18 de agosto de 2016

Universidades brasileiras não estão realmente “formando” professores, crava especialista


Qualquer discussão sobre formação docente no Brasil que não passe pelo nome de Bernardete Angelina Gatti sairá, de cara, empobrecida pela ausência do olhar – e de tantas pesquisas e interlocuções – de uma das intelectuais mais ativas do país neste tema nas últimas décadas. Pode-se até discordar dela, mas não prescindir de seus pontos de vista.

Atual diretora vice-presidente da Fundação Carlos Chagas, onde orienta o setor de pesquisas, e membro do Conselho Estadual de Educação (São Paulo), esta professora graduada em pedagogia pela Universidade de São Paulo e doutora em psicologia pela Universidade Paris 7, sob orientação de Paul Arbousse-Bastide, um dos docentes franceses que ajudaram a fundar a USP, Bernardete é categórica em suas afirmações.
Publicado originalmente no Cenpec

Acredita, sobretudo, no trabalho coletivo das escolas e nas ações integradas entre estas e as universidades, desde que haja disposição mútua para interlocução. E que as inovações verdadeiramente significativas vêm e virão dessas interlocuções.

Para saber qual formação de professores queremos, não deveríamos antes saber para que educar e qual educação queremos?

Não tenho dúvida disso. Sem uma ideia projetiva da educação básica, discutir a formação de professores fica em cima de pressupostos, ou de alguns conhecimentos objetivos da formação dada atualmente, e daquilo que vem sendo colocado, de modo desarticulado, por vários segmentos da sociedade. Não reconhecemos e nem sempre percebemos como se manifestam os múltiplos olhares e discursos sobre a formação de professores e as demandas da escola. Em geral, ficamos nas grandes dicotomias, mas hoje a sociedade é muito mais heterogênea. Há variadas formas de requisitos para a educação e segmentos sociais que pensam de modo muito divergente.

Poderia dar exemplos?

Há segmentos que acham que a formação acadêmica, na educação básica, deveria centrar-se em dar ao aluno o necessário para trabalhar com conhecimentos científicos, matemáticos, com as questões da vida, da biologia. Defendem uma formação genérica, o que não quer dizer leve. Lembrando, em relação à discussão do currículo, que já tivemos em nossa história, nos anos 80, uma formação mais genérica, com um núcleo duro de disciplinas, mas com flexibilidade para preencher parte desse currículo com questões locais e regionais. Não foi adiante, pois a discussão não se resolveu. Há outros segmentos que defendem que a educação básica deveria ser eminentemente pragmática, ou seja, dar apenas aqueles instrumentos para a vida cotidiana, basicamente língua portuguesa e matemática útil – que trabalhe com aplicações, não a matemática acadêmica ou para formar o pensamento, a lógica. E outros que demandam uma revolução na formação, iniciando-se até mesmo na pré-escola, trazendo os dilemas de ponta do conhecimento para formação tanto de crianças como de jovens e adolescentes. E há outras. Por enquanto, o que está mais em pauta é a ideia de dar uma formação mais genérica, básica, culminando com uma formação mais literária e científica no ensino médio. Tem também outra posição, que propugna que haja um currículo diversificado a partir do ensino fundamental 2. Ou seja, os alunos que têm preferência por formação humanista teriam um currículo diversificado, diferente daqueles que mostram interesse por uma formação mais das ciências exatas, ou de tecnologias. Muitos acham que essa flexibilização deveria começar no 8º ou 9º anos, porque aí o adolescente já começa a manifestar suas motivações e preferências cognitivas.

Qual o melhor caminho?

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Pensei que, com a discussão da Base Nacional Comum, fôssemos chegar a um ponto de consenso, mas essas questões dos diferenciais não foram levantadas. Estamos sempre trabalhando em cima de um modelo já culturalmente incorporado às representações de certas lideranças, e não conseguimos sair disso para ver o conjunto de demandas e concepções presentes para achar um caminho intermediário. As discussões se polarizaram demais.

A Base chega meio atropelada?

Chega sem trazer um pensamento renovador. Precisaríamos pensar a estrutura curricular da educação básica de maneira mais criativa, nos liberando um pouco desses arcanos que existem na cultura desde o século 19. A proposta da educação infantil me parece que supera algumas concepções arraigadas sobre o trabalho com a criança. Mas não vejo isso nos outros segmentos, em que ficamos numa discussão de conteúdos disciplinares específicos. Esse pode ser um ponto de partida, mas não de chegada. Para avançar, seria preciso que grupos diferenciados entrem em um debate mais ampliado, vendo os modelos que daí surgiriam, e trabalhando sobre eles.

Como vê a formação oferecida pe­las universidades públicas pa­ra a docência?

De modo geral, nem as públicas nem as privadas estão realmente formando professores. A crítica às universidades públicas é que elas não faziam uma associação adequada entre as teorizações e as práticas, que é um movimento de interdisciplinaridade, difícil, inclusive para os professores doutores que estão nessas universidades, pois a formação deles é disciplinar, e não interdisciplinar. Como de certa maneira abandonamos os estudos de didática e das práticas de ensino com teorizações adequadas e fortes, eles também não têm onde se apoiar. No Brasil, deixamos de lado essas questões, confundindo didáticas e práticas de ensino com tecnicismo, confusão que estamos começando a desfazer. Não tenho dúvida de que as universidades públicas formam um corpo discente um pouco melhor, pois já trabalham com um grupo selecionado, estudantes que vêm para a universidade com vontade de estudar. E têm um currículo acadêmico bem mais forte. Então, saem com uma formação acadêmica melhor, mas não com uma formação para ser professor.

Como vê as licenciaturas com modelo de formação interdisciplinar, tal como a Faculdade do Sesi/SP está propondo? Não há o risco de faltar a base disciplinar?

A ideia, nesse caso, é partir do problema complexo que emergirá da associação dos conteúdos das disciplinas com os conteúdos da pedagogia, para recuperar o que é da disciplina. É um caminho inverso. Dou um exemplo na formação da medicina. Muitas faculdades hoje têm a base propedêutica que tínhamos e temos em muitos cursos. Ou seja, você tem anatomia, fisiologia, todas essas disciplinas de base, mas que agora já partem para analisar situações-problema. Com esses estudos de caso, o aluno tem de recorrer ao conhecimento disciplinar, mas já com uma visão interdisciplinar. E funciona. A Universidade Harvard, por exemplo, está com uma proposta nessa linha, mas não é a única, pois antes Oxford, na Inglaterra, e outras já fizeram isso. Aqui mesmo já tivemos experiências em Marília e outros lugares com esse tipo de formação. Isso exige que os professores formadores já tenham feito seu caminho disciplinar e interdisciplinar. E não de uma área, mas de duas ou três. Se você vai lecionar história da educação, tem de ter conhecimento da historiografia, da antropologia, da sociologia e trazer essa visão interdisciplinar para a história da educação. Se não, fica ali no fato histórico. Os grandes historiadores dão um salto, porque têm uma cultura interdisciplinar ampliada. Ao professor se poderia dar essa cultura interdisciplinar ampliada. Poderíamos ter cursos que formam a partir de situações-problema. Quando a resolução no 2 de 2015 do Conselho Nacional de Educação propõe que o aluno comece o estágio logo no primeiro ano, não é para ele dar aula, e sim para que possa ver a escola e problematizar a sua realidade, saber o que é ser um profissional professor, de forma concreta. Com isso, pode-se construir um currículo bem diferenciado.

Temos exemplos?

Vi alguns currículos muito interessantes aqui no Estado de São Paulo, houve renovações muito grandes em áreas disciplinares aqui na USP como, por exemplo, filosofia, matemática, física, até na ECA (Escola de Comunicações e Artes), propostas para formar professores de modo diferente. Mas ainda são casos isolados. Na Unicamp, tem um belíssimo programa de licenciatura de física e química, bem feito, bem pensado. Você pode pensar em formações polivantes de diferentes naturezas. A proposta do Sesi caminha nessa direção, mas o projeto ainda não nos dá a ideia do que vai ser o currículo concreto, pois ainda é um projeto em construção.

E na América Latina?

Vi uma abordagem interessante em Buenos Aires. Há um horário das disciplinas-base – antropologia, história da educação, sociologia – só que tem um momento disciplinar, com muitas horas, em que esses professores trabalham com os alunos na observação de escolas e comunidades. Os alunos trazem suas observações e os professores fazem interpretações à luz da sua disciplina sobre aquela situação. E formam um consenso multidisciplinar complexo sobre ela. Os alunos vão aprendendo a olhar as realidades escolares, usando conhecimentos disciplinares, mas com um olhar integrado. Só que isso exige do professor uma dedicação muito grande, pois tem de trabalhar com os outros. E isso é feito nos quatro eixos de formação para o professor. Nas universidades públicas, não seria difícil termos projetos inovadores, pois muitos docentes são contratados em regime de dedicação exclusiva; poderia haver uma presença maior, mais integrada, nas atividades de ensino. Já nas particulares, isso é bem mais difícil, pois veriam isso como custo. Mas não é impossível.

E a proposta do conselheiro do CNE César Callegari de fazer com que todas as faculdades de pedagogia, públicas ou privadas, tenham uma escola, de sua propriedade ou associada?

Não acredito nisso. Essa escola vai ser tão diferente da rede que não servirá de inserção real do professor. Já vivemos isso, com os colégios de aplicação. Defendo que uma faculdade ou universidades que têm licenciaturas deveriam ter convênio com um conjunto de escolas em várias partes do estado ou da cidade, de tal maneira que seus alunos possam percorrer realidades diferentes. É muito diferente estar numa escola pública, mesmo que atenda uma população mais ou menos da mesma natureza, no centro de São Paulo ou em Itaquera. Há culturas diferenciadas de quem está aqui e de quem está lá, inclusive das famílias. Prefiro convênios com as redes públicas que organizassem o estágio e em que se pudesse atuar nas escolas com um projeto compartilhado com elas. No caso dos colégios de aplicação, às vezes a faculdade manda no colégio, aí ele se torna uma exceção da exceção da exceção, começa a selecionar os alunos.

Como definir um currículo nacional de formação docente?

A resolução no 2 de 2015 dispõe sobre isso, está lá a Base Nacional Comum de Formação de Professores. Não está definido nos detalhes, mas estão definidos os conhecimentos importantes que um professor deve ter. Pela legislação, é de alçada do CNE definir as diretrizes nacionais de educação, elas são mandatórias. Todos os estados, municípios, instituições públicas e privadas têm de se alinhar. E aí está a inteligência que vejo nas novas diretrizes, embora sejam um pouco cheias de detalhes argumentativos, mas na essência trazem a possibilidade de ser criativo e, ao mesmo tempo, ter uma diretriz clara. Isso é uma qualidade da resolução. Tomara que as instituições tenham competência e vontade política para mudar a formação de professores. O CNE lançou as bases, todas as instituições terão de começar a adaptação a partir do 2o semestre de 2017. Sei que há mobilizações, pois tenho sido convidada para um monte de coisas, mas não sei se todas o farão. Pela resolução, a formação tem de ser feita em pelo menos 4 anos e 8 semestres, não sei como as particulares vão se adaptar a isso. Uma verdadeira transformação nessa formação só viria se houvesse uma integração entre todas as licenciaturas, num centro de formação de professores, num lócus em que as faculdades de educação, de física e química contribuíssem para formar um profissional professor. É uma coisa que discuto há muitos anos: por que existe uma faculdade de medicina, de engenharia e não existe uma faculdade de formação de professores?

E aí juntaríamos os conhecimentos disciplinares com as ciências da educação…

Isso, não é para dissolver faculdades de educação ou o instituto de base que contribui, mas para juntar e, ao fazer isso, teria de haver uma coordenação vivaz que permitisse a interlocução entre eles e a geração de projetos formativos diferenciados. Como a Base Comum, que é você ter uma cultura ampliada nos fundamentos da educação e uma formação bem assentada em didáticas e práticas de ensino. Se essas competências que estão distribuídas fossem condensadas, teríamos a possibilidade de construir a interdisciplinaridade a partir da disciplinaridade, mas propondo um currículo que renovasse a formação. Isso leva tempo? Sim, mas se começarmos já, teremos o tempo de fazê-la.

Não é preocupante o nível de desistência de jovens docentes em início de carreira?

Dos poucos dados existentes sobre isso, não dá para falar que a maioria desiste. Há grande procura pelos cursos de pedagogia. Claro que muita gente que busca esses cursos não quer ser professor e o curso tem seus problemas para formar alfabetizadores. O que nós não temos é procura para disciplinas como história, geografia, ciências sociais. Há poucos cursos para o tamanho do Brasil. Os gaps são nessas áreas. Agora falando em gestão de educação no nível dos estados e municípios, os professores iniciantes não recebem apoio suficiente para que se sintam com um referencial na rede, apoiados através de material, orientação, suporte, eles é que têm de procurar os colegas para se orientar. Se há um coordenador pedagógico sensível a isso na escola, procura dar esse apoio, essa formação. Mas a desistência não é alta, e vou dizer por quê: os licenciandos que procuram trabalhar como professores provêm de camadas sociais menos favorecidas. O salário de um professor é um diferencial para eles. Não é para a classe média, média alta, mas sim para essa camada ascendente. Ele fica na carreira, pois sabe que dali a cinco anos tem X% de aumento, tem estabilidade. Mesmo nas licenciaturas mais sofisticadas, como física, química, matemática, eles têm um nível socioeconômico menor do que os que procuram outros cursos, é um salto social.

E como anda a formação dos coordenadores pedagógicos? Modernizou-se nos últimos anos?

Teoricamente, sim, pois temos bons autores e boas pesquisas sobre a coordenação pedagógica. Na prática, há muitos problemas. Primeiro porque, se você define que o coordenador pedagógico deva ser aquele que vem da pedagogia, o curso não sabe bem o que forma. O diálogo desse formado com pessoas da história, da matemática, da geografia, mesmo tendo feito alguma especialização em coordenação pedagógica, não é fácil, justamente porque ele não tem uma formação interdisciplinar que lhe permita um diálogo fecundo. Não se sustenta o discurso de que “ah, ele pode ver o aspecto pedagógico”. Não há aspecto pedagógico independente de conteú­do, da linguagem daquela área. São linguagens específicas e, se ele tem dificuldade, não é bem recebido. Em outros sistemas, o coordenador pedagógico pode vir de qualquer área – um professor de matemática ou de história que se candidata ao cargo. Em geral, recebe uma formação continuada para isso. Nesses casos, são muito poucos os professores de outras áreas que se candidatam a ser coordenadores pedagógicos. É mais comum que se candidatem a ser coordenadores de área – ciências, matemática, ciências humanas etc. – nas redes onde isso existe. Nas poucas pesquisas que tenho lido sobre esse tipo de coordenação, ela funciona bem. Não temos ainda uma opção clara de que tipo de coordenação pedagógica queremos ter nas escolas. Defendo que deveria haver um curso de pós-graduação, um mestrado profissional voltado à formação de coordenadores pedagógicos. Aí poderia vir de qualquer área, mas teria uma formação psicopedagógica forte, didática, interligada a diferentes conteúdos, linguagens e lógicas. Essa é a formação que precisaríamos ter, mas para isso precisaríamos de uma indução, em nível federal ou esta­dual, o que demanda financiamento.

Hoje, fala-se muito em metodologias ativas de ensino, como instrução por pares, estudo de caso etc. O que é propriamente novo e o que tem mais potencial de estimular o aluno?

Pois é, há muita novidade que não é novidade, e muita novidade que não funciona na escola. A sala de aula invertida, por exemplo, só pode ser fecundamente utilizada após um tempo de aculturação da criança na vida escolar. Porque ela vem de uma vida familiar, ou comunitária, ou de rua, um tanto indisciplinada, solta, e a vida escolar exige concentração e atenção.

Seria mais para o ensino médio…

Sim, e mesmo assim você teria de ter tanto recurso… A nossa população ainda não tem uma situação socioeconômica e cultural equitativa, somos muito desiguais, a maioria não conta com recursos culturais acessíveis, por mais que use celular. Nos entusiasmamos com coisas que às vezes não têm muita objetividade. Então, desconfio de alguns modismos. São coisas muito deste momento da sociedade contemporânea, da imagem, do novo, ou de travestir de novo algo que não é efetivamente novo.

Mas de todas essas coisas, você destacaria algo que tem mostrado bons resultados?


Vi, por exemplo, de estudos de caso de escolas públicas de Chicago, de escolas públicas na França e na Itália que o que funciona mesmo é uma equipe escolar mais fixa, mais perene, que compartilha um período maior dentro da escola. Nos EUA há vários estudos de caso que mostram isso. Esse compartilhamento deve ter um sistema de apoio bem desenvolvido – não de imposição, de apoio –, com material pedagógico, possibilidades. E deixar a comunidade ser criativa. A inovação em geral é produzida em pesquisas que a universidade faz e propõe. Por exemplo, tivemos o Pibid. Não foi tudo, mas a maioria dos projetos trouxe inovações importantes, em termos de construção e teste de material didático, de organização de feiras de ciências com novos modelos. Quando você dá condições e põe interlocutores qualificados, há criatividade nesse universo. A chave é criar condições para compartilhamentos efetivos, no caso da escola com equipes fixas, e no caso da universidade, de os professores conversarem, manterem uma interlocução constante – para definir currículo, quem vai trabalhar com o quê. Tem professor que nem sabe o currículo de formação docente da sua escola. Vai lá e apenas dá a sua aula.


