Após
mais de meio século ajudando a ditar um padrão de beleza irreal para a maioria
das meninas e mulheres, a Mattel, fabricante da icônica Barbie, resolveu
diversificar. Agora, a boneca apresenta quatro tipos de corpo e 24 de cabelo,
sete tons de pele e 22 cores de olhos.
Isso
vem com atraso, em um momento em que a própria Barbie perde a relevância,
simbólica e comercial, frente a videogames, smartphones e computadores. A
mudança, portanto, é mais consequência de um mundo que se transforma do que
vetor de transformação desse mundo.
É
claro que isso contribui para o debate que vem sendo travado incansavelmente na
sociedade sobre padrões ditados pela indústria da moda e do entretenimento e de
como isso torna a vida de milhões de pessoas um inferno. Então, toda a ação é
válida.
Mas
uma amiga, sábia e antenada pesquisadora, me lembrou que a previsível
satisfação de pais e ativistas pela mudança encobre uma discussão de fundo.
Pois não é a “consciência'' da corporação que leva a essa mudança, mas a
oportunidade de novos nichos de mercado.
Um
produto para consumo de massa que representa uma narrativa de “direitos
humanos'' ou de “desenvolvimento sustentável'' é , antes de tudo, um produto.
E, portanto, seu objetivo é ser vendido. E em grande quantidade a fim de dar
lucro aos acionistas de uma corporação, se possível – afinal de contas, estamos
falando de negócios, não de caridade.
Para
tanto, ele demanda uma grande quantidade de recursos naturais e de mão de obra
para fabrica-lo. E para que seja rentável à empresa que o planejou, faz-se
necessário que esses custos (matéria prima e trabalho) sejam os mais baixos
possíveis. É claro que dá para produzir pagando preços justos de matéria-prima
e trabalho, mas aí o produto para consumo não seria tão de massa assim. Ou os
lucros não seriam tão grandes. E talvez nem pudesse ser embutida a
obsolescência programada de uma sociedade em que nada é feito para durar.
Dito
isso, não se pode negar a engenhosidade do capitalismo, que captura o desejo de
mudança em um símbolo, transforma esse símbolo em mercadoria, o fabrica em
série, realiza campanhas para explicar o motivo pelo qual o povo deve ama-lo,
empacota-o e o vende a prestações em uma loja perto de você. Parece que ele
está sendo revolucionário, mas apenas quer ganhar dinheiro com quem deseja
aquele símbolo.
A
fetichização é tão velha quanto o comunista barbudo – Marx, não Jesus. Mas
conseguimos sempre superar o seu alcance.
O
problema é que a produção em massa desses símbolos pode encobrir, como já
citado, a exploração irracional dos recursos naturais e do trabalho humano.
Sim, não raro por trás de mercadorias que representam mudanças sociais, há –
ironicamente – desmatamento, poluição, trabalho infantil, escravos.
Pode
parecer paradoxal, mas é apenas mais uma das contradições do sistema. E ele,
quer dizer, nós, vivemos muito bem com isso.
Por
exemplo, há denúncias contra fornecedores da Mattel por seus trabalhadores na
China não contarem com proteção adequada, atuarem por longas jornadas com
poucas ou nenhuma pausas, estarem sujeitos a péssimas condições,
desrespeitando, inclusive, as leis trabalhistas locais. A empresa nega.
Vejamos
outros casos. Creio que todos lembram de “Wall.e'' – uma animação produzida
pela Disney e a Pixar que conta a história de um robozinho cuja missão é
organizar o lixo em que se transformou o planeta devido ao consumismo
desenfreado dos habitantes e à ganância de grandes corporações.
De
acordo com o filme, no futuro, a Terra terá se transformado em um lixão
impossível de sustentar vida e os seres humanos terão se mudado para uma nave
espacial à espera de que os robôs limpem as coisas. Paro por aqui para não dar
spoiler – se bem que, a esta altura, você já deveria ter assistido ao filme.
Na
época, na cadeira do cinema, fiquei matutando que Wall.e seria um bom instrumento
para discutir com os mais novos a diferença entre consumir para viver e viver
para consumir.
Pouco
depois, passando por um loja, me deparei com uma prateleira inteira de produtos
do filme. A vendedora me mostrou um Wall.e que funcionava à corda e cantava e
dançava, um outro Wall.e para bebês (na verdade, para os pais dos bebês…)
Explicou que a versão de controle remoto havia acabado, tamanha a procura.
Vale
ressaltar que os brinquedos inspirados em filmes têm vida curta – duram o
suficiente até o próximo sucesso de bilheteria trazer novos bonecos. Ou seja,
dentro de pouco tempo viram lixo de plástico e ferro.
O
que temos aqui? O licenciamento de um filme sobre o consumismo promovendo mais
consumismo. A Disney e a Pixar poderiam ter revolucionado e não autorizado a
produção de quinquilharias baseadas neste filme? Sim, claro, mas isso
aconteceria em uma realidade paralela, na qual o céu é verde e leite dá em
árvore.
Outro
exemplo interessante, que reúne a questão do padrão de beleza e da
responsabilidade sobre o consumo, é uma dobradinha de comerciais. A Dove lançou
uma propaganda sobre a importância de conversar com as meninas a respeito de
padrões de beleza antes que a indústria da beleza fizesse isso. O resultado é
muito bom e pode ser visto abaixo: