A
escravização de mulheres yazidis e outras práticas hediondas do grupo
extremista Estado Islâmico – tais como estupro e mutilação genital para evitar
a “expansão da libertinagem e da
imoralidade” – são algumas das notícias que circularam recentemente, abalando
consciências no mundo todo. Os relatos levam a uma reflexão sobre um cenário
bem mais próximo, aqui do Brasil: por que, na raiz da violência, está o
sentimento de “propriedade” sobre a mulher?
No
Brasil, mulheres também são seviciadas e mortas pelo mesmo sentimento de posse
e propriedade: 92,1 mil assassinatos entre 1980 e 2010 (Mapa da Violência 2012:
homicídio de mulheres no Brasil). Atualmente, estima-se que ocorram 472 mortes
por mês – são 15,52 por dia ou 1 a cada 90 minutos (Pesquisa do IPEA Violência
contra a Mulher).
O
aprendizado cultural e familiar ensina padrões de respeito ou violência. Até os
“singelos” ditados populares, aparentemente inofensivos, perpetuam esse tipo de
violência. Até quando aceitaremos essa situação passivamente?
A
violência de gênero, prevista na Lei Maria da Penha, tem como alvo a mulher,
simplesmente porque é mulher. Um comportamento aprendido e naturalizado.
Masculino e feminino são conceitos construídos e incorporados ao longo da vida.
Aprende-se a ser homem “com H” – gostar de futebol, ser másculo, viril – e a
ser mulher “para casar” – recatada, boa mãe, esposa e fiel.
Essas
diferenças não são naturais, mas construídas. “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, já dizia Simone de Beauvoir
no século passado. E uma das formas de perpetuar a diferença de gênero está em
mensagens ocultas dos ditados populares. Seguem alguns exemplos:
“Homem com fala de mulher, nem o diabo quer”.
Significado: o homem é superior e a opinião da mulher não tem valor. Na
verdade, há aproximadamente 80 anos, as mulheres conquistaram direitos de
votar, trabalhar e estudar.
“Em
briga de marido e mulher não se mete a colher”. Significado: a violência é um
problema privado e familiar. Na verdade, a violência atinge um terço das
mulheres do mundo e ensina um padrão comportamental para os filhos: 64% dos
jovens que praticaram violência, presenciaram atos violentos contra a sua mãe
(Pesquisa Violência contra a mulher: o jovem está ligado?, Instituto Avon e
Data Popular).
“Ela gosta de apanhar”. Significado: a
vítima está na relação violenta “porque gosta”. Na verdade, a vítima não
consegue reagir. A repetição da violência diminui a possibilidade de
resistência e de decisão. Essa vulnerabilidade ocorre no âmbito pessoal,
independentemente da condição econômica ou intelectual da mulher.
“Ele não sabe por que bate, ela sabe por que
apanha”. Significado: a culpa da violência é da vítima. É um ditado
perigoso, porque naturaliza a inversão da culpa nas relações violentas. O homem
dominador seduz a vítima e depois a controla. Estabelece regras, submetendo-a
aos poucos. Assim, justifica a agressão com base em um “deslize” da mulher ou
fatores externos, como uso de álcool.
“Um tapa não dói”. Significado: não é uma
violência séria. Na verdade, o tapa dói no corpo e destrói a alma. Revela um
padrão perigoso e não há como se antever a ocorrência de um fato mais grave.
Refletir
sobre o sentido de ditados, frases e até brincadeiras já representa um primeiro
passo no combate a esse tipo de crime que tanto nos choca. A principal causa
desse mal reside no sentimento de “propriedade” da mulher pelo homem. Assim,
não aceitar justificativas para a violência e não se omitir são bons começos
para soltar as amarras das mulheres que vivem a escravidão de gênero, do
distante Oriente Médio aos lares do Brasil.
*Valéria Diez Scarance Fernandes é
Promotora de Justiça no Estado de São Paulo, Vice-Coordenadora da Comissão
Permanente de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), do
Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), e Professora de Processo Penal da
PUC-SP. Autora da tese de doutorado: “Lei Maria da Penha: o Processo Penal no
caminho da efetividade”