Em carta aberta, Ernestinho dá uma aula de História ao Zezé de Camargo


Caro Mirosmar, mais conhecido como Zezé de Camargo,

Acordei hoje e de cara recebi com tristeza sua entrevista, onde o senhor afirma que não houve Ditadura no Brasil e sim uma liberdade vigiada. Deixe-me lhe contar uma história.

Meu pai, assim como você e milhões de brasileiras e brasileiros, veio pra São Paulo atrás de uma vida melhor, também vindo do interior do país, no caso do meu pai e seus quatro irmãos e uma irmã saíram de Muriaé-MG, nos anos 50, todos com idade abaixo de 15 anos.

Também trabalharam na roça pra ajudar no sustento da família (ouvi dizer que também foi seu caso), ao chegar a São Paulo, período ainda da industrialização, passaram a trabalhar no pesado, meu pai Devanir trabalhava como louco de dia e à noite fazia curso para se tornar torneiro mecânico, meus tios Jairo e Joel, gráficos, e o Daniel e Derly, metalúrgicos.

A história deles se confunde com a sua e a de milhões de retirantes até aqui, só até aqui.

Diferentemente de você todos eles passaram a se indignar com o sofrimento vivido pela grande maioria de seus semelhantes, em condições de extrema pobreza causada pela enorme desigualdade social, imposta por uma política escravagista, excludente, elitista e cruel.

No início dos anos 60, todos eles já estavam comprometidos com a construção de uma resistência constitucional via sindicatos de classe, movimentos sociais e partidos políticos — assim como deve ser num estado democrático.

A eleição de 1960 levou à presidência pelo voto direto o Sr. Jânio Quadros e seu Vice João Goulart.

Com a renúncia de Jânio (forças ocultas, lembra?), João Goulart assumiria a presidência em 1961, propondo as reformas de base, Educacional, Política, Agrária e Fiscal, que atenderiam às demandas da população mais vulnerável e desprotegida economicamente.

Por essa razão, unicamente por ela, setores da elite econômica se aliaram aos militares — digo, alguns setores do Exército brasileiro — e passaram a conspirar para que o Vice-Presidente não assumisse o cargo.

Entre 1961 e 31 de Março de 1964, o que se viu no país foi uma sequencia de um jogo antidemocrático, criando uma tensão política insustentável.

Na noite de 31 de Março de 64, tiraram nosso presidente à força do cargo.

A partir daí, para manter o status quo, os militares implementaram uma das mais sanguinárias ditaduras do mundo, caro Zezé.

Perseguiram e mataram seus opositores políticos — como o Deputado Rubens Paiva, preso e morto nos porões da Ditadura — jornalistas como Wladimir Herzog, preso e morto nos porões da ditadura, artistas presos, torturados, banidos do país e muitos assassinados, também nos porões da Ditadura.

Muita gente, mas muita mesmo, de diversos setores da sociedade, resistiu à violência do estado, muitos camponeses assim como meu pai e tios, também resistiram, diferentemente de você, que virou as costas aos seus contemporâneos, à sua gente simples, da roça, que carrega em seus semblantes a pele marcada pelo sol forte do trabalho duro do campo.

Essa gente nunca se esqueceu das belas paisagens do campo, da simplicidade do interior, da solidariedade dos vizinhos, da confiança entre homens e mulheres.

Acima de tudo, eles nunca perderam a dignidade.

Meu pai Devanir José de Carvalho foi preso e torturado até a morte em 5 de Abril de 1971, aos 28 anos; minha mãe foi presa e banida do país aos 25 anos; meu tio Jairo José de Carvalho, preso, torturado e banido do país aos dezessete anos; meu tio Derly José de Carvalho, preso, torturado e banido do país aos 30 anos; meu tio Daniel José de Carvalho capturado aos 26 anos, nunca encontramos seu corpo; meu tio Joel José de Carvalho capturado aos 25 anos, nunca encontramos seu corpo; eu, aos três anos de idade, sai do Brasil clandestinamente com minha mãe, vagando por vários países, fugindo de outras ditaduras e do pavor de sermos capturados pelos senhores que “vigiavam” a sociedade brasileira.

Desculpe, caro Mirosmar, a Ditadura existiu, e foi uma das mais sanguinárias da história recente da humanidade.

Ernesto José de Carvalho

11 de Setembro 2017

Salve Allende!


Por Ernesto José de Carvalho, o Ernestinho, no Viomundo


Bibliotecária cria livraria especializada em autoras negras


Para ampliar o acesso à literatura feita por mulheres negras, a empreendedora Ketty Valencio, de 34 anos, criou a Livraria Africanidades e lança, neste mês de setembro, um novo site, com acesso facilitado, livros com frete grátis, promoções e sorteios que vão além de marketing ou mercado: passam pelo ativismo político.

Do Catraca Livre - O site permite a compra virtual e também o pagamento parcelado e traz títulos que dificilmente são encontrados nos grandes magazines ou livrarias online. Fazendo, mais uma vez um recorte que preza pela inclusão de autores independentes, pouco conhecidos e/ou acessados.

A livraria possui estantes como feminismo, ficção, não ficção, poesia, religião, nacionais, ciências sociais, entre outras, mas tudo voltado à cultura negra. Um breve passeio pela loja online e é possível encontrar livros de autoras como Alice Walker, Angela Davis, Jarid Arraes, Maria Firmino, Noémia de Sousa, entre outras. Ao todo, quase 80 títulos diferentes estão disponíveis para compra.

Além do site, Ketty também percorre eventos e festivais literários, evidenciando o formato que se propõe a ser acessível e viável.
Formada em biblioteconomia, Ketty é também pesquisadora, pós-graduada em gênero e diversidade sexual na Unifesp e MBA-Bens Culturais: Cultura, Gestão e Economia na FGV e após sete anos trabalhando em bibliotecas, investiu no próprio negócio e conta com um viés inédito: o protagonismo das mulheres negras na literatura mundial.

A ideia de criar a livraria veio da minha própria história de vida. Sentia uma angústia por ser uma mulher negra. Esta angústia foi motivada pela ausência de representatividade negra em todos os espaços de saberes que circulei. Isso sem comentar a diminuição de pessoas afrodescendentes como estudantes no decorrer do tempo", explica a empreendedora. "Na escola não aprendemos a literatura negra de homens ou mulheres. Na faculdade também não. E a literatura reporta ainda mais a realidade que não aprendemos e colocamos a menina como protagonista da própria história ao ser uma criadora.”

Sobre a empreendedora


Ketty Valêncio é de família negra, vive na zona Norte de São Paulo, é formada em biblioteconomia, pós-graduada, foi membro do Coletivo de Mulheres Matilde Magrassi de Guarulhos, realiza um cineclube feminista e uma roda de conversa também em Guarulhos. Em 2014, foi uma das editoras da revista Mulheres de Palavra, com a participação de várias protagonistas do movimento hip-hop.

Para saber mais acesse o site Livraria Africanidades.

Ketty Valêncio é a mulher empreendedora por trás da Livraria Africanidades. Foto: Lucas Hirai/ Divulgação.

Editora veneta lança a “semana da arte degenerada” em resposta ao cancelamento de mostra LGBT


A mobilização de grupos de direita, principalmente do Movimento Brasil Livre (MBL), que culminou no cancelamento da “Museuqueer – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, no Santander Cultural, em Porto Alegre (RS), tem claro viés nazi-fascista. Assim como na Alemanha nazista de Hitler, que confiscou e destruiu obras de arte consideradas “degeneradas”, o grupo usou de todo o seu pseudo-moralismo cristão para dar pitacos na exposição e exigir o seu cancelamento. Os direitistas acusam a mostra de praticar “blasfêmia” contra símbolos religiosos e de pedofilia por conta de obras de arte sobre crianças LGBT.

