Mulheres fazem ato contra PEC 181 e a cultura do estupro


Representantes de movimentos feministas, sociais e sindicais aproveitaram o dia de mobilização contra a reforma da Previdência para protestar contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181, que proíbe qualquer possibilidade de aborto no país. A partir das 14h, elas começaram a se concentrar no vão livre do Masp, na Avenida Paulista. Espalharam faixas roxas e começaram a discursar contra os retrocessos da proposta, que ficou conhecida como Cavalo de Troia.

As mulheres defenderam a soberania sobre  o próprio corpo, sobre o direito de decidir por um aborto e também sobre questões de saúde. Para a integrante da coordenação da Marcha Mundial das Mulheres e do instituto Sempre Viva Sonia Coelho, a PEC tira direitos da mulher, inclusive à vida, e encoraja a cultura do estupro. "A Constituição não define o começo da vida, e esse Congresso conservador quer definir. Uma mulher estuprada não poderá fazer o aborto a que hoje tem direito. E se chegar ao hospital com risco de vida, vai morrer, deixando filhos pequenos, porque o aborto será proibido também nesse caso", afirma.

Para Sonia, o Congresso vai legitimar um crime hediondo como o estupro e torturar a mulher pelo resto da vida. "Conheço mulheres com filhos do estupro e nem sempre o amor que se cria é suficiente para superar o trauma". Ela lembra que apesar do caráter machista e misógino da proposta, e da supremacia desse grupo no congresso, há muita resistência à medida, como a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

"Cria-se ainda um problema de saúde pública, porque as mulheres continuarão recorrendo ao aborto clandestino, repleto de riscos, ao qual recorrem as mais pobres, negras, da periferia, que vão morrer. As ricas vão a clínicas bem equipadas".

Dirigente do Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (Sindsep) e integrante do Conselho Municipal de Saúde, Ana Rosa Garcia lembra que a comissão que analisa a PEC não leva em conta que 60% da população considera que a mulher não deve levar adiante uma gravidez em caso de estupro, quando sua vida esta em risco ou caso de feto anencéfalo.

"Vamos aumentar a pressão e a mobilização, nas ruas, contra essa medida que põe em risco a vida de mulheres. "Ocupamos a Casa da Mulher (com obra concluída, mas não inaugurada até agora pela gestão Doria) e vamos ocupar outros espaços." (Com informações da RBA).


Problema de saúde pública: mulheres continuarão recorrendo ao aborto clandestino, repleto de riscos.
(Foto: Reprodução).

Quais direitos os heterossexuais perderam ou estão perdendo, Ministro Noronha?


O Corregedor-Geral de Justiça, Ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, acaba de declarar, em tom jocoso, em evento acadêmico do STJ sobre ativismo judicial, que “heterossexual agora está virando minoria. Não tem mais direito nenhum” (sic!) e que, por isso, heterossexuais precisariam “reivindicar direitos” (sic!)[1].

É desolador ver essa infeliz “brincadeira”, pautada no mais profundo e genuíno simplismo acrítico, partir de alguém que ocupa o cargo de Corregedor-Geral de Justiça… E choca ainda mais uma tal fala vir de alguém que já votou a favor da união estável homoafetiva, como o Ministro João Otávio de Noronha (cf. STJ, REsp 827.962/RS, DJe de 08.08.2011).


Ora, Excelência, desde quando reconhecer direitos a uma minoria historicamente estigmatizada “significa” perda de direitos à maioria?

Que direitos heterossexuais (e cisgêneros) “perderam” com o gradativo reconhecimento jurisprudencial de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (mulheres transexuais e homens trans)[2]? Ficam, aqui, opostos embargos de declaração[3], por omissão sobre tema relevante, à fala de Vossa Excelência, Ministro João Otávio de Noronha, para que cite quais direitos seriam estes que heterossexuais (e cisgêneros) supostamente “perderam” com o reconhecimento de direitos às minorias sexuais e de gênero…

Como bem disse o Ministro Ayres Brito no julgamento da ADPF 132/ADI 4277, que reconheceu a união homoafetiva como família conjugal e merecedora do regime jurídico da união estável heteroafetiva, os heteroafetivos nada perdem quando os homoafetivos ganham[4]. “O casamento civil é um direito humano, não um privilégio heterossexual”, diz tradicional lema da luta mundial de homossexuais e bissexuais pelo direito ao casamento civil igualitário (homoafetivo). Direitos iguais: nem menos, nem mais, consoante um dos slogans da Parada do Orgulho LGBT(I) de São Paulo, de 2005.