17 de agosto de 2016

Cultura do estupro: o que a miscigenação tem a ver com isso?



Em um país em que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada não se pode tratar essa questão como um tema pontual. O fato de essa violência ser sistemática comprova que existe uma cultura de violência contra a mulher, porque também vivemos em um país em que, a cada cinco minutos, uma mulher é agredida.

Porém, é importante dizer que essa cultura do estupro existe desde o período da escravidão. Mulheres negras escravizadas eram violentadas pelos senhores de escravos e forçadas às mais variadas formas de violências. A filósofa Angela Davis, em Mulher, raça e classe, aborda o fato das mulheres negras não serem tratadas como frágeis e castas, ao contrário, tiveram de realizar trabalhos forçados que precisavam do uso da força.

Publicado originalmente na Carta Capital

Davis inicia o livro com o capítulo “Legado da escravatura: bases para uma nova natureza feminina” falando sobre o modo pelo qual a mulher negra escravizada era tratada de modo a ofuscar uma “natureza feminina”, uma vez que elas eram forçadas a desempenhar o mesmo trabalho dos homens negros escravizados.

O que as diferenciavam dos homens, e essa se torna uma diferença crucial, era o fato de terem seus corpos violados pelo estupro. Essa outra construção de feminino irá contrastar diretamente com a qual as mulheres brancas lutarão para derrubar: a da mulher frágil, submissa e dependente do homem. A mulher negra ter sido submetida a esse tipo de violência evidencia uma relação direta entre a colonização e a cultura do estupro.

No Brasil, as mulheres negras tiveram a mesma experiência. Importante ressaltar que a miscigenação tão louvada no País também foi fruto de estupros sistemáticos cometidos contra mulheres negras. Essa tentativa de romantização da miscigenação serve para escamotear a violência.

Mulheres negras escravizadas foram violadas sistematicamente no período colonial. E, atualmente, ainda é esse o grupo o mais violentado, também em caso de violência doméstica. Segundo dados da Unicef na pesquisa Violência Sexual, o perfil das mulheres e meninas exploradas sexualmente aponta para a exclusão social desse grupo.

A maioria é de afrodescendentes, vem de classes populares, tem baixa escolaridade, habita em espaços urbanos periféricos ou em municípios de baixo desenvolvimento socioeconômico. Muitas dessas adolescentes já sofreram inclusive algum tipo de violência (intrafamiliar ou extrafamiliar).

Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, já que é sistemática, se faz importante observar o grupo que está mais suscetível a ela já que seus corpos vêm sendo desumanizados historicamente, ultrassexualizados, vistos como objeto sexual. Esses estereótipos racistas contribuem para a cultura de violência contra essas mulheres, pois elas são vistas como lascivas, “fáceis”, as que não merecem ser tratadas com respeito.

Um exemplo dos estigmas que estão colocados sobre os corpos das mulheres negras é o caso de Vênus Hotentote. Seu nome original é Sarah Baartman. Nascida em 1789 na região da África do Sul, no início do século 19 foi levada para a Europa e exposta em espetáculos públicos, circenses e científicos devido aos seus traços corporais.

Segundo Damasceno (2008), Sarah Baartman deu um corpo à teoria racista. Não importa aonde vamos, a marca é carregada. Mesmo após sua morte, seu corpo seguiu sendo explorado. Partes de seu corpo, incluindo as íntimas, ficaram à exposição do público no Museu do Homem, na França, até 1975. Apenas em 2002, seus restos mortais foram devolvidos à África do Sul a pedido de Nelson Mandela.

Com base nesses fatos históricos podemos dizer que no Brasil há uma relação direta entre colonização e cultura do estupro. E nós precisamos falar sobre isso.

As mulheres negras foram e continuam a ser as principais vítimas das violência contra a mulher.

Vitória da Educação: Deputados de Estado do Sudeste barram o PL “Escola Sem Partido”


A Comissão de Educação e Cultura da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) barrou, nesta terça-feira (16), o projeto da Escola Sem Partido no Estado de São Paulo. Os deputados decidiram se posicionar contra a aprovação do projeto de lei número 1.301/2015 por considerarem que ele ia contra a liberdade dos educadores de promover uma educação livre.

Publicado originalmente no R7

O relator foi o deputado Carlos Giannazi (PSOL). Segundo ele, essa foi “uma vitória da sensatez e da democracia”. O parlamentar apresentou um projeto que se contrapõe ao Escola Sem Partido, o chamado Escola Com Liberdade (projeto de lei número 587/2016).


Será feita uma audiência pública para debater o projeto Escola Sem Partido no dia 25 de agosto, às 19h, no plenário José Bonifácio, na Alesp. Professores, alunos, pais e entidades estarão presentes nas discussões.

Deputados decidiram se posicionar contra a aprovação. Cris Faga/11.08.2016/Fox Press Photo/Estadão Conteúdo.

16 de agosto de 2016

Deputado Federal do Psol apresenta Projeto de Lei “Escola Livre”


 Uma escola para a democracia não é uma escola "sem partido", mas com muitos partidos, com muitas ideias, com muito debate, com muita análise crítica do mundo. Uma escola para a democracia é uma escola sem preconceito, sem ódio, sem bullying, sem autoritarismo e sem discriminação. Uma escola para a democracia é uma escola laica e respeitosa de todas as crenças e da ausência delas. Uma escola para a democracia é uma escola que pratica a democracia no seu cotidiano.

Por tudo isso, apresentei hoje um projeto de lei (PL 6005/2016) que cria o programa ‘Escola livre’ em todo o território nacional”, foi com essas palavras que o deputado federal pelo Psol, Jean Wyllys iniciou a discussão da matéria em seu portal.

