Leia a íntegra do discurso de defesa de Dilma no processo de Impeachment no Senado



Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal Renan Calheiros, Excelentíssimas Senhoras Senadoras e Excelentíssimos Senhores Senadores, Cidadãs e Cidadãos de meu amado Brasil, No dia 1o de janeiro de 2015 assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos. Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil. Ao exercer a Presidência da República respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo. Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram. Nesta jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade. Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros. Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados, e até assassinados. Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia. Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça. Disso tenho orgulho. Quem acredita, luta.
Publicado originalmente no sítio do senado

Aos quase setenta anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram. Exercendo a Presidência da República tenho honrado o compromisso com o meu país, com a Democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública. Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir, na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio. E por isso, como no passado, resisto. Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito. Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram. E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir. Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não tem caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu País, pelo seu bem-estar. Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos. Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da Presidência da República que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de Vossas Excelências, e dizer, com a serenidade dos que nada tem a esconder que não cometi nenhum crime de responsabilidade. Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente. Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment. No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de estado. O Presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada “República do Galeão, que o levou ao suicídio. O Presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu essa cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças. O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964. Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso País. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas. Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.

As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica. Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas nesse processo, foi reconhecido como suspeito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas. São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas. São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador. A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014. Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras “nenhum direito a menos”. O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição. O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria. O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso País no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns. O que está em jogo é a auto-estima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do País de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas. O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população. O que está em jogo é o futuro do País, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais. Senhoras e senhores senadores, No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime. Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo “conjunto da obra”. Quem afasta o Presidente pelo “conjunto da obra” é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo Governo interino e defendido pelos meus acusadores. O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos. Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios. A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade. Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores. O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas. A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria. Senhor Presidente Ricardo Lewandowski, Sras. e Srs. Senadores, A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira. Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment. Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço. Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo. Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços. Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o País. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do “quanto pior melhor”, na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população. A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical. Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica. Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo Deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas. As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os Srs. e as Sras. Senadores sabem que o funcionamento dessas Comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise. Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade. Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.


Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro. Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período. Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da “sangria” de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público. É notório que durante o meu governo e o do Pr Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados. Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal. Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive. Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição. Encontraram, na pessoa do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha o vértice da sua aliança golpista. Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014. Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma “chantagem explícita” do ex-Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação. Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações. Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente. Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética. Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida. Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição. Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira. Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.


Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado. Senhoras e Senhores Senadores, Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei? A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional. Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal. Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado. Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa. Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano – foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária. Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história. Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009. Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho. Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos. Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação. O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos. Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001? Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal? A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente. A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião. Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito. Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime. Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes. Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação. Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público. Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder. É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas. Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação. Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de “devido processo legal”. Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.

Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito. Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência. Senhoras e senhores senadores, Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida. Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito. Jamais o faria porque nunca renuncio à luta. Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe. As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher Presidenta do Brasil. Chego à última etapa desse processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá- los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso País. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia. Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política. Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história. Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à Presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores. Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história. Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência. Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços. Reitero: respeito os meus julgadores. Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.

Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata. Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos. Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal. Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente. Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira. Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro. Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia. Muito obrigada.

Dilma durante discurso no senado nesta segunda, 29 de agosto.





A educação por um triz



Se eu lhe perguntar qual o melhor caminho para a transformação social, para a construção de um lugar onde haja comida e bebida para todos, você me dirá que é a educação.

Um dos maiores pensadores do Brasil já alertava para esse fato. Paulo Freire dizia “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda”. Ele sabia bem da importância dela para a vida, para o ato de cidadania. Afinal, não basta só ter acesso à educação. É preciso permanecer nela. Mas é muito pouco só permanecer na escola, na universidade. É fundamental que haja aprendizado e que este seja uma arma contra a tirania, contra os ditadores e contra os falsos democratas. É fato que para que isso aconteça aquele que tem o poder de transmitir os “saberes” também tenha esse desejo.

É sabido que educar para a cidadania e para a politização é educar para a vida. É acima de tudo um dever social, pois garante que o educando seja agente transformador da sua própria história. Mas também é sabido que essa tem sido a tarefa mais árdua e difícil de se construir por vários motivos. O principal deles porque temos uma elite governante que não está preocupada com isso. Não é satisfatório para quem está no poder ter mentes pensantes. Recorro mais uma vez a Paulo Freire que afirmava “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.