Do Portal Fórum - “Não acreditamos que as obras de Queermuseu sejam um tipo de arte e muito menos que as crianças tenham acesso a esse tipo de coisa”, disse Paula Cassol, coordenadora do MBL do Rio Grande do Sul, como se crítica de arte fosse.

Mobilizações nas redes e nas ruas contra o cancelamento da exposição já estão em curso, mas outra iniciativa chamou atenção nesta segunda-feira (11). A editora Veneta, em uma resposta irônica ao protesto direitista e ao cancelamento da mostra, lançou a “semana da arte degenerada” – em referência à perseguição neonazista – e colocou todos os seus livros eróticos, pornôs e “escandalosos” a 50% de desconto.

Muita nudez! Muito sexo! Muita pouca vergonha!”, ironizou a editora em sua página do Facebook. Na promoção estão incluídas obras e artistas de renome como Milo Manara, Robert Crumb, Zumbis para Colorir, Sereia de Mongaguá, Afrodite Quadrinhos Eróticos e Sopa de Lágrimas.

Confira a lista completa dos livros na promoção da semana degenerada aqui.




O triste espetáculo da política contemporânea


"A política virou um espetáculo midiático": é frase que se ouve para e de todo lado, direita, centro, esquerda.

É, mas há espetáculos e espetáculos, de acordo com o roteiro, a direção e os atores.

Por Flávio Aguiar, na RBA - Vejamos o exemplo maior: é claro que Trump e Kim-Jong-un estão encenando um espetáculo. Este dispara mísseis de lá, aquele dispara rojões bufo-retóricos de cá. Mas que ninguém se iluda: de repente um destes mísseis ou um destes rojões cai no lugar errado e a catástrofe está feita. Mas isto não impede que eles sejam péssimos atores. A mídia Ocidental sempre contou que Jong-un era um péssimo ator: bufo, um adolescente de topete desafiando a águia americana como se fosse um galo garnisé. Agora está às voltas com Trump: uma águia balofa e de topete desafiando um galo garnisé. Afora isto, Trump, um ator de quinta categoria, pode procurar uma briga armada com Maduro, que não é um ator. Pode merecer críticas, mas não a de ser hipócrita como Trump.

Adiante, encontramos Macron, na França: um Doria sem botox, que gasta milhares de euros para se embonecar para as câmaras, e agora se propõe como o cônjuge (político) de Merkel, querendo "refundar" a União Europeia. Temos também Rajoy, o primeiro-ministro espanhol que finge que é governo, porque na verdade é um desgoverno na Espanha sem rumo de hoje. E se formos pela Europa adiante, teremos de ver estas monarquias que não passam de um teatro de bonecos e bonecas sem muito interesse nem valor estético.

Mas aí… aí entra o nosso país, hoje uma república dos bananas, isto é, os coxinhas que ajudaram a entronizar no Planalto a maior e pior quadrilha da nossa história. Se olharmos para seus protagonistas de hoje, ficaremos pasmos.

Na batuta, um juiz em Curitiba que lembra o mendigo de "Deus lhe Pague", de Joracy Camargo dos anos 30, que com uma mão acariciava o altar e com a outra o bezerro de ouro. Mas o mendigo dos anos 30 era Procópio Ferreira, já este de hoje é um ator medíocre que só faz caretas de seriedade. Ao seu lado a fiel esposa, espécie de candidata a Lady Macbeth sem a grandeza desta, só sua avidez.

Ao redor, a caterva de procuradores, cada um pior que o outro. Dallagnol não consegue nem fazer o papel de D’Aragnoll direito, parecendo um guri à solta num teatrinho de colégio. E aí no meio deles aparece Palocci fazendo o papel de Silvério dos Reis. Com papelzinho de cola na mão e tudo, para citar certo: "pacto de sangue"…

Janpt fez tantos papeis que se perdeu. Não sabe mais o que faz. O promotor perdido e reencontrado? Torquemada? O Grande Inquisidor? O carrasco de Lille? Perdeu o ritmo e a iniciativa.

