Como a foto de uma menina sudanesa observada por um abutre, feita no Sudão em 1993, mudou a história do fotojornalismo e a vida do homem que a capturou
O avião que trazia a ajuda humanitária havia pousado há alguns poucos minutos no chão seco e arenoso do povoado de Ayod, Sul do Sudão. Em questões de segundos, centenas de pessoas, envoltas em farrapos ou mesmo nuas, debilitadas pela fome e pelo calor, corriam desesperadamente de um lado para outro tentando garantir o seu quinhão de comida. Em meses, aquela era a primeira ajuda que recebiam e não sabiam quando ou se haveria uma próxima. No meio da confusão, o fotojornalista sul-africano Kevin Carter, que tinha chegada a aldeia no avião, apontou sua câmera para uma cena aterradora, que nunca deveria acontecer: uma criança esquelética, contando não mais do que cinco anos, estava agachada, olhando para o chão, como se escondendo do mundo. Atrás dela, muito próximo, um abutre a observava pacientemente. Mesmo terrível, a cena era real, assim como a foto tirada por Kevin naquele quente mês de março de 1993. O fotografo ainda não tinha como saber, mas aquele registro se tornaria um dos mais impressionantes da história do fotojornalismo e mudaria a sua vida.
Kevin Carter não era o único fotojornalista em Ayod naquele dia. Ele tinha João Silva como companheiro. Os dois faziam parte do que se convencionou chamar de Clube do Bangue Bangue. Era assim que boa parte da imprensa mundial chamava um grupo de quatro fotojornalistas sul-africanos que cobria as tensões ocorridas nos últimos momentos da África do Sul do Apartheid. Além João e Kevin, o núcleo original do “clube” era formado por Greg Marinovich e Ken Oosterbroek. Em março de 1993, entretanto, Kevin e João não estavam cobrindo nenhum discurso de Mandela ou conflitos entre as etnias xhosas e zulus. Eles tinham viajado ao Sul do Sudão para tentar registrar o que acontecia em um dos lugares mais instáveis e violentos do planeta na época.
O Sudão estava em dividido em uma guerra longa guerra. Na época, a imprensa e os grupos humanitários falavam até mesmo em “genocídio” no país. As tribos cristãs do Sul do Sudão tinham se reunido sob o grupo rebelde Sudanese People’s Liberation Army, o SPLA, ou Exército de Libertação do Povo Sudanês. Lutavam contra o governo Cartum, dominado por nortistas islâmicos desde a independência do país, em 1956. Nos anos 1980, o conflito havia se intensificado, especialmente quando o governo adotou a lei islâmica, a xirá. Kevin e João tinham o objetivo de fazer uma reportagem sobre a recente e violenta divisão do SPLA.
Para os jornalistas, o Sudão nunca foi um país fácil de trabalhar. Incomodavam os líderes guerrilheiros. Nem mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU), tinha facilidade para entrar no espaço aéreo do país e pousar. Os rebeldes eram quase inflexíveis com esse tipo de permissão. Mesmo assim, Kevin e João decidiram tentar a sorte. Em março de 1993, saíram da África do Sul direto para Nairóbi, capital do Quênia e melhor ponto de trânsito para viagens ao Sul do Sudão. Ficaram estacionados na cidade durante dias, sem ter muito o que fazer. Os conflitos no Sudão estavam intensos e não havia autorização ou interessados em fazer o trajeto. Quando as esperanças (e os recursos financeiros) estavam próximos do fim, chegou a oportunidade que tanto esperavam: facções rebeldes tinha dado permissão à ONU para pousar e descarregar os mantimentos. João e Kevin seriam bem-vindos no voo. Os dois comemoraram e aceitaram prontamente a oferta.
O convite não era altruísta, mas sim uma jogada política da ONU, que enfrentava grandes dificuldades em obter fundos para o Sudão. Recentemente, a organização havia feito um apelo internacional por 190 milhões de dólares. Mas nem um quarto do montante havia sido conseguido. Levar dois fotojornalistas, neste sentido, poderia ser uma forma certeira de chamar a atenção do mundo para o drama do país africano. As fotos que poderiam surgir daquele pouso do avião de carga “Hércules” seria a publicidade perfeita. E foi exatamente isso o que aconteceu quando o pouso foi feito.
Momento Decisivo
Quando os sudaneses começaram a se atropelar, Kevin e João viram possibilidades de boas fotos em quase todas as direções. E assim os dois se afastaram na tentativa de dar conta de uma área maior. Enquanto João se deteve em uma clínica próxima do local, utilizada para atendimento dos casos de saúde mais grave, Kevin ficou na parte de fora. Foi quando viu a cena da criança, uma menina, e um abutre à sua espreita. Não teve dúvida e fez vários cliques. O fotógrafo ficou completamente extasiado com a foto que fizera. Estava muito agitado. Momentos depois, com a mão no ombros de João, Kevin falava rápido e profundamente emocionado: “Cara, você não vai acreditar no que acabei de fotografar!”. Depois de escutar a história e ver o registro, João, mesmo orgulhoso, teve uma pontinha de ciúmes. Pois não havia dúvida: a foto feita por Kevin era coisa boa, algo que o famoso fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson chamaria de “momento decisivo”. Ela com certeza incendiaria os noticiários internacionais.