As palavras de Freire ganham cada vez mais força diante de um cenário triste em que o Brasil passa, principalmente na educação. Primeiro a possibilidade já anunciada por Temer de acabar com a obrigatoriedade constitucional de se gastar com Educação 18% da receita resultante de impostos; em segundo lugar, some-se a isso a ideia de se acabar com todas as políticas públicas que fortalecem o acesso à educação a grupo que sempre lhes foram negadas oportunidades como negros e indígenas. Aqui, a ideia é acabar com o sistema de cotas e impedir que o brasil seja de fato o que é, um país predominantemente negro; cortes nos investimentos nas universidades; Em terceiro, o governo não quer quem pesquisa; Quarto, suspendeu as novas vagas para o Pronatec, ProUni e Fies e a última ideia repugnante quer acabar com os programas que tem como finalidade reduzir o analfabetismo.

Pensem em um adjetivo para quem destrói a educação pública. Pensaram? Então lhes apresento Michel Temer (PMDB). A educação está por um triz. 

Mendonça Filho (esq) e Michel Temer. Foto: Divulgação.

Fernando Verissimo sobre o Impeachment: “...nesta ópera, o palhaço somos nós"



A tragicomédia brasileira de 2016, em que a presidente honesta é afastada por políticos corruptos, por meio de um golpe parlamentar, foi retratada pelo escritor Luis Fernando Verissimo, no artigo Ri, palhaço.

"Depois da provável cassação da Dilma pelo Senado, ainda falta um ato para que se possa dizer que la commedia è finita: a absolvição do Eduardo Cunha. Nossa situação é como a ópera “Pagliacci”, uma tragicomédia, burlesca e triste ao mesmo tempo. E acaba mal", diz ele.
Publicado originalmente no Brasil 247

"O Eduardo Cunha pode ganhar mais tempo antes de ser julgado, tempo para o corporativismo aflorar, e os parlamentares se darem conta do que estão fazendo, punindo o homem que, afinal, é o herói do impeachment. Foi dele que partiu o processo que está chegando ao seu fim previsível agora. Pela lógica destes dias, depois da cassação da Dilma, o passo seguinte óbvio seria condecorarem o Eduardo Cunha. Manifestantes: às ruas para pedir justiça para Eduardo Cunha!"

Verissimo faz ainda um lembrete: "evite olhar-se no espelho e descobrir que, nesta ópera, o palhaço somos nós."

Neste fim se semana, Le Monde e New York Times ridicularizam o Brasil. No jornal francês, o impeachment foi chamado de golpe ou farsa.  No NYT, Dilma é devorada por ratos. 


Por que importa quem nos representa?



As eleições municipais estão se aproximando e chegam com uma série de novidades. A reforma eleitoral de 2015 promoveu mudanças que já impactam o pleito, como a redução do tempo de campanha, que agora tem apenas 45 dias, e a proibição do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas.

Outra novidade que desponta nas redes sociais é a visibilidade grande de pessoas LGBT e mulheres feministas se candidatando.
Publicado originalmente no Ceert

A partir da constatação de que a configuração atual do Parlamento não reflete a realidade da população brasileira, essas candidaturas prometem que mudar isso, colocando mais representantes mulheres, LGBT, negros e negras, mudaria radicalmente a política.

Essas campanhas são recheadas de frases como "LGBT vota em LGBT", "representatividade importa", "para a juventude ocupar a política".

Mas por que importa quem seu/sua representante é? Ou seja, por que é importante que a pessoa que recebe seu voto seja mulher, LGBT, negro ou negra?

A resposta mais comum é dizer que não importa. A política seria um embate de ideias, então importaria o que a pessoa pensa e defende, não o que ela é e os partidos seriam meios institucionais de agregar pessoas com ideias similares. Assim, deveríamos eleger alguém que defenda ideias com as quais concordamos, independentemente de quem ela seja. Isso é, em parte, verdadeiro. Não há garantia alguma de que uma pessoa, por pertencer a determinado grupo, defenda os direitos desse grupo ou determinada ideia. Clodovil Hernandes é um exemplo; apesar de gay assumido, quando deputado federal, não foi um grande defensor dos direitos LGBT.

As pautas que alguém diz defender são importantes e não devem ser ignoradas, mas as ideias não são completamente desvinculadas das pessoas e seus pertencimentos.

