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A
sobrecarga de trabalhos domésticos e cuidados com pessoas da família
faz com que as mulheres tenham uma “dupla jornada” não
remunerada e as impede de se desenvolverem pessoalmente. Esse é o
diagnóstico feito por especialistas ouvidas pela Agência Brasil no
contexto em que o IBGE revela que as mulheres dedicam aos afazeres
domésticos e cuidados de pessoas quase o dobro do tempo gasto pelos
homens.
Os
dados divulgados nesta sexta-feira (11) fazem parte da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua: Outras formas
de trabalho 2022 e apontam que as brasileiras gastam 21,3 horas
semanais nessas atividades, em média, enquanto os homens gastam 11,7
horas.
A
demógrafa Glaucia Marcondes, pesquisadora do Núcleo de Estudos de
População Elza Berquó, da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), diz que a desigualdade de gênero persiste apesar de todas
as mudanças já observadas nas famílias e nas vidas das mulheres.
“A
despeito de elas estarem mais inseridas e permanentes no mercado de
trabalho, de a renda feminina ser essencial para a manutenção das
famílias, de estarem mais escolarizadas, as responsabilidades com os
cuidados da casa e dos integrantes da família continuam sendo
majoritariamente delas", aponta.
Glaucia
acrescenta que o cenário atual é de um número cada vez mais
expressivo de mulheres que precisam lidar com o trabalho dentro e
fora de casa, configurando uma sobrecarga. "Se não as tira
do mercado de trabalho temporária ou permanentemente, continua a
impor limitações, seja para seu desempenho e progresso
profissional, seja para seus projetos familiares, como cobranças
sobre o exercício da maternidade, decidir ter filhos",
avalia.
O
levantamento do IBGE aponta que entre as mulheres que têm uma
ocupação, a diferença de horas dedicadas ao serviço doméstico é
de 6,8 horas por semana a mais que os homens.
Dependência
de provedor
A
socióloga Andrea Lopes da Costa, professora associada na Escola de
Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (Unirio), faz coro de que a mulher que consegue ocupar espaço
no campo profissional ou acadêmico e precisa, ao mesmo tempo, ser a
principal responsável pelas tarefas domésticas sofre impactos
impeditivos no desempenho fora de casa. A professora lembra que
muitas sequer conseguem buscar uma ocupação de trabalho remunerado,
sendo limitadas a atuar como donas de casa, o que gera um problema
secundário.
"O
mundo do trabalho é o mundo da remuneração. Então, são mulheres
que, de certa forma, acabam dependendo de um salário do marido. Elas
acabam sendo subordinadas a um homem provedor", analisa,
ressaltando que se refere às famílias em que mulheres são casadas
com homens.
Para
a secretária Nacional de Cuidados e Família, Laís Abramo, a
sobrecarga pela qual passam as mulheres gera a chamada pobreza de
tempo. "As mulheres acabam ficando sem tempo para se dedicar
a outros âmbitos da vida, como terminar a sua trajetória escolar,
fazer um curso de formação profissional, se inserir no mercado de
trabalho, participar da vida pública, por exemplo. Fora as questões
relacionadas a cultura, lazer e ao autocuidado".
A
secretária contextualiza que das mulheres que não estão
trabalhando nem procurando emprego, um terço aponta como motivo para
isso a necessidade de dar conta do trabalho doméstico não
remunerado. Proporção que, nas camadas mais pobres da população,
aumenta quando têm filhos pequenos. "Mulheres sozinhas,
mulheres negras, muitas que vivem nas zonas rurais, nas periferias
urbanas. Essas mulheres não podem ir para o mercado de trabalho,
então deixam de gerar renda. Isso é um ciclo de reprodução da
pobreza, da desigualdade".
A
socióloga Andrea traz para a análise a desigualdade racial. Ela
explica que algumas mulheres com melhores condições financeiras
conseguem atuar com mais competitividade no mundo profissional quando
terceirizam o trabalho doméstico.
“São
as mulheres negras, em grande maioria, que exercem esse trabalho
doméstico e acabam desempenhando os trabalhos mais precarizados,
mais vulnerabilizados, mais subalternizados”, explica.
A
pesquisa do IBGE aponta que as mulheres pretas têm o maior índice
de realização das tarefas (92,7%), superando as pardas (91,9%) e
brancas (90,5%).
Espaço
político
Para
socióloga Marcia Regina Victoriano, diretora-presidente da ONG Nova
Mulher, em São Paulo, o trabalho não remunerado das mulheres sempre
foi e continua sendo um grande impeditivo para o desenvolvimento dos
potenciais delas. "Ser mãe, por exemplo, é uma
característica muito valorizada pela sociedade, pelas religiões,
mas esse papel nos desvaloriza no mercado de trabalho, tendo como
consequência salários mais baixos".
A
participação da mulher nos espaços de política também é
impactada negativamente pela sobrecarga de trabalho doméstico,
diagnostica a diretora da ONG. "
As
mulheres foram à luta e conseguiram provar capacidade de produção
e de ocupação de novos espaços, mas, às vezes, à custa de
jornadas extenuantes e de muito sacrifício pessoal. Com as mulheres
sobrecarregadas, não há como se desenvolver e participar mais dos
espaços de poder. Nesse sentido, ainda há um longo caminho a ser
percorrido".