A Rede Globo? Perdeu-se no golpe que construiu. Mais ainda a mídia que lhe seguiu os passos: Folha, Estado etc. Coadjuvantes de uma ópera medíocre.

Bom, mas aí chegamos ao bufo supremo: Temer, primeiro e único. O cara que se esconde dentro de um automóvel fechado no Dia da Pátria. E que – ato falho – deixa de vestir a faixa presidencial neste mesmo dia. Melhor impossível.

Tudo isto a nu, diante do mundo inteiro. Sem noção de decoro nem vergonha na cara.

É triste. Lembro os dias da Ditadura de 64, quando éramos acusado de "atacar a imagem do Brasil no exterior". Hoje não precisa. Os golpistas mesmos se encarregam disto.

Macron, Trump, Jong, Temer. Líderes de Estados afundam-se, e ao mundo, em caricaturas de estadistas.
Foto: CCWikimedia - Marcelo Camargo/ ABR.

Pesquisadora afirma que ensino de História em Portugal perpetua mito do 'bom colonizador' e banaliza escravidão


Pintura do francês Jean-Baptiste Debred de 1826 retrava escravos no Brasil. Reprodução/ BBC Brasil.

"De igual modo, em virtude dos descobrimentos, movimentaram-se povos para outros continentes (sobretudo europeus e escravos africanos)."

É dessa forma - "como se os negros tivessem optado por emigrar em vez de terem sido levados à força" - que o colonialismo ainda é ensinado em Portugal.

Do BBC Brasil - Quem critica é a portuguesa Marta Araújo, investigadora principal do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

De setembro de 2008 a fevereiro de 2012, ela coordenou uma minuciosa pesquisa ao fim da qual concluiu que os livros didáticos do país "escondem o racismo no colonialismo português e naturalizam a escravatura".

Além disso, segundo Araújo, "persiste até hoje a visão romântica de que cumprimos uma missão civilizatória, ou seja, de que fomos bons colonizadores, mais benevolentes do que outros povos europeus".

"A escravatura não ocupa mais de duas ou três páginas nesses livros, sendo tratada de forma vaga e superficial. Também propagam ideias tortuosas. Por exemplo, quando falam sobre as consequências da escravatura, o único país a ganhar maior destaque é o Brasil e mesmo assim para falar sobre a miscigenação", explica.

"Por trás disso, está o propósito de destacar a suposta multirracialidade da nossa maior colônia que, neste sentido, seria um exemplo do sucesso das políticas de miscigenação. Na prática, porém, sabemos que isso não ocorreu da forma como é tratada", questiona.
Araújo diz que "nada mudou" desde 2012 e argumenta que a falta de compreensão sobre o assunto traz prejuízos.


"Essa narrativa gera uma série de consequências, desde a menor coleta de dados sobre a discriminação étnico-racial até a própria não admissão de que temos um problema de racismo", afirma.

Segundo Araújo, livros didáticos portugueses continuam a apregoar visão "romântica" sobre colonialismo português. Foro: Jean-Baptista Debret/ Reprodução/ BBC Brasil.

'Vítimas passivas?'

Para realizar a pesquisa, Araújo contou com a ajuda de outros pesquisadores. O foco principal foi a análise dos cinco livros didáticos de História mais vendidos no país para alunos do chamado 3º Ciclo do Ensino Básico (12 a 14 anos), que compreende do 7º ao 9º ano.

Além disso, a equipe também examinou políticas públicas, entrevistou historiadores e educadores, assistiu a aulas e conduziu workshops com estudantes.

Em um deles, as pesquisadoras presenciaram uma cena que chamou a atenção, lembra Araújo.
Na ocasião, os alunos ficaram surpresos ao saber de revoltas das próprias populações escravizadas. E também sobre o verdadeiro significado dos quilombos ─ destino dos escravos que fugiam, normalmente locais escondidos e fortificados no meio das matas.