Ao complementar, diz “Enquanto os fascistas, os macarthistas e os fundamentalistas religiosos falam em "Escola sem partido" e travam uma estúpida guerra contra uma inexistente "ideologia de gênero", eu quero defender uma escola livre. Uma escola democrática, plural, inclusiva, aberta a todos os debates. Livre de censura. Livre de preconceitos e discursos de ódio. Livre de burrice e autoritarismo. Livre para educar para a liberdade!”.



Vídeo sobre Escola Sem Partido é autoritário e induz ao voto, afirma advogada



A polêmica envolvendo o projeto de lei Escola Sem Partido ganha mais um capítulo. Na página online da consulta pública do Senado Federal foi publicado um vídeo em que o senador Magno Malta (PR-ES) defende sua proposta e pede votos a favor do programa. O problema é que apenas argumentos favoráveis estão presentes para avaliação dos internautas.

Na opinião de Nina Ranieri, especialista em direito educacional e professora de direito da USP (Universidade de São Paulo), o fato de constar apenas um ponto de vista numa consulta aberta à sociedade fere o direito do cidadão, pois não dá subsídios para uma interpretação correta dos fatos.

Publicado originalmente no Uol

"Não só induz [o voto das pessoas], como é muito pouco democrático. Chega ser até autoritário ter só um argumento. Isso revela muito o viés do próprio projeto. Essa proposta de tornar neutra a educação tem um fundo altamente político. A preocupação não é com os estudantes", afirma Ranieri.

A consulta pública já bateu o recorde de votações na história do site do Senado. Até o fechamento do texto, 371.851 votos haviam sido contabilizados (180.633 a favor e 191.218 contra o projeto) -- a segunda proposta com mais participação (191.532 votos) é a do projeto que propõe a reformulação da lei do Ato Médico. O espaço foi criado para que os cidadãos possam opinar sobre projetos de lei, medidas provisórias e outras proposições que tramitam no Senado.

De acordo com um dos responsáveis pelo site e-Cidadania, onde está a consulta em que o vídeo foi publicado, qualquer senador pode solicitar a publicação de um vídeo sobre o projeto de sua autoria. A única ressalva é que o conteúdo do vídeo esteja diretamente relacionado à proposta. A responsabilidade sobre o material é total da assessoria do respectivo senador.

O funcionário explicou que, por enquanto, apenas um vídeo por projeto de lei pode ser veiculado em cada consulta pública, mas que melhorias estão sendo planejadas. Apenas três propostas possuem publicações dos autores.

Como solução para o caso, Ranieri sugere que o vídeo do senador Magno Malta seja retirado da página da consulta pública enquanto os argumentos contrários não forem acrescentados.

Os argumentos do projeto

No vídeo de pouco mais de 5 minutos, o senador defende que o aluno não tem que estar na sala de aula para ouvir "e ser incutido em sua mente aquilo que o professor quer como, por exemplo, o nazismo (...), doutrinas machistas ou doutrinas feministas ou LGBT."

Em sua conclusão ele ainda ressalta: "Nós precisamos de uma escola que ensine e não que pregue ideologia, não de uma escola que ensine política, que ensine religião."

Claramente contrária ao projeto de lei, a professora defende que, segundo o artigo 206 da Constituição Federal, o ensino deve estar baseado na liberdade de aprender e de expressão. Entre os princípios que devem gerir o ensino, o documento ainda assegura o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

Outro lado

A reportagem tenta contato com o senador Magno Malta desde terça-feira (9), mas até o fechamento do texto não obteve retorno. A primeira solicitação foi realizada na terça-feira (9) por e-mail --em meio a tentativas de contato via telefone. No dia seguinte, uma nova mensagem foi enviada para confirmar o recebimento do pedido e não houve retorno. Nesta sexta um novo e-mail foi enviado, mas sem sucesso.

Entenda a polêmica

O movimento "Escola sem Partido" defende a "neutralidade do ensino" por meio da proibição de suposta "doutrinação ideológica" nas escolas.

A inspiração para o projeto de lei no Senado – a qual embasa outros quatro projetos do tipo, na Câmara dos Deputados, e além de sete Assembleias Legislativas e 12 Câmaras municipais – é a proposta idealizada em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, procurador paulista.


No último dia 22 de julho, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF (Ministério Público Federal), encaminhou ao Congresso Nacional uma nota técnica em que aponta a inconstitucionalidade do projeto de lei 867/2015, que inclui o programa Escola sem Partido entre as diretrizes e bases da educação nacional. O projeto de lei tramita na Câmara, com autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB-DF), mas, segundo o MPF, a nota valerá também "para todas as proposições legislativas correlatas".

Imagem capturada do vídeo na página de consulta pública do Senado Federal.



Na calada da noite, Senado aprova fim das férias, do 13º salário e privatizações



Na calada da noite, por 59 votos favoráveis e 21 contra, o Senado deu mais um passo rumo à aprovação do fim das férias, do 13º salário, aumento da idade para aposentadoria, congelamento de salários por 20 anos, privatizações de empresas públicas e troca do nome do Brasil de República Federativa do Brasil para “República Golpista das Propinas do Brasil”.

Publicado originalmente no Brasil 247

O país soube no último final de semana que o interino Michel Temer (PMDB) e seu séquito de ministros provisórios foram delatados por receber propina da Odebrecht. Eles embolsaram, juntos, R$ 33 milhões de dinheiro sujo, segundo procuradores da Lava Jato.

Volto ao golpe desta madrugada. Evidentemente que esse resultado não é definitivo. Já era esperado nessa etapa. Os trabalhadores e o povo brasileiro ainda podem reagir e os senadores podem mudar o voto, como naquela votação dos destaques cujo placar foi 58 votos a 22.

Não é o afastamento de Dilma Rousseff que está em jogo, como foi dito aqui ontem. São os direitos sociais e a CLT — as leis protetivas dos trabalhadores — que correm risco de serem revogadas. Por isso a necessidade de afastar a presidente mesmo sem crime de responsabilidade.

