Luiz Ruffato reúne em 20 contos, do
século XIX aos nossos dias, um inventário literário da corrupção nacional
Um
tema é onipresente em nosso noticiário político: a corrupção. Aliás, por aqui,
quase que uma coisa é entendida como sinônimo da outra - estou falando, claro,
da política e da corrupção. Em disputas eleitorais, como a que se viu há pouco,
ainda que se fala em diferentes projetos de governo, de gestão público, o que
anima candidatos e entusiastas é a troca de acusações. É encontrar aquele
tropeção no rival, que desqualifica a ele mesmo, para além de qualquer
qualidade de seu projeto de governança.
Nomes como Lygia Fagundes Telles,
Machado de Assis e João do Rio (em sentido horário) têm em algumas de suas
obras referências ao tema corrupção
Entre
os intérpretes clássicos do Brasil, a exemplo de Gilberto Freyre e Sergio
Buarque de Hollanda, há quem veja nesse problema uma cultura, de raízes
remotas, que vem deste os tempos da colonização do território que viria a ser o
Brasil pelos portugueses. É o tal do personalismo, que faz confundir o público
e o privado, e que assume sua expressão mais nociva nas práticas da corrupção e
do abuso do poder - sem que, ao criticá-las, tenhamos qualquer sombra do
moralismo, comum nas disputas eleitorais.
Contrariando
o adágio popular, o brasileiro discute sim religião (disfarçada, mas presente
em temas espinhosos como o aborto e a pena de morte), o futebol e a política
(sobretudo em seus momentos mais apimentados). Não é de se impressionar,
portanto, que o lado sombrio de nossa cultura política tenha servido de musa
inspiradora para artistas de diversas linguagens. Um povo que reclama tanto de
seus políticos nem precisa da chamada arte engajada para problematiza seus
jogos de poder. Faz isso em canções populares, que atingem multidões pelas
rádios, em telenovelas, sucessos de nossa instável cinematografia e, claro, na
literatura. Os artistas engajados, importante dizer, não são desnecessários.
Contudo, o debate político não é uma exclusividade de suas obras, da forma como
querem alguns.
A coletânea
Corrupção
e poder têm a ver com o novo projeto do romancista mineiro Luiz Ruffato. Para a
editora Língua Geral, ele havia organizado duas antologias de conto,
"Entre nós" (2009), sobre homossexualidade; e "Questão de
pele" (2009), sobre o preconceito racial. O terceiro volume desta coleção,
a Língua Franca, tem por eixo temático justamente a incômoda tradição que é
tema desta edição do Caderno 3. Como a corrupção é coisa ordinária, do dia a
dia, o título do livro organizado por Ruffato não poderia ser mais preciso em
sua crueza: "Sabe com quem está falando?". A frase, ao invés de ser tirada
de um dos 20 contos compilados no livro, vem das ruas, é síntese que o saber
popular encontrou para descrever uma realidade muito complexa, da corrupção do
exercício do poder. A seleção é abrangente, vindo de fins do século
XIX/princípios do século XX (com Machado de Assis e Artur de Azevedo) e
chegando a contemporâneos (João Ubaldo Ribeiro, Sérgio Sant´Anna, Marçal
Aquino).
"Cobrindo
um lago período da história política, ´Sabe com quem está falando?´ propõe uma
reflexão a respeito do exercício do poder e da prática da corrupção no Brasil,
por meio de contos, às vezes trágicos, às vezes divertidos, recolhidos entre os
melhores autores nacionais", apresenta o autor o projeto, no prefácio
("Quanto vale um homem"). No texto, além de apresentar, em poucas
palavras, as histórias reunidas no volume, Ruffato faz um resumo de nossa
história política - uma referência, senão indispensável, certamente
enriquecedora à leitura dos contos.
João
do Rio, famoso por suas crônicas que retrataram vivamente as ruas da então
capital federal, o Rio de Janeiro, era famoso por sua pena afiada, crítica e
irônica. É encharcado de ironia seu conto "O homem de cabeça de
papelão", um dos destaques da coletânea. Nele, o escritor carioca cria uma
fábula, que se pretende metáfora dos costumes de seu tempo - e, infelizmente,
do nosso também. O protagonista é o jovem Antenor, uma aberração para o
fictício País do Sol, onde transcorrem as ações. Mesmo sua mãe se horroriza com
a excentricidade nata do filho. "Ele não tinha exigências, era honesto
como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de ideias",
descreve-o o narrador. Um ex-companheiro de trabalho é menos polido ao opinar
sobre Antenor: "É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga
a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro".
A
ironia também se faz presente, em dose quase excessiva, na história escrita por
Machado de Assis, "Teoria do Medalhão", publicada pela primeira vez
em 1881. Nela, o escritor apresenta um diálogo entre um pai e um filho. O velho
ensina a velhacaria política ao jovem de 21 anos, pronto para a vida adulta. O
ensinamento é explícito quanto à rejeição ao pensamento crítico e à ironia.
"As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra,
razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande
conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas
às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar
do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um
cometa, de qualquer coisa (...). Com este regime, durante oito, dez, 18 meses
¬- suponhamos dois anos -, reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à
sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum", ensina o velho político.
História e estórias
A
universalidade dos contos de João do Rio e de Machado de Assis contrasta com a
radical historicidade de outros. O momento histórico mais retratado nos contos
do livro é, sem dúvidas, a ditadura militar. Capítulo incontornável de uma
história do abuso de poder no Brasil, serve de inspiração para uma série de
histórias, de autores de gerações distintas. O golpe militar de 1964 é narrado
por Marques Rebelo, com ironia machadiana, em "Acudiram três cavalheiros".
A
ditadura é tema também de "Seminário dos ratos", de Lygia Fagundes
Telles, que retrata de uma simbólica infestação de roedores que aflige um País.
O conto é um retrato da burocracia e da relação parasitária do regime.
"Almoço de confraternização", de Sergio Sant´Anna toca em questões
ainda mais dolorosas do período: a repressão por meio da censura e da tortura.
O conto de Marçal Aquino, "Na serra, fora dela", pode ser lido como
uma história de sobrevivência dos métodos de fazer política daquele período,
ainda hoje observados.
Sobrevivência,
aliás, é uma boa palavra para pensar a coleção de contos reunidos por Luiz
Ruffato. Se sobrevivem as práticas sujas no fazer político, também sobrevivem,
como demonstram essas narrativas, a indignação, a crítica e a ironia, armas
indispensáveis nessas recorrentes batalhas.
Trecho
Desde
menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível:
Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade
verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe
impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no
jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara
calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no
País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz,
entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava
livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a
própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do
que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma
só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora:
Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente,
incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque
quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala
os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só
para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos
delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
"O homem de cabeça de
papelão", de João do Rio
LIVRO
Sabe
com quem está falando? Contos sobre corrupção e poder
Luiz
Ruffato (org.)
Língua
Geral
2012,
376 páginas
R$
39,50
DELLANO RIOS
EDITOR
Crédtos:
Diário do Nordeste