A publicação da foto não poderia ter sido publicada em um veículo mais apropriado para dar destaque ao que acontecia no Sul do Sudão. Na época, a editoria internacional The New York Times fazia uma matéria a região e encontrava grande dificuldade em conseguir fotos para ilustrar o texto. Pouca gente havia estado naquele remoto lugar. Foi quando surgiu a informação de que Kevin Carter tinha estado lá e feito um foto brilhante. Nancy Buirski, responsável pela editoria, entrou em contato imediatamente com Kevin e conseguiu que a foto fosse publicada pelo jornal. O sucesso foi imediato. Em pouco tempo a imagem estava correndo o mundo, uma tremenda sensação. Jogada bem sucedida da ONU, que conseguiu alavancar as doações para o Sudão e sucesso para Kevin, que um ano depois levou para casa o prêmio Pulitzer, o mais importante no mundo do jornalismo.
A foto, porém, também trouxe revezes para o fotógrafo. Buirski lembrou, anos mais tarde, que logo que a foto foi publicada, as pessoas começaram a ligar para a redação. Queriam saber o que havia acontecido com a menina, se ela havia sobrevivido e, principalmente se o fotógrafo havia lhe ajudado. Uma chuva de perguntas que começava a afetar Kevin. Primeiro, ele contou que havia espantado o animal e que se sentou debaixo de uma árvore para chorar. As perguntas continuavam mesmo assim. Ele então completou a história dizendo que viu a menina tinha se levantado e caminhado até a clínica. A opinião pública não se satisfez com a explicação. Queria saber porque Kevin apenas havia observado e não e a levado no colo para um lugar seguro. Não havia resposta fácil para a indagação.
Debate ético
A história da foto da menina e do abutre gerou uma ampla discussão ética pública envolvendo a atuação de jornalistas em campos de guerra: deveriam estes prestar assistência ou apenas serem observadores, relatando ao mundo o que a guerra provoca? Alguns fotógrafos, inclusive aqueles do “Clube do Bangue Bangue”, tentavam ajudar como podiam aqueles que fotografavam. Já tinham socorrido vítimas, ajudado pessoas a sair da zona de tiros ou mesmo levado feridos para hospitais. No entanto, não havia nenhum parâmetro, nenhuma regra, nenhum acordo tácito para aquele tipo de situação limite. A interferência de jornalistas em zonas de guerra poderia transformar os próprios jornalistas em alvo. Ajudar ou não ajudar envolvidos no conflito nunca foi e ainda hoje é uma questão nebulosa.
O questionamento em torno da foto perturbou muito Kevin. Talvez outro fotografo tivesse lidado melhor com a situação. Mas com Kevin foi diferente. Antes mesmo da viagem ao Sudão, o fotojornalista enfrentava uma série de problemas pessoais. Relacionamentos malsucedidos, problemas com consumo excessivo de álcool e vício em mais de um tipo de droga. Para piorar, Kevin não tinha uma base familiar sólida e lhe faltava estabilidade no emprego. Trabalhava apenas para jornais sem expressão ou como freelancer. Mesmo quando ganhava dinheiro, como no caso de sua foto no The New York Times, este acabava sendo gasto para pagar mais drogas ou para quitar dívidas antigas.
Boa parte de seu drama pessoal tinha advindo da pressão de trabalhar em zonas de conflito. E além das cenas chocantes, que se tornaram parte de seu cotidiano, seu trabalho ainda acabou lhe gerando diversos inimigos. De um lado, grandes jornalistas invejosos do sucesso do “Clube do Bangue Bangue”; de outro, pessoas que não entendiam como alguém podia fotografar tantas desgraças como se fosse invisível.
A foto do abutre foi o ápice do trabalho de Kevin. Mas não o fim. O fotografo ainda continuou trabalhando na guerra. Era o que sabia fazer de melhor. Quando o conflito terminou, no entanto, com vitória para as forças democráticas de Mandela, Kevin não conseguiu se ajustar ao novo momento. No dia 27 de julho de 1994, aos 33 anos, levou seu carro até um local de sua infância e, utilizando uma mangueira para levar o monóxido de carbono do escapamento para dentro do veículo, cometeu suicídio. Deixou uma triste nota que dizia estar deprimido, sem dinheiro para pagar as contas, sem dinheiro para ajudar as crianças. Se disse perseguido pela lembranças de assassinatos, cadáveres, raiva e dor. Pela lembrança de crianças feridas ou famintas. Lembrança de “homens malucos com o dedo no gatilho”.
O suicídio de Kevin chocou seus companheiros de “Clube do Bangue Bangue”, que já haviam perdido, em zona de tiro, outro camarada, Ken Oosterbroek. O trabalho de Kevin, no entanto, sobreviveu. Sua foto continua até hoje sendo um libelo contra a guerra e contra a fome no continente africano. A prova concreta de como uma fotografia pode provocar as pessoas e entrar, definitivamente, para a história.
Saiba mais: se você quer saber mais sobre a história desta e de outras fotografias feitas pelo “Clube do Bangue Bangue”, leia o livro “O Clube do Bangue Bangue – Introdução de uma Guerra Oculta”, de Greg Marinovich e João Silva. O livro, um clássico para quem se interessa por fotojornalismo e história contemporânea, serviu de base para a elaboração desta matéria. O título desta, inclusive, é o título de um dos capítulos de livro.
Fonte: Cafehistoria