Para além da pessoa, os partidos também têm um papel importante em nosso sistema político. Os partidos possuem pautas consideradas prioritárias e têm um certo grau de controle sobre como seus parlamentares votam nessas questões.

Se o partido não acolhe as demandas dos grupos oprimidos, pode ser que o parlamentar que representa um desses grupos tenha pouca liberdade para agir em favor desses interesses.

Mesmo que tenha liberdade, pode não ter apoio de seus companheiros de partido, dificultando a aprovação de suas propostas.

Além disso, o voto em um candidato é também o voto em um partido, podendo, dessa maneira, acabar por eleger uma pessoa com interesses opostos ao que você defende. Por isso, é muito importante prestar atenção ao partido de seu ou sua candidata e optar por partidos que efetivamente apoiem as pautas dos grupos oprimidos.

Apesar desses argumentos, a simples presença de pessoas de grupos oprimidos na política é importante e existem, pelo menos, quatro boas razões para você votar em alguém que pertence a um grupo oprimido. As razões são:

1) A demanda por representação de grupos oprimidos é uma demanda por outra forma de democracia;

2) A sub-representação de grupos oprimidos é injusta;

3) Os interesses dos grupos oprimidos ganham representantes;

4) A pessoa eleita se torna um modelo positivo.

#1 A demanda por representação de grupos oprimidos é uma demanda por outra forma de democracia

Grande parte da população não se sente representada pelos nossos políticos e pelos partidos. Sentem que já não existe mais uma aproximação entre as pessoas, os partidos e os políticos e que estes defendem apenas seus interesses.

Votar em alguém que pertence a um grupo oprimido é uma aposta na mudança.

As mulheres eleitas tendem a dialogar mais entre si, independentemente do partido, e também possuem mais contatos com os grupos de pessoas que as elegeram, promovendo reuniões e assembleias para aproximar sua base. O lobby do batom, como ficou conhecida a articulação de mulheres durante o processo de constituinte, é um desses claros exemplos de articulação suprapartidária. A atual bancada feminina continua a atuar dessa maneira.

Muitas das candidaturas de mulheres, LGBT e pessoas negras são fruto de articulações de base e trazem como pauta, além das defesas dos interesses do grupo, uma maior participação da população na política.

O voto de quatro em quatro anos é muito pouco; votar num candidato ou candidata mais próxima de você, que constrói coletivamente a campanha e o mandato, te dá mais condições de acompanhar as ações, de cobrar e questionar as posições dessa pessoa, ampliando as chances de que seus interesses sejam efetivamente representados. É diferente de um "político profissional", que não é próximo de você e que vê a política como um fim em si mesmo.

A política, para grande parte das candidaturas que se originam de grupos minoritários, é um meio para a conquista de direitos para o grupo ao qual pertencem.

#2 A sub-representação de grupos oprimidos é injusta

É injusto que os parlamentos brasileiros sejam dominados por homens brancos heterossexuais. Será que essas pessoas possuem alguma capacidade fantástica e superior que faz que elas sejam representantes melhores do que mulheres ou pessoas negras e as tornem, assim, as legítimas representantes da sociedade?

Não! Não há uma diferença de natureza que faça que homens brancos heterossexuais sejam mais adequados para entender os problemas da sociedade e propor leis.

Se não existissem obstáculos impedindo que determinados grupos se elejam, era de se esperar que a configuração dos parlamentos fosse mais próxima daquela da população geral. Uma pequena variação seria aceitável, mas as discrepâncias atuais são muito grandes para ser uma simples distribuição aleatória.

As mulheres são 50,62% da população brasileira, mas apenas 31% das candidaturas para a vereadores são femininas. Não possuímos dados estatísticos sobre a população LGBT no Brasil, mas é impressionante que haja apenas um deputado federal abertamente gay no Brasil.

Essa discrepância é reflexo de um sistema complexo de injustiças que opera estabelecendo uma ampla gama de barreiras.

A primeira é a barreira da ambição política. Diversas pessoas de grupos oprimidos não ambicionam se eleger por acreditar que não seriam capazes.

A segunda é a barreira do financiamento; pessoas de grupos oprimidos têm dificuldades de conseguir um bom financiamento de campanha ou até mesmo apoio do partido, tornando sua campanha precária.

Outra é a barreira da elegibilidade, ou seja, algumas pessoas efetivamente deixam de votar em uma candidata por ela ser lésbica, ser negra ou pertencer a outro grupo oprimido. Insinuar ou revelar que o candidato rival é homossexual é uma estratégia muito utilizada para reduzir os votos do inimigo.

Essas barreiras são injustas e não deveriam existir.

#3 Os interesses dos grupos oprimidos ganham representantes

Vivemos em uma sociedade plural em que as pessoas têm opiniões e valores distintos e muitas vezes opostos. É impossível que uma única pessoa represente todos os interesses existentes e ainda dê conta de solucionar os embates entre posições opostas.

A ideia que fundamenta a democracia representativa é justamente de ser um mecanismo que permite organizar a pluralidade e os conflitos de interesses, de maneira a dar condições para que todos sejam representados dentro da política. Infelizmente, isso não é o que acontece na prática.

Os interesses dos grupos oprimidos raramente são representados; assim, projetos de lei que visam garantir direitos a esses grupos são sistematicamente abandonados ou reprovados.

Os direitos LGBT são um exemplo claro. Desde 1995, existem projetos de lei para regulamentar as uniões entre pessoas de mesmo sexo, criminalizar a LGBTfobia, entre vários outros.

No entanto, o Congresso, por pressão da bancada religiosa conservadora, se recusa a aprová-los e ainda retira as menções a gênero e orientação sexual de projetos, como ocorreu no Plano Nacional de Educação e na Lei do Feminicídio.

Por isso, é importante que pessoas pertencentes aos grupos oprimidos sejam eleitas, para que seus interesses sejam representados.

Existem duas boas objeções a esse argumento. Primeiro, que não é preciso pertencer a um grupo oprimido para representar seus interesses e segundo, como já dito anteriormente, que não há garantia de que o pertencimento a determinado grupo implique defesa dos direitos desse.

São argumentos verdadeiros, mas que não impedem a demanda por maior representatividade. Em relação à primeira objeção, apesar de qualquer pessoa poder representar os interesses de um grupo oprimido, na prática, quem o faz é exceção, como a deputada Erika Kokay - que mesmo sendo heterossexual, já se consolidou como uma defensora dos direitos LGBT.

Em relação à segunda objeção, ela na verdade deve ser interpretada como um motivo extra para maior representatividade, uma vez que não existe uma opinião única dentro dos próprios grupos oprimidos.

A criminalização da LGBTfobia é um exemplo; há pessoas LGBT que defendem com unhas e dentes a criminalização, outras que acreditam que essa não é uma via adequada de combate ao preconceito. Essa pluralidade de opiniões interna aos grupos deve ser representada.

#4 A pessoa eleita se torna um modelo positivo

A visibilidade na mídia dos grupos oprimidos costumeiramente é baixa ou negativa.

A maioria dos filmes exibidos anualmente nos cinemas nem sequer passa em testes simples, como o de Bechdel, que verifica se (a) existem duas mulheres no filme, (b) se elas conversam entre elas e (c) se a conversa é sobre algo que não um homem.

A visibilidade de LGBT e de pessoas negras também é bastante precária e negativa; quase sempre mulheres negras são representadas como domésticas e travestis, como prostitutas -- isso quando são representadas.

A representação baixa ou negativa tem efeitos concretos nas pessoas, podendo causar, por exemplo, baixa autoestima nas pessoas que pertencem ao grupo sub-representado e servir para legitimar as estruturas de poder e as hierarquias sociais.

A existência de uma pessoa que pertence a um grupo oprimido em um cargo de poder permite que outras pessoas se identifiquem com a pessoa eleita e desejem algo mais em sua vida, ampliando a autoestima e também as expectativas. Serve também para desconstruir o imaginário social negativo de determinado grupo, demonstrando que são capazes, como qualquer outra pessoa, de assumir um cargo de poder ou fazer o que quiserem.

A política não é apenas um debate de ideias entre pessoas desprovidas de qualquer pertencimento e corporalidade.

Neste ano, quando for escolher em quem votar, pense bem. Pense no partido e nas pautas, mas leve em conta também quem é a pessoa e considere dar preferência a votar em uma mulher, uma pessoa LGBT ou uma pessoa negra.

Existe uma série de páginas na internet que podem te ajudar a encontrar candidatos e candidatas feministas e LGBT: Candidaturas Trans do Brasil, Vote LGBT e Vote numa feminista.

Infelizmente não encontrei nenhuma página que agregue campanhas de negros e negras.


Obs.: a maioria dos argumentos apresentados aqui foi formulada e sistematizada originalmente pela cientista política feminista Anne Phillips. Para ver as posições originais da autora - muito mais detalhadas e aprofundadas do que foi possível fazer aqui - consulte o texto "PHILLIPS, A. Democracy and Representation; or, Why Should it Matter Who our Representatives Are? In: PHILLIPS, A. Feminism and politics. Oxford; New York, Oxford University Press, 1998". Anne Phillips possui uma vasta e respeitada obra abordando o tema da representação política de mulheres e outros grupos oprimidos.


António da Nóvoa: "É na escola pública que se ganha ou se perde um país"



Desde 1994, o português António da Nóvoa, 62, visita o Brasil pelo menos uma vez ao ano. Requisitado para palestras e aulas, este educador e ex-reitor da Universidade de Lisboa é, assim, um espectador privilegiado dos avanços e descompassos do sistema educacional brasileiro. Vê, por aqui, mudanças significativas, como a ampliação do orçamento dedicado à educação. "Mas a escola pública brasileira ainda é, de forma geral, um escândalo", diz. "E é na escola pública que se ganha ou se perde um país". Em 2006, Nóvoa liderou o processo de fusão da Universidade de Lisboa e da Escola Técnica de Portugal, abrindo a universidade ao país. A popularidade que alcançou na defesa pelo direito ao ensino público de qualidade fez dele o representante da esquerda portuguesa nas eleições presidenciais do início deste ano. Derrotado pelo candidato conservador, Nóvoa segue sua agenda de "ativista da educação", como já foi batizado pela imprensa portuguesa. Dos exemplos bem-sucedidos de ensino que já conheceu pelo mundo, destaca os da Suécia e Finlândia. "São modelos fortes porque estamos falando de três ou quatro séculos de responsabilidade e compromisso com a escola. Não três ou quatro décadas". Nesta entrevista à Muito, Nóvoa fala sobre inovação no ensino, elite brasileira e escola com partido.
Publicado originalmente no A Tarde