Muita água ainda vai rolar debaixo dessa ponte até o início do julgamento do mérito, pelo mesmo Senado, até o fim deste mês. Tem senador que não quis revelar sua posição na votação desta madrugada, que, no juízo final, pode mudar…

Caso fique tudo como está, se consolide a cassação de Dilma, os movimentos sociais e sindicais que preparem o lombo para encarar a Lei Antiterror. O interino Michel Temer não se fará de rogado para utilizar dessa ferramenta antidemocrática visando a retirada de direitos sociais e trabalhista. Ele já deu mostras na Olimpíada quando censurou manifestações contra o golpe nas arenas dos jogos no Rio.

Paralelamente a perdas de direitos políticos, sociais e trabalhistas, se içado à condição de titular, Temer não titubeará para cassar partidos e criminalizar ainda mais a oposição para consolidar o golpe de Estado — contra os trabalhadores e o povo brasileiro.

Por 59 votos a 21, senadores/as aprovam fim do 13º salário e acena para privatizações.

15 de agosto de 2016

O “Escola sem Partido”, a Lei da Mordaça e a esperança de formar cidadãos que não pensam


Ao chegar na escola em que trabalha, o professor de Biologia é chamado à sala da diretoria. O diretor informa que ele está suspenso. Dois policiais o aguardam para levá-lo a prestar esclarecimentos na delegacia. O motivo? A aula do dia anterior, sobre a teoria da evolução, do inglês Charles Darwin, contrariou as crenças de alguns alunos e seus pais. O enredo, fictício, pode se tornar uma cena factível no futuro da educação brasileira, se o projeto denominado Escola Sem Partido virar lei. A ideia inspira dois projetos em tramitação no Congresso, em sete Assembleias Legislativas e 12 Câmaras Municipais.

Publicado originalmente na Rede Brasil Atual

O Escola sem Partido contesta qualquer afronta a convicções religiosas ou morais dos pais e dos alunos e a apresentação de conteúdo "ideológico" aos estudantes, considerados "vulneráveis" ao professor – nesse caso há uma evidente partidarização, pois somente conteúdos considerados de esquerda são citados. O projeto foi idealizado em 2004, pelo procurador paulista Miguel­ Nagib, depois de um professor de sua filha comparar Che Guevara a São Francisco de Assis, em virtude de ambos abandonarem a riqueza pela causa em que acreditavam.

A proposta ficou adormecida até recentemente, quando foi encampada por parlamentares de partidos conservadores. Em abril, uma lei (7.800) baseada na proposta do Escola sem Partido foi aprovada em Alagoas. O governador Renan Filho (PMDB) vetou o texto aprovado na Assembleia Legislativa, mas os deputados estaduais derrubaram o veto. O advogado-geral da União, Fábio Medina Osório, disse considerar inconstitucional a lei alagoana. Na Câmara e no Senado, o projeto foi apresentado, respectivamente, pelo deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) e pelo senador Magno Malta (PR-RO).

Seus defensores propõem medidas como afixar cartazes em salas de aula indicando o que o professor pode ou não abordar. Quem desobedecer deve ser denunciado à Secretaria da Educação e ao Ministério Público. Para o autor da proposta, "é fato notório" que professores e autores de livros didáticos usam aulas e obras como meio de "obter a adesão" dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas. "E para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis", justifica Nagib, em sua página na internet.

O nome do movimento tem certa dose de esperteza. Nenhum especialista ou leigo preocupado com educação quer uma escola "com" partido. Ninguém almeja que seus filhos saiam da escola bradando palavras de ordem, desta ou daquela ideia. Mas o que o projeto propõe já está contemplado na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases (LDB): liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. E o que ele cria, efetivamente, são proibições de abordar teorias que contrariem crenças ou convicções de seus autores.

Para professores, estudantes e especialistas, a proposta pretende calar professores e esvaziar a educação brasileira de conteúdos críticos ao funcionamento da sociedade. "Na prática, não se poderá debater assunto nenhum. Porque tudo vai contrariar crenças. O projeto determina que você deve respeitar os valores de cada aluno. Isso já é obrigação da escola. Esse vai ser um processo de criminalização do professor. A Escola sem Partido é uma lei da mordaça", avalia o professor João Cardoso Palma Filho, membro do Conselho Estadual da Educação de São Paulo.

Adam Smith x Marx

Como trabalho de classe solicitado pela professora de Sociologia­ Gabriela Viola, alunos do Colégio Estadual Professora Maria Gai Grendel, do bairro Caximba, em Curitiba, fizeram ua paródia do funk Baile de Favela baseados nas aulas a respeito das ideias do filósofo alemão Karl Marx – autor de O Capital e expoente teórico do comunismo. Postado na internet, o vídeo repercutiu entre defensores do Escola sem Partido, que cobraram o afastamento da professora. No entanto, ela já havia passado conteúdos com as ideias de outros pensadores, sem ser incomodada.

Ao utilizar um funk para transmitir e consolidar a compreensão do tema, Gabriela buscou se aproximar da realidade dos jovens, algo que vem se tornando cada dia mais comum nas escolas, como observa o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara. "A didática ensinou que para aprender, para querer aprender, o aluno precisa ter uma aula envolvente, precisa dialogar com a realidade dele. O que nega também essa ideia de que eles são completamente passivos diante do professor. Qualquer um que conheça a realidade da sala de aula sabe que isso é falso."

Daniel questiona como um professor terá condições de dar uma aula sobre a Revolução Industrial, ou sobre a luta das mulheres pelo direito ao voto, ou sobre os movimentos de trabalhadores contra o trabalho infantil nos séculos 19 e 20, sem apresentar características de um lado e de outro da história. "É impossível, essa aula não consegue ser dada. O que se quer é ter somente uma versão da história, uma única visão do mundo", afirma.