Algo equivalente pode ser dito na questão da identidade de gênero: os cisgêneros nada perdem quando ganham as pessoas transgênero, relativamente a seu direito de mudança de prenome e sexo jurídico (independente de cirurgia de transgenitalização e de laudos de profissionais da saúde). Aqui aplica-se a célebre máxima de Boaventura de Souza Santos: temos o direito à igualdade quando a diferença nos inferioriza e temos o direito à diferença, quando a igualdade nos descaracteriza. Pois descaracteriza a identidade de gênero das pessoas transgênero trata-las como se cisgêneras fossem. E, de qualquer forma, o lema dos direitos iguais: nem menos, nem mais se aplica também aqui (pelo menos) quanto ao direito ao nome, já que pessoas cisgênero podem mudar seu prenome desde que provem possuir um “apelido público notório” (art. 58 da Lei de Registros Públicos), independente de “laudos” quaisquer, o qual (apelido público notório) é absolutamente equivalente ao “nome social” de travestis, mulheres transexuais e homens trans (as pessoas transgênero).

Então, a menos que se tenha a ousada capacidade de se dizer que haveria um suposto “direito” a discriminar, a garantir somente para si e a mais ninguém determinado direito, o que seria transcender o cúmulo do absurdo, não se pode seriamente dizer que heterossexuais perdem quando homo e bissexuais ganham, nem que cisgêneros perdem quando as pessoas transgênero ganham. 
Em suma, vivemos a era da reclamação de maiorias pelo simples fato de minorias estarem obtendo direitos. No que tange aos direitos das minorias sexuais e de gênero, vivemos a era da heterocisgeneridade mimizenta, formada por pessoas que “reclamam” de estarem perdendo o privilégio de ter só a sua orientação sexual (heteroafetiva) e identidade de gênero (cisgênera) reconhecida e protegida pelo Direito. Será que essas pessoas estão com “saudades” da época em que, após o falecimento do companheiro gay ou da companheira lésbica, a pessoa homossexual (ou bissexual) era expulsa da casa em que morou por muitos anos, quando esta estava apenas em nome do(a) falecido(a), pela “família de sangue”? Da época em que, internado(a) o(a) companheiro(a) homoafetivo(a), o(a) outro(a) era expulso(a) do hospital pela “família de sangue”? Família esta que, muitas vezes, desprezou o(a) falecido(a) por sua homofobia/bifobia, mas que aparecia, como abutre, na hora de amealhar o patrimônio arduamente construído pelo(a) “parente de sangue” homo/bissexual? Será que as pessoas heterossexuais e cisgêneras mimizentas estão com “saudade” desse tempo, no Brasil existente até 05 de maio de 2011[5]??? Bem como da época em que pessoas transgênero não tinham sua identidade de gênero reconhecida? (sem falar que, hoje, ainda têm muita dificuldade judicial em isto conseguir, a depender de qual juiz/juíza e promotor/a que atuarem no processo, tema para outro momento).

Trata-se de postura simplesmente inacreditável dessa parcela (quero crer, minoritária) da população heterossexual cisgênera…

Cabe a nós, ativistas, continuarmos exigindo a implementação da universalidade dos direitos humanos (sua garantia a todas e todos) e continuarmos, de alguma forma, desenvolvendo paciência para enfrentar esse tipo de simplismo acrítico e esclarecer a obviedade segundo a qual estender direitos a minorias e grupos vulneráveis não prejudica, em nada, a maioria, que não pode querer garantir direitos somente a si. Pois isso tem um nome: privilégio. Aquilo que tanto (descabidamente) nos acusam de querer é aquilo que consta em seu espelho e, pelo visto, efetivamente querem: manter (neste caso) sua identidade heterossexual e cisgênera como as únicas reconhecidas e protegidas pelo Estado. A luta é árdua e exige renovação infinita de paciência. Mas é a luta em que temos que continuar engajadas e engajados. (Por Paulo Iotti, no Justificando).

(Foto: Gláucio Dettmar/ Agência CNJ).

Casamento gay e aborto podem ser discutido nesta semana no Congresso Nacional



Como não há previsão para a votação da reforma da Previdência, o Congresso Nacional deverá analisar nesta semana propostas que tratam do casamento entre pessoas do mesmo sexo e do aborto. Os senadores podem votar um projeto que altera o Código Civil para assegurar, em lei, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Se for aprovada, a proposta será enviada à Câmara.