O senhor costuma dizer que o problema da educação brasileira não está na escola. Onde está?
Há dois problemas centrais. O primeiro é uma falta de compromisso social e político com a educação de qualidade para todos. Os brasileiros já incorporaram a ideia de que a escola é importante e de que é preciso que as crianças a frequentem. Mas ainda não há um verdadeiro compromisso com essa ideia. Não falo apenas numa escola onde todas as crianças estejam, mas onde todas as crianças aprendam. Esse ainda é um compromisso frágil por parte das famílias, da sociedade e dos políticos. E há o segundo problema, a formação dos professores. No Brasil, os professores são formados com muita coisa teórica, muita coisa desconectada, e pouquíssimo foco no trabalho docente, na formação do professor como um profissional que terá uma atuação diária dentro de uma escola. Isso tem levado a professores com muitos compromissos - políticos, sociais, com o bem-estar social da criança -, mas com pouco compromisso com a aprendizagem, que deveria ser o foco.
Nossos resultados médios são ruins, mas há muitos municípios com resultados bárbaros. Por que não conseguimos replicar essas estratégias?
Em regra geral, quando uma escola funciona é a existência de um grupo de professores que conseguiu mobilizar o município em torno de um projeto. Portanto, é chave ter professores empenhados e mobilizados. Deveria ser bem mais fácil, a partir de exemplos que funcionam, criar um contágio positivo para outras escolas. Mas isso não acontece porque a mobilização dos professores é escassa. Há um descompromisso, que tem raiz na formação, nos salários fracos. Há uma coisa no Brasil, por exemplo, que é terrível e que não tem precedentes em outros países: professores que  trabalham em várias escolas. Isso torna o dia a dia do professor um inferno. Como ele pode se concentrar numa escola, num projeto, se ele só passa metade do dia ali?
Essa fragmentação não acontece em outros países?
Nunca encontrei um exemplo semelhante. Na Europa não existe, nos Estados Unidos também não. E em todos os países que visitei na África e Ásia essa não é uma prática. Essa fragmentação do tempo do professor é uma particularidade do Brasil.
Inovação, na educação, parece sempre atrelada a inserção da tecnologia na sala de aula. Por que a escola tem tanta dificuldade em repensar a forma com que os conteúdos são trabalhados?
Os profissionais da educação têm, de forma geral, uma atitude defensiva. O cientista está sempre trabalhando no desequilíbrio, no risco, no desconhecido. O professor está sempre numa fronteira conservadora, do 'não risco'. Isso sempre foi assim. E é dramático. Os professores precisam perceber o que está acontecendo no mundo e, mais precisamente, perceber o que está acontecendo com as crianças. As crianças, hoje, pensam e ascendem ao conhecimento de forma diferente de nós. Pela primeira vez na história do mundo, as mudanças na escola não vão aparecer por conta de teorias pedagógicas, programas educativos ou leis. As mudanças vão aparecer porque as crianças estão exigindo dos professores que eles se adaptem a um mundo novo. Isso é totalmente revolucionário. A primeira revolução foi a invenção da escrita. A segunda, a invenção do livro. A terceira grande revolução está em curso. Em todas elas, o que mudou foi a forma de ascendermos ao conhecimento, de usarmos o cérebro e de aprendermos. Nós estamos num momento de virada na forma como se aprende. As novas gerações utilizam outras partes do cérebro, não fazem uma aprendizagem linear - às vezes, partem do mais complexo para depois alcançar o mais simples. 
Como promover essa inovação no Brasil, onde, segundo dados do Ministério da Educação, 22% dos alunos de 8 anos não sabem ler adequadamente e 35% não sabem escrever?
A questão da aprendizagem é, antes de qualquer coisa, um problema de sentido. Ou seja, quando estamos aprendendo algo nos perguntamos se aquilo tem algum sentido para a vida. Se eu pedir a uma criança para fazer, durante cinco horas por dia, uma atividade em que ela não encontre nenhum sentido, ela não fará essa atividade - se fizer, fará de forma mecânica e não apreenderá. Quando falamos em escola do futuro falamos de uma escola que se baseia no sentido do aprendizado. Há, hoje, no Brasil, muitas crianças de 8 anos que não sabem ler nem escrever, mas essas mesmas crianças são utilizadoras do WhatsApp e muitas delas escrevem e leem no WhatsApp. Claro, podem escrever e ler mal, mas ainda assim o fazem. No momento em que elas têm uma necessidade de se comunicar, elas vão querer aprender a escrever. Como transformar essa escrita em algo que atenda ao cânone da língua é um desafio. Mas a educação brasileira pode dar um salto e sair de uma situação complicada para uma situação favorável. Isso passa, necessariamente, por resolver o problema do sentido da aprendizagem.
Quais competências o professor deve ter para trazer esse sentido?
No lugar de competências, gosto de falar em disposições. A primeira é uma disposição para trabalhar coletivamente. É preciso que o professor perceba que o seu trabalho não é individual e aquela ideia do 'eu professor, com meus meninos, na minha sala de aula' já não existe mais. A ideia, agora, é 'nós professores, com todas as crianças da escola, vamos organizar o trabalho pedagógico'. Além dessa disposição ao coletivo, há uma disposição em trabalhar no espaço social. O conceito de que a escola é uma espécie de 'bunker', no meio de um bairro, de uma cidade, está ruindo. A escola vai andar pela cidade. Quem educa uma criança é toda a cidade. A ideia de que a escola vai educar a criança é uma ideia do século passado. Os educadores foram colando tudo dentro da escola - a matemática, a história, a educação ambiental, a educação sexual, a luta contra a violência e contra as drogas - e a escola está inchada, prestes a ver suas estruturas arrebentadas.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, as instituições públicas brasileiras gastam quatro vezes mais com alunos no ensino superior do que com alunos na educação básica. Há uma inversão de prioridade?
Sim. O Brasil tem uma elite muito forte. Talvez seja um dos países com a elite mais forte e dotada de grande poder. E, quando falo em elite, falo da econômica, mas também das elites intelectuais e de esquerda. Por isso, inclusive, há um abismo entre os professores da educação básica e do ensino superior. Abismo salarial e de condições de trabalho. A elite brasileira conseguiu criar uma série de direitos que são muito diferentes dos direitos de quem está embaixo. E isso se traduz na ideia de um financiamento canalizado para as próprias elites. É natural que o ensino superior custe mais caro do que o ensino básico. Mas que seja 20% mais caro, não quatro vezes mais.
Numa entrevista recente, o professor e ex-ministro da educação Renato Janine Ribeiro disse que há muita resistência no Brasil em apoiar a educação básica. Uma resistência, inclusive, dentro do corpo de professores universitários...
Há uma resistência grande a certas mudanças e uma incapacidade de perceber que as mudanças têm que acontecer a favor de quem está na educação básica. Quem está na universidade arranja todos os argumentos para que isso não aconteça. Para mim, é muito doloroso ver que o Brasil tem, hoje, uma educação universitária pública de qualidade, mas essa qualidade se faz à custa de uma coisa: 20% dos alunos estão na universidade pública e 80% estão nas universidades privadas. Isso quer dizer que a qualidade desses 20% se faz à custa de que 80% dos alunos foram mandados para as instituições privadas, para pagar taxas elevadas e, muitas vezes, com ensino de péssima qualidade. Quando o Brasil reserva apenas 20% das vagas para a educação pública e empurra os outros para fora, consegue uma qualidade nos 20%.
Qual é sua opinião sobre o programa de financiamento estudantil, Fies, que teve seu orçamento expandido e, agora, enfrenta desgaste?
Esse programa tem uma grande vantagem e uma grande desvantagem. A vantagem é permitir que alunos que não tenham acesso a uma universidade pública possam continuar seus estudos. Nesse sentido, é um programa de democratização das oportunidades. Agora, há uma imensa desvantagem, que é o Estado financiar instituições de péssima qualidade. Não é o caso de todas as instituições, mas é o caso de muitas. Seria preferível que esses recursos fossem canalizados para expandir a universidade pública, alargando sua capacidade de acolhimento e oferta de vagas.
O senhor é a favor de que famílias mais ricas paguem mensalidade nas universidades públicas?
Este não é o melhor caminho. Embora seja um pensamento que vem sendo questionado em muitos lugares do mundo, ainda acredito no direito universal à saúde, educação e justiça. E se todos têm direito, isso vale tanto para o rico quanto para o pobre. Essa é minha concepção de justiça social. Então, onde é que se faz o equilíbrio social para que tanto o rico quanto o pobre, quando cheguem ao hospital, sejam bem atendidos? Nos impostos. O rico deveria pagar muito mais impostos do que o pobre. O equilíbrio social não deve ser feito na prestação do serviço. A universidade pública deve ser capaz de atender o conjunto da sociedade. Mas a gravidade dessa questão, no caso do Brasil, é que a universidade pública está disponível para apenas 20% dos estudantes. Está claro que precisa haver uma maior equidade. E, se para alcançar essa equidade for necessário, em algum momento histórico, introduzir algum tipo de pagamento, não vejo mal nisso. Mas esse pagamento deveria ser, também, pensando de forma universal, com todos os alunos pagando pequenas taxas mensais ou anuais - e aqueles que não pudessem pagar comprovariam essa incapacidade e ficariam isentos dessas taxas. Esse pagamento iria permitir que o Estado expandisse a rede pública e não permanecesse custeando quase a totalidade do orçamento de universidades que não conseguem atender à demanda de alunos.
Hoje, no Brasil, há diversos projetos nas casas legislativas estaduais e no Congresso que reivindicam uma "escola sem partido", na qual não haveria espaço para "doutrinação ideológica". O que pensa sobre isso?

Esse debate é um absurdo, porque, obviamente, não há nenhum conhecimento que não seja fruto de um debate ideológico. Uma escola sem partido é, portanto, uma escola que não existe. Esses movimentos são, normalmente, autoritários. A escola sem partido, então, pode ser encarada como a escola de um único partido, em que o diálogo e a discussão não proliferam e não há compreensão das diferenças. Já assisti a muitos movimentos parecidos e nenhum deles vingou. Por outro lado, é preciso recusar a ideia de uma escola doutrinária. A escola não serve para a apresentação de uma versão, mas para expor o mundo. Serve para dizer à criança que há muitas maneiras de pensar e de viver. Que há pretos e brancos, católicos e pagãos. A escola, na verdade, é o lugar para muitos partidos.

Para o educador português António da Nóvoa, 62, o debate em torno da escola sem partido é "absurdo".