Para o professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP) Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, se o objetivo do projeto é evitar a doutrinação, ele devia exigir maior pluralidade de conteúdo, teórico e de ideias, no currículo escolar. Mas de maneira nenhuma vetar determinados conceitos. Um curso de Sociologia ou Economia, explica Janine, deve mencionar tanto a visão de Marx sobre o capitalismo como a de Adam Smith  – liberal, criador do conceito de "mão invisível do mercado". São autores que representam posições diferentes, mas que não podem ser ignorados por sua contribuição para o saber humano.

Para Janine, o objetivo da escola é transmitir conhecimento científico, por isso não se podem aplicar restrições a conteúdos por razões ideológicas ou religiosas. "A escola não tem incumbência de doutrinar a pessoa nem de respeitar a doutrinação religiosa da família. A escola educa. E para educar ela tem de transmitir conhecimento que tem base científica. As pessoas podem acreditar no criacionismo ou não, mas ele não pode ser ensinado na escola, porque trata-se de fé, não de conhecimento científico."

O professor avalia que não é possível considerar a escola como maior formador ou deformador da moral de crianças e adolescentes, descartando o papel da própria família, da igreja e a mídia. "A educação é, nesse conjunto, o protagonista mais fraco. Não me parece justo que seja o único a ser criminalizado", afirma.

Religiosidade e autoritarismo

Apesar de, como o ex-ministro, especialistas e educadores defenderem que a escola deve ser laica – sem controle ou influência de nenhuma religião –, a inserção da fé no espaço educacional vem ganhando terreno nos últimos anos. O Decreto federal 7.107, de 2010, determina que o ensino religioso "católico e de outras confissões religiosas" deve ser constituído como "disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental". O Projeto de Lei 309, de 2011, do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), impõe o ensino religioso como "disciplina obrigatória nos currículos escolares do ensino fundamental" e regulamenta o exercício da docência desse conteúdo.

A Constituição contempla o ensino religioso desde 1988. O tema foi reafirmado na LDB, de 1996. Atualmente, está sendo incluído como conteúdo dos nove anos do ensino fundamental na proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – em discussão no Ministério da Educação. Filosofia e Sociologia ficarão relegadas ao ensino médio. Esse processo pode estar relacionado aos objetivos do Escola sem Partido, na avaliação do doutor em Educação Luiz Antônio Cunha, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"Escola sem Partido é uma perna de um projeto mais amplo. Não basta calar, é preciso colocar algo no lugar. Quem mais está agindo para educar dentro da escola pública, nessa perspectiva que se evite o pensamento crítico? São aqueles grupos que pretendem desenvolver o ensino religioso", afirma Cunha. Para ele, o maior objetivo dessa proposta é o esvaziamento de conteúdos ligados às ciências naturais e sociais.

O ato de fazer da educação um espaço vazio de crítica, carregado de exaltação ufanista e de ideais de "moralização" da sociedade começou na ditadura do Estado Novo e se aprofundou após o golpe de 1964. Para o professor Alexandre Pianelli Godoy, doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é esse viés, mais autoritário do que pedagógico, disfarçado de proposta de "educação neutra", o que move os defensores do Escola sem Partido.

No entanto, avalia Godoy, esse movimento contemporâneo tende a ser mais autoritário. Durante a ditadura, embora houvesse cartilhas e vigilância, os docentes não eram pressionados a ensinar desta ou daquela maneira. "Há um retrocesso se voltando contra os conteúdos. Viver em uma democracia com práticas autoritárias acaba com o debate de ideias e com a própria democracia", afirma.

Fechada para o debate, esvaziada de conteúdo crítico e sem conflitar com convicções morais ou religiosas, a escola pode também se tornar incapaz de funcionar como ferramenta civilizatória contra a discriminação. A professora Rosilene Corrêa de Lima alerta que, com o educador proibido de afrontar as convicções religiosas ou morais dos alunos ou de seus pais, conflitos entre estudantes devem se agravar.

"Se um aluno homossexual ou de uma religião não cristã for discriminado por outro, de visão adversa, o professor não poderá intervir. Pois estaria questionando valores religiosos. Na prática, o Escola sem Partido vai liquidar os avanços em direitos humanos que tivemos nos últimos anos", afirma Rosilene, que é diretora do Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF).

A que interessa?

A proposta Escola sem Partido, segundo os especialistas, serve também para encobrir temas importantes da educação que estão em debate atualmente. Ao menos dois projetos com impactos significativos à área estão em discussão. Um é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241. O projeto busca limitar ao reajuste inflacionário a evolução dos recursos públicos para gastos sociais. "Isso significa que não vai ter dinheiro novo. Sem isso não vai dar para fazer nada do que precisa ser feito na educação e não vai dar para cumprir o Plano Nacional da Educação. A partir de 2017, nenhuma escola pública vai ser construída, nenhum professor vai poder ter ganho real de salário", diz Daniel Cara.

O segundo tema, alerta ele, é a BNCC, em discussão no Ministério da Educação, com pouco acompanhamento da sociedade, exceto por organizações e empresários da área. "Em vez de debatermos essas questões estamos fazendo um debate sobre algo que, honestamente, não tem nenhum sentido pedagógico."

Além disso, o endosso ao projeto por parlamentares de partidos conservadores tem sido visto, pelos estudantes, como uma resposta às recentes mobilizações, em várias partes do país, contra projetos de concessão da educação à iniciativa privada (como o de Marconi Perillo, em Goiás), de reorganização escolar (como o de Geraldo Alckmin, em São Paulo) e mesmo contra as mobilizações por melhorias estruturais e salariais.

"Querem eliminar toda a organização social que hoje está fazendo com que professores entrem em greve, que estudantes ocupem, fechem e paralisem escolas, que protestem. O Escola sem Partido é só um ponto de partida, um AI-5 da educação (referência ao Ato Institucional Nº 5, que iniciou o período mais violento da ditadura)", diz a presidenta da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Camila Lanes.

