que já parecia resolvida: quem era vitorioso passou a ser derrotado, e o quase certo derrotado foi o grande vitorioso, não só para aquele momento, mas para a própria história.”


Via Rede Brasil Atual