“O ódio é uma interrupção do pensamento e uma
irracionalidade paralisadora. Como pensar é árduo, odiar é fácil. Se a religião
é o ópio do povo para Marx, o ódio é ópio da mente. Ele intoxica e impede todo
e qualquer incômodo.
O ódio tem um traço do nosso narciso
infantil. O mundo deve concordar conosco. Quando não concorda, está errado. Somos catequistas
porque somos infantis. A democracia é boa sempre que consagra meu candidato e a
minha visão do mundo. A democracia é ruim, deformada ou manipulada quando diz o
contrário.
Todo instituto de pesquisa é comprado
quando revela algo diferente do meu desejo. Não se trata de pensar a realidade,
mas adaptá-la ao meu eu. As crianças contemporâneas (especialmente as que têm
mais 50 anos como eu) batem o pé e fazem beicinho, mandam mensagem no WhatsApp
e argumentam. Mas, como toda criança, não ouvimos ninguém. Ou melhor, ouvimos,
desde que o outro concorde comigo; então ele é sábio e equilibrado.
Selecionamos os fatos que desejamos não pelo nosso espírito crítico, mas por
uma decisão prévia e apriorísticas que tomamos internamente. Grosso modo, isso
foi explicado em Uma Teoria da Dissonância Cognitiva, de Leon Festifnger.
Seria bom perceber que ódio fala
muito mim e pouco do objeto que odeio. Mas o principal tema do ódio é meu medo
da semelhança. Talvez por isso os ódios intestinos sejam mais virulentos do que
os externos. Odeio não porque sinta a total diferença do objeto do meu
desprezo, mas porque temo ser idêntico. Posso perdoar muita coisa, menos o
espelho.
Mas o ódio é feio, um quasímodo
moral. A ira continua sendo um pecado capital. Assim, ele deve vir disfarçado
da defesa da ética, do amor ao Brasil, da análise econômica moderna. Esses são
os polos que banham de luz a fealdade. E, como queria o rebelde 9que odiava o
Estado), sempre teremos 999 professores de virtude para cada pessoa virtuosa.
Em oposição, encerro acrescentando: sempre teremos 999 pessoas odiando para
cada pessoa que pensa. Isso às vezes me dá ódio…”.
Leandro Karnal
“Trecho
de “O
ódio nosso de cada dia” – de Leandro Karnal. Publicado no jornal O
Estadão – em novembro de 2014)