O projeto foi apresentado pela senadora Marta Suplicy (PMDB-SP) e estabelece como entidade familiar a “união estável entre duas pessoas”. Atualmente, o Código Civil considera entidade familiar somente a “união estável entre o homem e a mulher”.

Relator da proposta, Roberto Requião (PMDB-PR) acrescentou ao projeto adequações a serem feitas no Código Civil. Requião quer substituir nos trechos relativos à união estável e casamento palavras como “marido” e “mulher” por “duas pessoas” ou “cônjuges”.

Desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhecem a união estável entre casais gays. Além disso, em 2013, uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obrigou cartórios a realizarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo e a converter união estável entre duas pessoas do mesmo sexo em casamento. Desde então, casamentos entre dois homens ou duas mulheres têm sido realizados, mas Marta Suplicy argumenta que somente uma lei dará “segurança jurídica” a essas uniões e evitará possíveis contestações à celebração dos casamentos. O projeto já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e seguiria direto para a Câmara, mas, como a proposta enfrenta resistência por parte de alguns parlamentares, senadores da bancada evangélica recorreram para que o tema fosse analisado pelo plenário do Senado.

Enquanto isso na Câmara, a comissão especial que discute o aborto deve concluir nesta semana a votação da PEC que prevê a garantia do direito à vida “desde a concepção”, o que, na prática, pode proibir qualquer forma de aborto, mesmo aquelas previstas na legislação. Atualmente, o aborto é permitido nos casos em que a mulher for vítima de estupro; a gravidez representar risco à vida da mãe e o feto for anencéfalo. (Com informações da Revista Fórum/ G1).

(Foto: Jefferson Rudy/ Agência Estado).

Das senzalas aos estúdios contemporâneos, racismo naturalizado


Um jornalista da Rede Globo diz com todas as letras que a buzina de um carro nas proximidades do local onde realizava uma entrevista “era coisa de preto”. Outro, colocado pelo governo golpista no cargo de presidente da Empresa Brasil de Comunicação, divulga em pleno horário de trabalho mensagens racistas através da internet.

Parecem fatos isolados, originários de comportamentos individuais doentios. Mas não são. Refletem o racismo arraigado em amplos setores da sociedade que volta e meia vem à tona fazendo-nos lembrar que mais de 300 anos de escravidão não se apagam tão facilmente.

O Brasil depois da abolição não viveu a segregação institucionalizada dos Estados Unidos ou o apartheid da África do Sul, onde a discriminação racial era explicita. Aqui os negros ao conquistarem sua libertação tornaram-se cidadãos formalmente iguais a todos os outros. Apenas formalmente. Na vida real deixaram os grilhões que os prendiam aos senhores para serem jogados na vala comum da miséria, quando não da indigência.

Refletindo sobre esses acontecimentos, o abolicionista Joaquim Nabuco deixa tudo isso claro. Escreve no livro Minha Formação que o movimento contra a escravidão no Brasil “era um partido composto de elementos heterogêneos capazes de destruir um estado social levantado sobre o privilégio e a injustiça, mas não de projetar sobre outras bases o futuro edifício”.

E mais. Dizia que a realização da obra abolicionista “parava assim naturalmente na supressão do cativeiro; seu triunfo podia ser seguido, e o foi, de acidentes políticos, até de revoluções, mas não de medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de um grande impulso interior, de renovação da consciência pública, da expansão dos nobres instintos sopitados”. Para Nabuco, “a corrente abolicionista parou no mesmo dia da abolição e no dia seguinte refluía”.

Refluxo com consequências que chegam aos nossos dias através das estatísticas recorrentes mostrando as discrepâncias de renda entre a população branca e negra ou da constituição da população carcerária brasileira formada em sua absoluta maioria por negros e pardos.

São dados reais e palpáveis aos quais se associam outros, de caráter simbólico, como o da ausência ou da sub-representação do negro na televisão, especialmente na publicidade e em telenovelas. Fato que levou uma dinamarquesa a dizer que há mais negros na TV do seu país do que na televisão brasileira.

Como formar uma identidade negra se os espelhos refletem imagens que não correspondem a ela. Em outras palavras, como uma criança negra pode adquirir uma cidadania completa vendo o negro ser exibido cotidianamente – salvo raras exceções – como escravo, assalariado subalterno ou mesmo bandido?

Do mesmo modo formam-se identidades brancas fundadas na ideia da superioridade racial. Constituem-se mentalidades que diante do cerco simbólico racista naturalizam a relação desigual revelada em situações as mais variadas que vão de comentários e pretensas piadas à escolha, pela cor, das pessoas abordadas nas ruas por agentes policiais.

No telejornalismo a situação é a mesma. Apresentadores negros contam-se nos dedos e atrás das câmeras a situação não muda. No jornalismo em geral as redações são formadas praticamente apenas por brancos. São eles que falam sobre os negros, sobre suas alegrias e angústias. A vivência negra, dessa forma, aparece na mídia atravessada por intérpretes brancos que por maior boa vontade e retidão de caráter que possuam nunca conseguirão transmitir o que os negros sentem na pele.

O pior é que além de praticamente não existirem nas redações, os negros nem sempre são tratados por brancos capazes de entender o drama do racismo. Ao contrário, o difundem sem a menor autocrítica como demonstram os exemplos recentes citados acima.

As duas agressões mencionadas possuem como ponto comum o fato de terem sido cometidas por profissionais da comunicação, ambos colocados em posições públicas onde atos e palavras causam larga repercussão. E por consequência implicam em maior responsabilidade, algo ao que tudo indica desprezado por seus autores.

O antídoto a esse estado de coisas é a denúncia ampla e rápida dessas violações da dignidade humana, envolvendo todos aqueles que lutam contra o racismo no país. Nesses casos recentes, foi essa reação que determinou o imediato afastamento do apresentador de TV das telas e a investigação pela Comissão Ética Pública do governo federal do comportamento adotado pelo gestor da Empresa Brasil de Comunicação. Não deixa de ser um alento. (Por Lalo Leal, na RBA).

(Foto: Reprodução/ RBA).

Não é só na Líbia: Brasil também vende escravos a céu aberto


Imagens de mercados de compra e venda de seres humanos na Líbia, com leilões de escravos à céu aberto, chocaram o mundo. Migrantes da África subsaariana, que tentam alcançar a Europa fugindo da guerra e da pobreza, acabam capturados e transformados em mão de obra cativa. A situação é denunciada, há anos, pela sociedade civil, mas foi só com as imagens da CNN que se tornou comoção global.

Neste sábado (2), quando celebramos o Dia Internacional pela Abolição da Escravidão, gostaria de poder dizer que a possibilidade de você ''comprar alguém'' se limita às tristes situações de guerra ou a países com Estados tão enfraquecidos que se tornam incapazes de cumprir suas leis e convenções e tratados internacionais que proíbem essa prática.

A situação dantesca, contudo, se repete diariamente em outras partes do mundo, adotando formas escancaradamente abjetas ou mais sutis, mas ainda assim violentas por sua própria natureza. Seja em democracias ou ditaduras, exemplos capitalistas ou últimos bastiões socialistas, o trabalho escravo contemporâneo é uma realidade e está conectado com as principais redes de produção globais.

A da pesca, por exemplo. Conheci James Kofi Annan, de Gana, na África, vendido como escravo aos seis anos de idade. Até os 13, trabalhou para pescadores, experimentando diariamente tortura, fome, negligência, abuso verbal e físico. Viveu com doenças dolorosas que nunca foram tratadas e lhe foi negado acesso a cuidados médicos. Escapou do cativeiro e conseguiu ir para a escola, estudando até concluir a universidade. Mas largou o emprego estável para criar uma ONG e ajudar outras crianças e famílias que estão nas mesmas condições pelas quais ele passou.

Ou a da produção de carne bovina. Entrevistei Antônio, há alguns anos, no Sul do Maranhão. Ele havia sido comercializado junto com um grupo de outros 41 homens para limpar o pasto do gado na fazenda de Miguel de Souza Rezende na região amazônica. ''Nós fomos vendidos! Oitenta reais pra cada cabeça, os 42'', lembra. ''Quando completou 30 dias eu disse: meninos, quem quiser ir embora mais eu, nós vamos. Aí o cantineiro avisou nós: ''rapaz não sai de nenhum de vocês, se saírem vocês morrem. Tem muito jagunço na fazenda.'' Os esforços da sociedade civil, governos e empresas para erradicar esse no Brasil fez com que a situação pela qual passou Antônio seja menos comum. Mas ela ainda acontece.

