Enedina
Alves Marques foi a primeira mulher e primeira negra a graduar-se em Engenharia
Civil pela Universidade Federal do Paraná, em 1945. A engenheira participou da
construção da Usina de Parigot de Souza e trabalhou na Secretaria Estadual de
Educação, entre outros locais.
Em
agosto de 1981, o jornal Diário Popular tinha a matéria de capa que pedira aos
infernos. Uma senhora fora encontrada morta em seu apartamento, na Rua Ermelino
de Leão, Centro de Curitiba. O porteiro sentira falta da moradora, chamou a
polícia e a imprensa veio atrás. A foto da “falecida” saiu sem pudores, na
cama, em camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da imprensa
policial. Houve quem não gostasse, com punhos e coração.
A
vítima se chamava Enedina Alves Marques, tinha 68 anos e fora a primeira
engenheira negra do Brasil. Morreu de infarte. Indignação. Seus companheiros de
ofício fizeram uma grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou.
Afinal, as vitórias de uma mulher negra e pobre que figurou entre os seletos
bacharéis de Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria constar nos anais
da República, e não na manchete sanguinolenta de um tabloide.
Deu
resultado. Enedina virou placa de rua no Cajuru. Ganhou inscrição de bronze no
Memorial à Mulher Pioneira, criado pelas soroptimistas – organização
internacional voltada aos direitos humanos, da qual participou. Mereceu
biografia assinada por Ildefonso Puppi. Seu túmulo, no Municipal, é mantido com
respeito pelo Instituto de Engenheiros do Paraná. Tempos depois, batizou o
Instituto Mulheres Negras, de Maringá.
Aos
poucos, descansou em paz. Paz até demais. O centenário de nascimento de
Enedina, em janeiro deste ano, passou em branco. Poderia ter sido celebrado
pari passu com o de sua contemporânea, a poeta Helena Kolody, com quem,
suspeita-se, teria estudado. Sim, antes de engenheira foi normalista e
civilizou os sertões de Rio Negro e Cerro Azul, saindo das lides de doméstica e
de “mãe preta” para a de titular de uma sala de aula.
Eu
mesmo, confesso, nunca tinha ouvido falar dela até semana passada, quando meu
vizinho, Darcy Rosa, estufou o peito para contar que tinha trabalhado com
Enedina na Secretaria de Viação e Obras. Publicamos a declaração. Foi o que
bastou: súbito vieram mensagens revelando a catacumba onde se reúnem os
cultores dessa mulher.
O
cineasta Paulo Munhoz prepara um documentário sobre ela, em parceria com o
historiador Sandro Luis Fernandes. A casa de Sandro, no São Braz, virou um
pequeno memorial de todo e qualquer documento que traga informações sobre a
engenheira. São raros, dispersos e imprecisos. Bem o sabe o estudante baiano
Jorge Santana. Há dois anos, ele pinça toda e qualquer pista sobre Enedina para
uma monografia no curso de História da UFPR. A pesquisa promete. Há fortes
indícios de que Enedina sofreu perseguição racial nos bastidores da
universidade.
Formou-se
aos 31 anos, sem refresco, depois de uma saga nas madurezas. Vingou-se ao se
aposentar, na década de 1960, como procuradora, respeitada por sua contribuição
à autonomia elétrica do Paraná. Conheceu o mundo. Morava num apartamento de 500
metros quadrados. Impôs-se entre os ricos por sua cultura, 12 perucas e casacos
de pele. Desconhece-se que tenha feito odes feministas ou em prol da igualdade.
Ou que fizesse o tipo boazinha para ser aceita. Pelo contrário. Talvez Enedina
tenha sido mais admirada que amada. É o que a torna ainda mais intrigante.
As
pesquisas de Sandro e de Jorge – ambos negros – já tiraram Enedina do campo dos
panegíricos, que se limitam a pintá-la como alguém que venceu pelo próprio
esforço. É um discurso bem conveniente, como se sabe. Tudo indica que não se
trata de uma biografia isolada, ainda que pareça.
A
mulher baixinha, magérrima e durona sabia se impor entre os homens – com os
quais gostava de beber cerveja. Enfrentava a lida nas barragens como um deles,
armada se preciso fosse. É uma heroína perfeita para um longa-metragem. Nasceu
de uma gente humilde do Portão. Era única menina numa casa de dez filhos. A
mãe, Virgília, a dona Duca, ganhava uns trocos como lavadeira. O pai, Paulo,
está na categoria “saiu para comprar cigarros”.
Mas
não é tudo. Enedina teria feito parte de uma rede de resistência da comunidade
negra paranaense, pré-Black Power, da qual pouco se ouve falar. As vitórias que
teve desmentem a propalada passividade desse grupo diante das migalhas que lhe
foram reservadas. O destino dela teria mudado ao cruzar com a família de
Domingos Nascimento, negro de posses da Água Verde, e com os Heibel e os Caron,
brancos progressistas que acabaram por se tornar os seus.
Nesses
redutos não teria encontrado apenas um horário para estudar ao lado do fogão de
lenha. Ali, suspeita-se, passou de Dindinha, seu apelido, a Enedina, a primeira
engenheira, mas também uma das primeiras negras de fato alforriadas de que se
tem notícia. Eis o ponto.