Educação
Glaucia
Marcondes, da Unicamp, afirma que é persistente a visão de que
cuidar da casa e das pessoas é uma questão feminina, enquanto
deveria ser entendida e assumida como responsabilidade de todos.
"Enquanto essa visão não for rompida, essa desigualdade
permanecerá afetando negativamente a vida material, física e mental
das mulheres", diz.
Entre
os caminhos para resolver o problema, a pesquisadora aponta a
participação do Estado "com políticas públicas, seja por
meio de serviços ou benefícios que pensem, de fato, nas demandas
familiares de cuidados, não apenas para crianças, mas também
idosos e demais pessoas que precisam de cuidados". Para ela,
é uma questão urgente. "É preciso lidar seriamente com o
suporte e a proteção social para cuidadores familiares, que são
majoritariamente mulheres, e que passam suas vidas inseridas em
vários tipos de vulnerabilidades". Ela também defende que
"incentivar a socialização dos homens para os cuidados em
todas as idades é o caminho para mudanças mais profundas e de longo
prazo".
Marcia
Regina, da ONG Nova Mulher, ressalta que a educação para a
igualdade de gênero tem que ser uma prioridade, "colocando-a
como tema gerador de reflexão, de ação, de campanhas educativas em
todos os níveis da escolaridade, para impulsionar este debate em
nossa sociedade". A socióloga defende ainda que é preciso
"mudanças significativas em leis, como a da licença
paternidade, para promover uma participação maior dos homens/pais
nas tarefas de cuidado com filhos".
"É
preciso tornar real a afirmação ‘lugar de mulher é em todo
lugar’, defende a diretora da ONG que trabalha com o empoderamento
de mulheres.
O
privado é politico
Por
ser uma desigualdade de gênero dentro do lar, formas de intervenção
são mais complicadas, avalia a professora Andrea, da Unirio. Citando
o slogan do movimento feminista dos anos 60 O Privado É Político,
ela explica que o espaço da família “é talvez dos mais
intransponíveis quando se pensa na ação direta do estado”.
Andrea pondera que em casos de violência doméstica, que se aproxima
mais da definição de violação de direitos humanos, é mais fácil
a intervenção. Mas em relação aos afazeres domésticos, “o
campo familiar é muito duro, um núcleo potente de reprodução das
assimetrias e das desigualdades”.
Política
de Cuidado
Em
maio, o governo federal criou um grupo de trabalho (GT) para elaborar
a Política Nacional de Cuidados. A secretária Nacional de Cuidados
e Família, Laís Abramo, é uma das coordenadoras do GT, que reúne
17 ministérios e órgãos do governo e tem seis meses, prorrogáveis
por mais seis, para apresentar uma proposta.
“É
muito importante a atuação da política pública para transformar
essa realidade, garantir o direito ao cuidado a todas as pessoas que
dele necessitem”, disse a secretária à Agência Brasil.
Outros objetivos do plano passam por reconhecer, valorizar e
redistribuir responsabilidades do cuidado entre família, comunidade,
empresas e governos.
Transformação
A
secretária defende que o cuidar das pessoas seja entendido como um
trabalho e, mais além, um direito da pessoa, o que demanda uma
transformação cultural da sociedade.
“Pense
em um trabalhador, por exemplo, que sai de casa numa grande cidade às
5h da manhã, passa uma hora e meia no ônibus, vai para o trabalho.
No fim da tarde, leva mais uma hora e meia, duas horas para chegar em
casa. Que tempo ele vai ter para acompanhar o desenvolvimento do seu
filho ou sua filha?”, pergunta.
As
discussões passam por garantir licença-maternidade para todas as
mães, uma vez que mulheres fora do mercado formal de trabalho não
são cobertas por esse direito. Aumentar o período de afastamento
das mães também está em pauta. Atualmente o tempo é de quatro
meses (seis meses em empresas que aderem ao programa Empresa Cidadã).
“A
Organização Mundial da Saúde diz que é uma questão muito
importante de saúde das crianças o aleitamento materno exclusivo
até os seis meses. Se a mulher só tem quatro meses de
licença-maternidade, como é que ela vai amamentar exclusivamente
até os seis?”.
O
aumento do número de dias da licença-paternidade, hoje cinco dias,
também é um assunto que faz parte dos debates.
“Por
mais que um pai esteja convencido de que ele tem que dedicar mais
tempo para cuidar do recém-nascido, ele tem cinco dias, então terá
que voltar para trabalhar”, diz a secretária, que informou que
exemplos fora do Brasil estão sendo observados.
Laís
Abramo acrescenta que está sendo estudada a criação de licenças
parentais, um período que poderia ser dividido entre homens e
mulheres “para poder estimular essa presença dos homens no
trabalho de cuidado com os filhos”. A secretária ressalta que
a política levará em conta todos os tipos de família, e não
apenas as que têm marido e mulher.
A
ampliação do número de vagas em creches, extensão de horário da
educação infantil e da assistência a idosos são outros temas na
agenda do GT. Segundo a secretária, a Política Nacional de Cuidados
também abrangerá a situação de trabalhadores remunerados, como
empregadas domésticas e cuidadores de idosos, de forma a reduzir a
vulnerabilidade dessas ocupações.
“A
ideia da Política Nacional é pensar tanto em quem precisa do
cuidado como em quem cuida de quem cuida”, conclui.
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Com
informações da Agência Brasil.