Por exemplo, na fabricação das roupas que vestimos. Para quem acha que comércio de gente ocorre apenas em locais distantes dos grandes centros, conto um caso na capital paulista. No dia 9 de fevereiro de 2014, dois migrantes bolivianos aguardavam pacientemente o dono de uma confecção de costura para a qual trabalhavam tentarem concluir a ''venda'' de ambos, estipulada em R$ 1 mil por cabeça. Se não fosse a solidariedade de outras pessoas que presenciaram a cena, o negócio teria sido concretizado e a Polícia Militar não teria sido chamada para por fim ao comércio de gente que ocorria em uma via pública.

Logo depois do ocorrido, a Repórter Brasil foi a Sucre, na Bolívia, e conseguiu encontrar uma das vítimas. “Não conhecemos nenhuma rua da cidade e não falamos português. Você acha que nós fugiríamos para onde?”, perguntou. Posteriormente localizado pelas autoridades, o dono da confecção afirmou que estava tentando ''ajudar'' os dois a conseguir outro emprego.

A Organização Internacional do Trabalho estima a existência de, pelo menos, 40 milhões de pessoas submetidas a trabalho escravo em todo o mundo, produzindo lucros anuais superiores a 150 bilhões de dólares. É um cálculo modesto, considerando que os processos migratórios forçados por conflitos armados e mudanças climáticas alimentaram fortemente o tráfico de seres humanos para a exploração econômica e sexual nos últimos anos.

No Brasil, não temos uma estimativa confiável de quantas pessoas estão sob essas condições. Mas dados do Ministério do Trabalho apontam que, desde 1995, mais de 50 mil pessoas foram, oficialmente, resgatadas da escravidão.

O país costumava ser considerado um exemplo global no combate ao trabalho escravo pelas Nações Unidas. Contudo, ações do governo Michel Temer – como a desastrosa tentativa de reduzir o conceito de escravidão contemporânea e dificultar a libertação de pessoas através de uma portaria publicada no dia 16 de outubro – têm sido vistas como preocupantes pela comunidade internacional.

A medida, suspensa por liminar pelo Supremo Tribunal Federal após forte indignação da sociedade, visava a atender reivindicações da bancada ruralista e de empresas do setor de construção civil e foi tomada em meio ao processo de angariar votos de deputados federais para rejeitar a denúncia contra Temer por organização criminosa e obstrução de Justiça.

Em um evento nas Nações Unidas, em Genebra, nesta sexta (1), um representante do Reino Unido falou logo na sequência do representante do Haiti sobre a importância de combater globalmente o problema. A cena me lembrou que o espaço das palavras diplomáticas não traduz, necessariamente, a ironia da realidade. No final de 2013, a Anglo American, gigante da mineração sediada em Londres, foi responsabilizada pelo governo por escravizar 172 trabalhadores, em Minas Gerais – dos quais 100 eram refugiados haitianos. O Reino Unido vem se esforçando para criar leis e combater o trabalho escravo e tem sido um ator importante nesse processo. Mas a responsabilização de suas empresas por seu governo ainda engatinha.

A verdade é que é o investimento de governos e empresas no combate ao trabalho escravo tem sido dinheiro de troco em comparação ao que se lucra anualmente com a superexploração de trabalhadores migrantes. É o que chamamos de ''Efeito Batman'': de dia, um bilionário que, de uma forma ou de outra, explora os cidadãos de Gotham. De noite, um vingador que quer ser o exemplo da Justiça. Claro que o impacto do que ele faz de noite não chega aos pés do problema causado por sua ação de dia.

Passou da hora do mundo atuar para que países e empresas sejam responsáveis por suas ações. Precisam injetar, urgentemente, recursos no atendimento e inclusão de vítimas e sobreviventes ao mesmo tempo em que atacam os lucros provenientes dessa forma de exploração. Países precisam punir as empresas que não cuidam de suas cadeias produtivas e fecham os olhos para as consequências. E, principalmente, precisamos combater o que está na origem da venda de escravos a céu aberto, na África, na Europa, no Brasil. Pois escravidão é sintoma, não doença. É um indicador de que nosso modelo de desenvolvimento, concentrador e excludente, precisa ser alterado. Só a redistribuição de riquezas, de oportunidades e de Justiça é capaz de erradicar cenas como as que temos visto.

Faz quase duas décadas que atuo no combate ao trabalho escravo. Imagens como as que circularam nas redes sociais, por mais que sejam desesperadoras, não configuram novidade. Comoções passam com o tempo, soterradas por outras tragédias. Novidade será se, desta vez, o mundo resolver não esquecer. (Com informações do Blog do Sakamoto).


Trabalhadores vítima do tráfico de pessoas para o trabalho escravo são resgatados no Pará.
(Foto: Leonardo Sakamoto).