"Em outros países, há uma abertura muito maior para discutir como essas populações lutavam contra a opressão. Mas, no caso português, os alunos nem sequer poderiam imaginar que eles se libertavam sozinhos e continuavam a acreditar que todos eram vítimas passivas da situação. É uma ideia muito resignada", diz.

Araújo destaca que nos livros analisados "não há nenhuma alusão à Revolução do Haiti (conflito sangrento que culminou na abolição da escravidão e na independência do país, que passou a ser a primeira república governada por pessoas de ascendência africana)".

Já os quilombos são representados, acrescenta a pesquisadora, como "locais onde os negros dançavam em um dia de festa".

"Como resultado, essas versões acabam sendo consensualizadas e não levantam as polêmicas necessárias para problematizarmos o ensino da História da África."

'Visão romântica'

Araújo diz que, diferentemente de outros países, os livros didáticos portugueses continuam a apregoar uma visão "romântica" sobre o colonialismo português.

"Perdura a narrativa de que nosso colonialismo foi um colonialismo amigável, do qual resultaram sociedades multiculturais e multirraciais - e o Brasil seria um exemplo", diz.

Ironicamente, contudo, outras potências colonizadoras daquele tempo não são retratadas de igual forma, observa ela.

"Quando falamos da descoberta das Américas, os espanhóis são descritos como extremamente violentos sempre em contraste com a suposta benevolência do colonialismo português. Já os impérios francês, britânico e belga são tachados de racistas", assinala.

"Por outro lado, nunca se fala da questão racial em relação ao colonialismo português. Há despolitização crescente. Os livros didáticos holandeses, por exemplo, atribuem a escravatura aos portugueses", acrescenta.

Segundo ela, essa ideia da "benevolência do colonizador português" acabou encontrando eco no luso-tropicalismo, tese desenvolvida pelo cientista social brasileiro Gilberto Freire sobre a relação de Portugal com os trópicos.

Em linhas gerais, Freire defendia que a capacidade do português de se relacionar com os trópicos ─ não por interesse político ou econômico, mas por suposta empatia inata ─ resultaria de sua própria origem ética híbrida, da sua bicontinentalidade e do longo contato com mouros e judeus na Península Ibérica.

Apesar de rejeitado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1930-1945), por causa da importância que conferia à miscigenação e à interpenetração de culturas, o luso-tropicalismo ganhou força como peça de propaganda durante a ditadura do português António de Oliveira Salazar (1932-1968). Uma versão simplificada e nacionalista da tese acabou guiando a política externa do regime.

"Ocorre que a questão racial nunca foi debatida em Portugal", ressalta Araújo.

Livro didático português diz que escravos africanos "movimentaram-se para outros continentes."
Marta Araújo/ Reprodução BBC Brasil.

'Sem resposta'

A pesquisadora alega que enviou os resultados da pesquisa ao Ministério da Educação português, mas nunca obteve resposta.

"Nossa percepção é que os responsáveis acreditam que tudo está bem assim e que medidas paliativas, como festivais culturais sazonais, podem substituir a problematização de um assunto tão importante", critica.

Nesse sentido, Araújo elogia a iniciativa brasileira de 2003 que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.

"Precisamos combater o racismo, mas isso não será possível se não mudarmos a forma como ensinamos nossa História", conclui.

Procurado pela BBC Brasil, o Ministério da Educação português não havia respondido até a publicação desta reportagem.

'O que aprendi com índios sobre educação infantil'. Reflexões de uma antropóloga e mãe


Martim passou 20 dias em uma aldeia indígena quando tinha 3 anos./ Foto: Camila Gauditano/ Povo Yudjá.

"Eu e o Martim fomos para a beira do rio, de onde havia saído uma canoa com crianças bem pequenas - quatro, cinco, seis anos - lá para o fundo. (Mas) começou uma ventania muito grande, o rio começou a ondular. De repente, vimos a canoa virar no meio do rio. Não tinha um adulto, ninguém. Subi correndo para avisar os adultos. Quando voltei, já tinha saído uma outra canoa, com outra turma (de crianças), resgatado as outras. Elas nadaram, viraram a canoa e voltaram para a beira. Estava tudo bem. Você vê que domínio sobre esse ambiente? É demais. Foi na aldeia Deia Tuba-Tuba, do povo Yudjá. São conhecidos como exímios navegadores."