O projeto conquistou a antipatia de empresários do setor. Um manifesto conjunto de tradicionais colégios particulares de São Paulo, entre os quais Mackenzie, Santa Cruz, Vera Cruz e Bandeirantes, defendeu que o Escola sem Partido pode "cercear e até inviabilizar o trabalho pedagógico".

Em 14 de julho, foi lançada no Rio a Frente Nacional contra o projeto Escola sem Partido, reunindo professores, estudantes, sindicatos, movimentos sociais, associações de classe e partidos políticos. A ideia é pressionar parlamentares e mobilizar a sociedade para garantir o livre exercício de um direito universal: a educação.

Padrões de conduta

O movimento Escola sem Partido divulga um "anteprojeto" de lei estadual com suas diretrizes. Genérico, o texto veda práticas que comprometam "o natural desenvolvimento da personalidade" dos alunos, enfatizando "postulados da ideologia de gênero". A proibição se amplia a tentativas de "doutrinação política e ideológica" e atividades "de cunho religioso ou moral" conflitantes com as convicções dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

Escola sem Partido: proposta ficou adormecida até recentemente, quando foi encampada por parlamentares de partidos conservadores.

14 de agosto de 2016

O que esperar do dia 25 de agosto?



O Brasil irá voltar suas atenções para o senado federal no próximo dia 25 de agosto. Serão no mínimo três dias para saber se as vontades de 54 milhões de pessoas irão ser respeitadas ou se o desejo de meia dúzia de destronados do poder prevalecerá.

No último dia 12 do corrente mês, a presidenta afastada do cargo por um grupo mais sujo do que pau de galinheiro foi notificada no palácio da alvorada para comparecer ao plenário do senado federal. No momento, será julgada no processo de impeachment. A notificação foi enviada pelo ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e também presidente do processo.

Se Dilma irá comparecer para se defender pessoalmente ou não, ainda não se sabe. O fato é que esse é um dos momentos mais cruciais para a manutenção da democracia. Mas por que a democracia está em risco? Vocês poderiam me perguntar. Porque a vontade popular, o desejo da maioria da população eleitora deste país está sendo colocada em xeque. Está prestes a ser desfeita pela simples vontade de um grupo de pessoas que não aceitaram o resultado das eleições presidenciais em 2014.

Mas não é só isso. Questionar o resultado de uma eleição é normal. É algo natural do processo. Agora, os argumentos que se utilizaram para tal é que não convence. São falhos e, portanto, não são aceitáveis para a saída da presidenta. Afinal, quem os denunciam praticaram também. Até mais eu diria. Dinheiro de empresas para o uso de campanhas todos os partidos e todos os candidatos usaram, com raríssimas exceções. Mas o denunciante usou e isso nesse caso basta para a nulidade das acusações.

O que está em jogo é bem mais do que um simples questionamento de resultados. O eleitor e a eleitora deste país precisam ter em mente que o que está em jogo é o privilégio advindo de cargos públicos. A regra do jogo já foi definida sem que nós, povo, pudesse participar dela, porque aqui não temos o direito a vez e muito menos a voz. Até porque ela está sendo silenciada aos poucos. Foi definida quando deputados federais sem nenhuma afinidade com as causas sociais em nome de projetos pessoais decidiram naquela aberrante sessão prosseguir com o afastamento da presidenta. E ali a voz rouca das ruas e de mãos de 54 milhões de pessoas não foram consideradas. Tudo em nome de deus, da família e do projeto particular de cada um.

Está sendo ainda definida, agora no senado, sem que o povo participe. E democracia sem participação popular não é democracia alguma. Se esse processo tiver o fim que todos já esperam, mas que não é a vontade de todos e, portanto, não representa a vontade popular, se tornará muito fácil tirar um prefeito, uma prefeita, um governador, uma governadora, um presidente, uma presidenta. Basta que ele/a contraria os interesses de um pequeno grupo enriquecido às custas da população. Basta que uma gestão desagrade uma mídia que não informa, mas aliena, desinforma.

Senão, vejamos. De que a presidenta está sendo acusada? De crime de responsabilidade fiscal. De praticar as “pedaladas fiscais”. Porém, nem a própria assessoria técnica do Senado, nem o Ministério Público Federal aceitaram que ela (Dilma) praticou esse crime contra a fé pública, contra a administração pública. Não. Ela não praticou. Disse o Ministério Público Federal, a Assessoria Técnica do Senado. Disseram também intelectuais, os mais renomados juristas do Brasil, professores das mais variadas áreas, movimentos sociais e também deputados, senadores, ex-ministros e ex-ministras. Aliás, do crime que estão tentando acusá-la, muitos dos acusadores cometeram. Inclusive o relator do processo no senado. Parece até piada, mas não é. O que importa para esses falsos democratas e surrupiadores da constituição é tirá-la do poder. O que importa para esse grupo é encontrar o culpado, ou melhor, a culpada. Se ela é ou não, não lhes parece muito importante.

Então, o que esperar desse agosto de 2016? Teremos uma redenção democrática ou o esmagamento da democracia, da vontade popular? Pelo que ora se desenha, temo pela segunda resposta. O que não seria novidade. A história do Brasil tem exemplos disso. Os setores conservadores do Brasil usam os mesmos métodos e as mesmas artimanhas para chegar ou voltar ao poder. Basta ter um governo com um pouco de abertura para às classes mais pobres que o medo de uma ascensão social salta aos olhos da elite que não quer perder privilégios. Foi assim com Getúlio Vargas, com João Goulart (Jango), tentaram com Lula e agora estão tentando com Dilma.

O projeto conservador desse grupo que encontrou apoio de setores do judiciário, de alguns da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e de uma imprensa conservadora e reacionária representada pela Globo e suas filiais sairá vencedor? Está tudo caminhando para isso. 

Plenário do Congresso Nacional. Foto: Divulgação.