Estamos em 2016, 128
anos pós Lei Áurea.
Há alguns meses
cinco garotos foram brutalmente fuzilados, o que motivou a escrever este texto.
Esta semana um garoto de 10 anos foi assassinado. Todos os dias eles são
executados. Todos os dias. E o que tem em comum?
A negritude.
Publicado originalmente no Negro Belchior
Estou
a parir meu filho preto.
Na
maca onde a enfermeira impaciente empurra minha barriga. Me livro da dor
pensando em seu futuro. De uniforme e banho tomado ele desce a ladeira:
–
Cuidado ao atravessar a rua! (Ele olha pra trás e sorri)
–
Não esquece a merendeira hein filho? – Tá mãe!!
–
Esteja bem vestido (para não te confundirem … com ladrão).
–
Não erga a cabeça pro polícia.
Vou
franzindo a testa e abaixo o tom de voz:
–
Ande com carteira de Trabalho no bolso e apresente-a sempre que abordado.
–
Se quiser ter o cabelo colorido, será confundido com bandido. Se quiser
homenagear seus ancestrais e fazer dreads e penteados, será chamado de
vagabundo.
–
Você poderá apanhar na cara – Por que mãe? Porque sim, Não revide
–
Você sofrerá revistas vexatórias todas as semanas da sua vida. Porque sim.
–
Você será chamado de macaco, “esse preto”, “de cor”.
–
Não ande em grupos pra não ser confundido com arrastão.
–
Estude filho, vão falar que as cotas o salvou, que é incapaz. Não dê ouvidos à
eles.
–
Se você se esforçar muito no trabalho, será chamado de “moreninho até que
esforçado” e mesmo que te explorem e expurguem, e que seu salário seja menor
que o de todos – usarão seu exemplo, pra justificar a Meritocracia canalha que
nos imputam.
–
Em qualquer furto na empresa você é o suspeito, filho. Sim.
–
Você será mal visto o resto da sua vida na família da sua namorada branca.
Porque sim também…
Sua
mãe vai sofrer violência obstétrica no hospital. Porque é preta. Você vai
nascer na contramão da vida. Porque alguma igreja um dia disse que não tínhamos
alma.
Que
nossa cultura era inferior, e mediram nossos dentes e nossas canelas. E nos
deram um terço pra tentarmos nos redimir de termos nascido nessa cor.
Quando
acharam oportuno, vestiram nossos turbantes e se apropriaram da nossa capoeira.
Quando não nos queriam mais, nos forjaram “livres” na Lei do sexagenário. E
então fomos expulsos da escravidão para a escravidão real.
Aqui
estamos. Somos a história dos centros urbanos, filho. Fomos expulsos do modelo
de cidade e do convívio entre pessoas. Nunca fomos pessoas.
Da
periferia pra periferia seguimos, expurgados.
Não nos perguntaram onde construímos nossa vida, nossa raiz. Somos sem estória. A cada despejo fomos para a região metropolitana que nos colocavam. Em cada plano de habitação que meia dúzia de engomados brancos escreveram, fomos encaixotados nos predinhos de 40m². Bem longe. Longe dos olhos dos gringos.
Taparam
nossas casas com tapumes pra Copa do Mundo. Botaram camburão na nossa quebrada,
pra nos lembrar que desde “o fim” da escravidão, não sabem o que fazer pra
tampar nossa existência.
Vão
te dizer que mesmo em Estado de Sítio, você tem direito à ir e vir no seu país
(que seus ascendentes construíram lajota por lajota.. paralelepípedo por paralelepípedo).
Mas
você será executado à luz do dia filho. Na porta de casa. E eu vou lavar seu
sangue.
Você
será metralhado, “confundido”. Você e seus amigos pretos. Porque sim. Porque
fazem parte da parcela da população que tem que ter regras pra estar vivo. Que
é achincalhado desde o nascimento.
Nos
exterminarão todos os dias, todos os dias “um crime isolado”.
E
jogarão a culpa no policial noiado, no indivíduo sob pressão, na legítima
defesa. A sociedade não reconhecerá que são todos cúmplices da sua morte.
Eles
estão certos, agem em “legítima defesa”. Te avisei pra não sair sem a carteira
de trabalho filho. Aliás, nem deu tempo de mostrar né? Te avisei pra não
encarar o polícia…. Também não precisou. É, não deu tempo.
Vamos
entrar pra estatística filho.
Eles
só têm a televisão. Só tem a visão longínqua e deturpada do que somos. Eles
desligarão a TV quando incomodar. Eles não sabem de mim, nem de você.
Só
mais uma mulher sozinha parindo sob violência.
Só
mais um preto metralhado. O Deus branco que nos perdoe, somos sem alma.
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Luara Colpa
é brasileira, tem 28 anos. É mulher em um país patriarcal e oligárquico.
Feminista e militante por conseguinte. Estuda Direito do Trabalhador e o que
sente, escreve.
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Luara Colpa |
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