Do BBC Brasil - A antropóloga brasileira Camila Gauditano de Cerqueira, de 37 anos, teve seu primeiro contato com uma aldeia indígena no Brasil em 1992, aos 12 anos de idade. Sua mãe, a fotógrafa Rosa Gauditano, especializada em fotografia indígena, levou-a consigo em uma visita à aldeia Xavante Pimentel Barbosa (Mato Grosso).

Hoje, Camila dá consultoria sobre educação ao Instituto Socioambiental (ISA). E em uma viagem de trabalho à terra indígena Xingu, seguindo o exemplo da mãe, levou o filho pequeno, Martim, para visitar três etnias que vivem na região: os Kisêdjê, Ikpeng e Yudja.

Em entrevista à BBC Brasil, Camila compartilha suas reflexões sobre a experiência - e conta as lições que recebeu dos índios sobre educação infantil.

O Parque Indígena do Xingu (PIX) fica no nordeste do Mato Grosso, na porção sul da Amazônia brasileira. Xingu é o nome do rio que atravessa o território, que tem 2.642.003 hectares e onde vivem 16 etnias.

Camila foi ao Xingu para conversar com diretores e professores indígenas que ensinam nas escolas das aldeias visitadas. Enquanto trabalhava, muitas vezes deixava Martim, na época com três anos, brincando com as crianças das tribos.

Camila aos 16 anos, quando visitou a aldeia Xavante Pimentel Barbosa com a mãe; mais tarde, ela repetiu a experiência com seu filho de três anos. /  Crédito: Rosa Gauditano/ Stúdio R.

"Ele ficava com as crianças ou com as famílias das crianças. Me sentia confiante. Por um lado, me perguntava, 'onde será que ele está, o que está fazendo?' Aí pensava: 'bem , está com as crianças, então está seguro'. Não fiquei com receio porque são cuidadosos e dominam aquele território."

Camila teve várias provas disso.

O banho

O episódio da canoa virada no rio foi um entre vários momentos em que se deu conta, maravilhada, de que crianças pequenas podem muito mais do que imaginamos.
A relação peculiar com a água é o que permite tanta desenvoltura da criança indígena num ambiente que poderia ser perigoso para as da cidade, explica a antropóloga.

E tudo começa com o banho - algo que ela observou já na primeira aldeia visitada, os Kisêdjê.

"O banho é o momento em que a criança se integra com o ambiente da água. Aprende os limites do próprio corpo, desenvolve suas potencialidades, a pesca, a navegação. O ambiente é preparado pela comunidade para esse fim. Deixam o fundo bem limpinho, tiram o mato da beira do rio, você sabe onde pode ir e onde não pode. Colocam uma estrutura feita com um tronco de madeira onde você pode sentar a criança, ou lavar roupa".

"Crianças menores ficam na beira; as maiores, mais ao fundo; outros mergulham. É uma experiência do coletivo, das brincadeiras. A criança pequena observa o que é possível fazer e realizar nesse lugar, de acordo com suas capacidades, em diferentes fases. O Martim ficou encantado".

Mas e os riscos para as crianças?

"Uma coisa é a gente ter contato esporadicamente (com o rio). Outra coisa é o contato diário, duas, três vezes por dia. Você vai se apropriar daqueles desafios, daquele ambiente. Há pouco espaço para perigo".

Meninos caçadores

Na visita aos Kisêdjê, outros episódios chamaram a atenção da antropóloga.

Uma tarde, Martim convidou um grupo de crianças da aldeia para visitar a casa do ISA, onde ele e a mãe estavam hospedados.

Martim na hora do banho no porto da aldeia; crianças indígenas tem relação próxima com a água/ Foto: Camila Gauditano/ Povo Kisêdjê.
"Os meninos foram com seus estilingues", conta Camila. "Aí viram que tinha morceguinho na casa e decidiram caçá-los com o estilingue. Foi a primeira experiência do Martim de ver o bichinho, de ver a habilidade do caçador, desenvolvida desde pequenininho. Deviam ter cinco ou seis anos e conseguiram caçar o morcego."

Birra

Em outra ocasião, na saída do banho, Camila observou um jeito diferente de os pais lidarem com birra de criança.

"Não sei por que motivo, uma criança começou a chorar muito. Os pais estavam saindo do rio, talvez ele quisesse ficar mais tempo na água… Os pais simplesmente saíram andando. A criança foi atrás, chorando".

"Não tem essa bajulação, de ficar em cima, 'o que foi, o que aconteceu? Se você parar de chorar, te dou isso…' Tomaram a atitude de não alimentar a birra. Essa é uma observação muito pessoal, mas acho que o princípio é, quanto menos bola se dá para a birra, mais a criança tem condições de resolver suas próprias frustrações."

Amamentação

Por outro lado, diz a antropóloga, não falta atenção às crianças nas aldeias.

As mães têm total disponibilidade para estar com as crianças. Enquanto são bebês, a mãe não sai para trabalhar na roça. "A família faz esse trabalho por ela", diz Camila. "Às vezes, até o marido tem restrições para ir à roça quando tem bebê pequeno."

Mais tarde, se a mãe vai à roça, tem a ajuda dos parentes. "A criança pequena fica com a tia ou avó."

Ou seja, não há a angústia ou a culpa da separação que aflige tantas mães trabalhadoras nas cidades. Também não há a preocupação com a amamentação - ou com o desmame:

"Já vi criança de três anos sendo amamentada. Lá é livre demanda, quer mamar, mama. Na mãe, na tia, na avó… às vezes, a mãe saiu mas a avó está ali e tem leite. Ela dá. É normal."

Crianças indígenas costumas ter mais autonomia/ Foto: Camila Gauditano/ Povo Ikpeng.

A criança tem atenção constante, mas também tem liberdade - se quiser.

"Quando a mãe vai para a roça, a criança, já mais velha, vai com ela. Mas quando a mãe está em casa, na aldeia, as crianças estão no pátio, indo atrás de passarinho, de bichinho, brincando".

"A partir de três anos, já são bem mais independentes em relação à mãe (do que as da cidade). Elas têm circulação livre na aldeia, mas nunca estão sozinhas. Estão sempre acompanhadas de crianças do mesmo tamanho ou maiores."

"Na nossa sociedade você não tem esse apoio coletivo que existe no convívio de aldeia. Não partilhamos a educação de nossos filhos com a comunidade."

'Bijou e peixe'

Muitos povos indígenas no Brasil hoje incorporam alimentos do homem branco em suas dietas. Comem arroz, feijão, açúcar e farinha. Mas mantêm lavouras tradicionais, como a da mandioca, e praticam a caça, a pesca e a coleta.

Hoje com cinco anos de idade, Martim ainda se lembra das delícias que comeu no Xingu. Questionado pela BBC Brasil sobre o que mais gostou de comer na viagem, ele responde:
"Bijou e peixe. É gostoso", diz. "Um dia a gente vai voltar lá. É muito gostoso e um dia eu quero voltar lá."

Bijou é uma tapioca grande que os índios comem com peixe assado, explica Camila. Na aldeia todos comem juntos. As crianças comem o que tem. E desde cedo aprendem a coletar frutos da época. Também acompanham o adultos na caça e pesca.

"Desde cedo, aprendem a pegar seu peixinho."

Preguiça e brigas

De volta à cidade, Camila diz que se esforça para manter a cultura indígena viva na imaginação do filho.

"Um dia desses, o Martim estava com preguiça de acordar para ir à escola. Então, contei uma história para ele", diz a antropóloga.

