É
certo que muitos não sabem, mas Direito não se resume à letra da lei . Ou seja,
Direito não se resume à citação de legislação e seus respectivos artigos.
Lei é uma das fontes do Direito.
Além da legislação, temos como fontes do
Direito: a analogia, a
jurisprudência, a doutrina, o costume e
os princípios gerais de Direito.
Então,
por favor, tendo conhecimento dessa informação, antes de suscitar tão somente a
lei e tão somente o princípio da legalidade e da igualdade, entendam que é
imprescindível analisar caso a caso e observar as demais fontes do Direito.
Além disso, a lei deve ser observada de acordo
com o objetivo para o qual foi criada.
Sendo assim, observar o espírito da lei que
está sendo clamada é, no mínimo, sensato, principalmente quando a manifestação
partir de operadores do Direito.
O crime de racismo está previsto na
Constituição Federal de 1988, no inciso XLII do artigo 5, vejamos:
“a
prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à
pena de reclusão, nos termos da lei;”
A lei
7.716, de 5 de janeiro de 1989, define os crimes resultantes de raça ou de cor
e a lei 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas
aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religião,
etnia ou procedência, praticados pelos meios de comunicação ou por publicação
de qualquer natureza.
Leiam as disposições contidas na lei
7.716/1989 e depois façam as seguintes
perguntas:
Uma lei criada pouco tempo após o término da
ditadura militar, num país com histórico escravocrata, contendo tais
disposições, tinha/tem o objetivo de proteger quem de quem?
Quantas pessoas brancas precisaram ser
protegidas pelas disposições contidas nessa lei?
Desde sempre e, até hoje, quantas pessoas
brancas foram alvo de discriminação e impedidas de terem acesso a
estabelecimentos comerciais ou foram impedidas de receberem atendimento em
restaurantes, bares, confeitarias?
Quantas
vezes virou notícia o fato de uma criança branca ser impedida de entrar num
estabelecimento por ser confundida com pedinte?
Importante
que tais perguntas sejam feitas e que as respostas sejam honestas e não
utilizem uma falsa simetria, principalmente se considerado os dados confirmados
em pesquisas sobre o tema.
E a jurisprudência? Quantos casos de racismo
contra brancos foram julgados pelo judiciário?
E o costume? É costume, no Brasil, presenciar
brancos sofrendo racismo?
E a doutrina? Em que momentos e quantos
juristas afirmam que pessoas brancas são alvo de racismo no Brasil e,
por esse motivo, devem recorrer ao termo "racismo reverso" para se
colocarem no lugar de vítimas?
Quem é excluído pela sociedade por causa da
cor da pele, pela textura dos cabelos, pelo fenótipo? As pessoas com a pele
Branca ou os negros?
Quem não se vê representado nos cargos de
poder, na mídia, nas revistas? O branco ou o negro?
O padrão de beleza imposto pela sociedade não
é o eurocêntrico?
O preconceito está ligado à cultura e à
história!! Desconsiderar esse fato para suscitar racismo reverso é
desonestidade intelectual que tem como único fim levar pessoas a interpretações
equivocadas com relação a toda
legislação que dispõe sobre racismo no Brasil.
No histórico do Brasil, os brancos sempre se
sentiram superiores com relação aos negros e esse sentimento que foi enraizado
ainda é dominante no atual cenário, em pleno século XXI, quando contamos com
400 anos de escravidão e apenas 100 anos de abolição mal feita e sem inclusão
social dos negros alforriados.
Sobre a época da escravidão, que podemos
afirmar que acabou faz bem pouco tempo em termos históricos, motivo pelo qual
os negros no Brasil ainda sofrem com as heranças malditas desse holocausto,
vejamos:
“Eram examinados como animais: apalpados,
dedos enfiando-se pelas bocas, procurando os dentes para adivinhar a idade ou
conferir se o vendedor não mentia”. (CHIAVENATO, 1980, p.127)
Diante
disso, a legislação que trata de racismo no Brasil foi criada para proteger
brancos de negros ou o contrário?
Quem foi inferiorizado no Brasil Colônia e é
até hoje ? O branco ou o negro?
Foi a lei Afonso Arinos (lei 1390/51) a
primeira a tratar da questão do preconceito e da discriminação racial e nessa
época eram os negros os opressores ou os brancos?
Todas
as legislações citadas foram criadas após constatação muito atrasada das autoridades
de que a escravidão no Brasil foi um grande erro, um holocausto. Não existiu no
Brasil um holocausto Branco, e brancos aqui nunca foram considerados não
humanos, nem moeda de troca, nem objetos.
Suscitar o princípio da igualdade para alegar
racismo reverso também não pode ser aceito. Motivo? O princípio da igualdade é
aplicado entre os iguais. Quando negros e brancos foram tratados com igualdade
nesse país para que os brancos, em flagrante situação de privilégio, possam
invocar o princípio da igualdade sem relativizar quando alegam racismo reverso?
O princípio da igualdade tem o objetivo de
garantir o tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais. Caso
contrário, poderíamos suscitar o direito de receber remuneração igual a de um
juiz de Direito. Certo?
Importantes e renomados juristas já se
manifestaram na doutrina jurídica, contribuindo de forma grandiosa para que
fique explícita a impossibilidade de alegar crime de racismo contra brancos:
“Com o
termo Racismo se entende, não a descrição da diversidade das raças ou dos
grupos étnicos humanos, realizada pela antropologia física ou pela biologia,
mas a referência do comportamento do indivíduo à raça a que pertence e principalmente,
o uso político de alguns resultados aparentemente científicos, para levar a
crença da superioridade de uma raça sobre as demais. Este uso visa a justificar
e consentir atitudes de discriminação e perseguição contra as raças que se
consideram inferiores”. (Dicionário de Política de Noberto Bobbio, Nicola
Matteucci e Gianfranco Pasquino – 2004, p.1059)
Além
disso, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema no julgamento
do “Caso Ellwanger” (Habeas Corpus n.
82.424-2/RS).
Portanto,
pessoa branca alegar que sofreu preconceito pela cor ou raça é impossível, pois que a análise não considera apenas a
questão biológica e antropológica, mas a questão cultural e social, e na
questão cultural e social é o povo negro que é oprimido desde sempre, motivo
pelo qual é o principal alvo das políticas públicas de inclusão social, como as
ações afirmativas, as cotas raciais.
Se
considerada a questão cultural e social, quem é o oprimido e quem é o opressor
num país com histórico escravocrata como o Brasil? O negro ou o branco?
Por fim, será de bom tom que pessoas que
ocupam local de privilégio por serem brancas, numa sociedade que segrega os
negros, apenas parem de suscitar o "crime" racismo reverso, visto que
o mesmo é juridicamente impossível.
* Advogada sindicaria desde 2005,
especialista em direito público. Mulher negra e militante do feminismo negro
interseccional.