"Tem um povo que mora numa aldeia. De manhã, quando esse povo acorda, em geral é muito frio porque o sol ainda não nasceu."

"Geralmente, as crianças também ficam com preguiça. Mas os mais velhos dizem que quem levanta cedo para tomar banho no rio fica saudável, forte e corajoso. Contei para ele como uma motivação. No final, expliquei que esse é o povo Xavante."

E para ensinar Martim a não brigar por besteira, Camila planeja levá-lo à terra Xavante para que ele participe de um ritual especial:

"Na aldeia Xavante, quando as crianças ficam brigando sem motivo, os mais velhos decidem em conselho que é hora de organizar o ritual Oi´Ó. Os índios tiram uma raiz da terra que funciona como instrumento de luta. Tem uma regra para se lutar: você (só pode) acertar seu companheiro de luta do ombro para baixo. A ideia é que as crianças aprendam o que é brigar de verdade, sentir dor de verdade. Lutam em duplas, um de cada clã (há dois clãs no povo Xavante), enfeitados e pintados, e a aldeia inteira assiste."

O povo Xavante é um povo guerreiro, daí o ritual, explica Camila. Ela não vê, no entanto, riscos para Martim.

"Fazem isso desde pequenos, desde os dois aninhos de idade até 14, 15. As duplas são escolhidas de acordo com o tamanho, têm o mesmo biotipo. E essa raiz é forte, mas não vai cortar ou furar. Vai ser importante para o Martim", diz.

Lições

As histórias sugerem, por exemplo, que a criança a partir dos três anos de idade pode ganhar mais autonomia do que costuma ter na nossa sociedade.

Ela diz, no entanto, que não vê sentido em tentarmos transpor, de forma literal, para a nossa cultura, o modelo oferecido pelos povos indígenas.

São sistemas diferentes que respondem a contextos diferentes, explica.

Para quem deseja aprender com o índio, "o ponto de partida é a integração de um povo indígena com o ambiente em que vive". Isso significa integrarmos nossas crianças com o ambiente delas: "O quintal de casa, a terra, as plantas, os parques, as praças, a rua, a comunidade".

"Você não precisa estar numa aldeia indígena para ter uma relação integrada com o seu meio. Pode desligar aparelhos celulares e tablets, ampliar a observação, a escuta, as possibilidades que sua própria realidade traz (para a criança)."

Martim passou 20 dias em convívio intenso com modos de vida tão diferentes dos dele. O que terá ficado, dessa experiência, para um menino tão pequeno?

"Como foi pouco tempo, o aprendizado foi ampliar a percepção da realidade. A relação com a diferença amplia o conceito de mundo. Você descobre que não há uma verdade absoluta, há muitas maneiras de se ser e de se estar no mundo - e essa é nossa maior riqueza."

Tribo indígena sofre massacre, MPF confirma e Ong responsabiliza governo Temer



À agência Amazônia Real, o Ministério Público Federal (MPF) confirmou que mais de 20 indígenas de uma tribo isolada do extremo oeste do estado do Amazonas foram assassinados por garimpeiros ilegais. O assassinato teria acontecido no último mês de agosto.

Do Portal Fórum - Conhecidos como “flecheiros”, os índios teriam sido mortos na cidade de São Paulo de Olivença, na fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia.

O massacre vem pouco tempo depois de outro ataque de garimpeiros que matou mais de vinte indígenas isolados da tribo Warikama Djapar, no Vale do Javari – este caso aconteceu em maio.

Em nota, a ONG Survival colocou na conta do governo Temer as recentes mortes de indígenas.

Caso tais relatos sejam confirmados, o Presidente (Michel) Temer e seu governo possuem uma grande responsabilidade por este ataque genocida. Todas estas tribos deveriam ter tido suas terras devidamente reconhecidas e protegidas há anos – o apoio aberto do governo àqueles que querem violar territórios indígenas é extremamente vergonhoso”, diz o texto.

Foto: Survival.